Entre a Não-Direita e a Não-Esquerda
Os manuais de sobrevivência do actual situacionismo, marcado pelo modelo guterrista de não-direita, que se assume como o exacto inverso do modelo cavaquista de não-esquerda, aconselham a que ninguém abale o sagrado dos preconceitos que moldam as chamadas classes A e B que nos lideram. Com efeito, as nossas elitezinhas devoristas, medidas mais pelo "ter" do que pelo "ser", misturam o reaccionarismo social da fidalguia e do clero do ancien régime, a agressividade utilitarista da burguesia e o vanguardismo moralista dos líderes do revolucionarismo.
Quem quiser praticar o não-conformismo da velha, mas não antiquada, tradição liberal, ou assumir-se como "homem livre", "livre da finança e dos partidos", como queria ser a revista do mesmo título, publicada em 1925, por integralistas e seareiros, sob o impulso de Afonso Lopes Vieira, tem de assumir-se como elefante numa loja de porcelana, e proclamar que as pretensas elitezinhas do Portugalório, essas que marcam a sondajocracia das agências de publicidade e dos indagadores do share televisivo, padecem de grave iliteracia, sendo bem mais incultas que o "nobre povo", que continua a ser silenciado.
Julgo que Portugal é um espaço bem mais amplo e bem mais profundo que o território mental aprisionado simbolicamente pelo triângulo "Manuel Moura Guedes, Margarida Marante e Maria Elisa". O Portugal do "nobre povo" não se reduz aos tiques de não-esquerda de José Eduardo Moniz, às ofensiva de não-direita de Emídio Rangel ou à pretensa rebeldia mumificada de José Rodrigues dos Santos, apesar da "contra-informação". Portugal não é apenas a casa mais famosa de Portugal do nosso berlusconianismo, onde dominam os podres fácticos do senhor Francisco Pinto Balsemão ou as saudades de passado e de futuro que marcam a memória e as ambições daquilo que representa Daniel Proença de Carvalho.
Quem quiser ser da fibra dos tais "homens livres" tem que ir além do que aparece e questionar os sustentadores dos cordelinhos do situacionismo, esses criadores das doutrinas tranquilizantes de certo jornalismo de ideias, em torno dos quais gravitam os salamaleques dos candidatos a marechais da direita e da esquerda. Mas como já não tenho idade para ser novamente candidato a deputado nem serei convidado para ministro pela "não-esquerda" e pela "não-direita", sinto o dever de dar um bom murro simbólico nas ventas do "status in statu".
Porque, se nos pautássemos pela "forma mentis" do papa dos "opinion makers" portugueses, o Doutor António Barreto, teríamos de concluir que vivemos em pleno "finis patriae" no tocante às ideias políticas. Com efeito, o ilustre autor das melhores farpas político-culturais dos últimos anos, depois de desancar no actual situacionismo dos seus compagnons de route do PS, chegou à conclusão que a oposição ainda era pior. Porque o PP vive entre a tenaz do integrismo e do integralismo, de um lado, e a do populismo, do outro, enquanto o PSD não é social-democrata: de um lado, estão os liberais que afinal são corporativistas e, do outro, os conservadores que fazem parte do beatério social-cristão. Por outras palavras, segundo António Barreto, se a esquerda a que chegámos é má, a direita que está disponível ainda é pior, dado que nos ameaça com o fantasma de um salazarismo haiderizado ou com o regresso às garras do capitalismo selvagem revestido de sotainas sacristas.
Defendendo a honra dos tais integralistas, apenas quero recordar que há um largo espaço de Portugal que não cabe na biografia de Pacheco Pereira sobre Álvaro Cunhal ou na apresentação que da mesma foi feita por Manuel Vilaverde Cabral, para gáudio de todo o grupo da revista "Análise Social". Basta recordar a carta dirigida por Paiva Couceiro a Salazar em 1937 e que o levou ao exílio, onde, com toda a actualidade, se proclama: "Cantam-se loas às glórias governativas e ninguém pode dizer o contrário. O Portugal legítimo do "senão, não" foi substituído por um Portugal artificial, espécie de títere, de que o Governo puxa os cordelinhos. Vela a Polícia e o lápis da censura. Incapacitados uns por esse regime de proibições, entretidos outros com a digestão que não lhes deixa atender ao que se passa, e jaz a Pátria portuguesa em estado de catalepsia colectiva. Está em perigo a integridade nacional. É isto que venho lembrar..."
Integralista era o autor do folheto "Altura Solar. Marcando Posição", de 1945, Alberto Monsaraz, onde a II República era denunciada como a "eternização do provisório", como algo de "ilógico", onde reinava uma ordem "à maneira sepulcral dos cemitérios". De outro integralista era também um livro publicado em 1940, José Hipólito Raposo, logo apreendido pela polícia política e que levou o autor a mais um desterro, só porque considerava a existência de uma "salazarquia". Como integralista era um Luís de Almeida Braga que, em 1949, proclamava: "o Estado Novo é um grosseiro tecido de incoerências, de contradições, de ficções, de equívocos". Porque, "elevado à categoria de ser absoluto, o Estado absorveu a Nação. Depressa o Poder passou a prepotência, que tudo esmaga e tritura, e faz da obediência lei para escravos castrados".
Por outras palavras, não haverá "unidade da direita" se os actuais líderes institucionais dos chamados partidos de direita continuarem pautados pela iliteracia das classes A e B e quiserem apenas ser homens não-livres da não-esquerda, acreditando que o monopólio da inteligência continua a pertencer aos ex-comunistas que teorizaram o "povo esquerda" que levou Mário Soares ao poder presidencial. Por mais esforços que façam a "Missão Portugal", o "Pensar Portugal" ou a "Nova Vaga", no interior do PSD, bem como o voluntarismo de Paulo Portas, todos eles actuam num terreno minado pelos "novos clérigos" que dominam os "aparelhos ideológicos" da pretensa "sociedade civil" e darão combate à "não-direita" nos terrenos que esta escolheu para conseguir uma "não-derrota". Se a direita continuar mera "não-esquerda", a substituição da actual "não-direita", apenas levará a que novos "boys" substituam os velhos "jobs".
Bem Comum da Semana
De Cabinda ao Canadá
Às vezes, parece que os restos da autonomia cultural portuguesa apenas continuam vivos em actos de política externa, como se manifestaram com o sentido de Estado, da oposição e do governo, quanto às negociações que precederam a libertação dos portugueses raptados em Cabinda. Ou com o discurso de emoção enraizadamente portuguesa do presidente Sampaio, durante a visita às comunidades portuguesas no Leste do Canadá. Será que o Portugal mais profundo continua a ser o Portugal que partiu, farto dos poderes fácticos que nos continuam a algemar na pequena casa lusitana?
Mal Comum da Semana
Nem tudo o que é lícito é honesto
O debate na SIC sobre a questão dos reality shows, com a presença de um dos principais donos da teledemocracia portuguesa, o ex-primeiro-ministro Balsemão, foi bem revelador da nossa crise mental, especialmente quando o patrão do "Expresso" e da principal televisão privada portuguesa, proclamou que a moral não passa de um subjectivismo, que o direito se reduz ao legalismo e que a sociedade civil não é uma sociedade de cidadãos. Convido-o a ler menos Gramsci e a voltar a uma escola onde se ensine Kant e a quarta classe de Estado de Direito, democracia pluralista e teoria da justiça.