GUTERRISMO, DECADÊNCIA E CONTRA-REVOLUÇÃO

 

 

Quase todos os “kingmakers” da nossa agenda opinativa, marcados por uma esquerda tipo “português suave”, vêm reconhecendo o óbvio: o guterrismo, nas vésperas de o deixar de ser, ainda não morreu. Está vivo, mas não se recomenda. Não está em crise, mas não encontra remédios para sair da depressão. Já não é reconhecido como um “bom aluno”, mas, nem por isso, entrou em recessão. E só continua no primeiro lugar do campeonato, porque não apareceu nenhum Boavista com trabalho de equipa, capaz de ocupar o vazio deixado pelas sucessivas derrotas dos outros três grandes, que já foram governo.

 

Se voltámos ao “normal-anormal” da decadência, a nível do chamado “país nominal” ou país político, eis que as correias de transmissão de tal processo ao “país das realidades” continuam a ter olhos tão decadentistas quanto o óleo da decadência que as lubrifica e têm de transmitir. Com efeito, quase todos os nossos comunicadores e opinadores, que, há pouco mais de um quarto de século, alinhavam pelo diapasão do Maio 68, se, por um lado, sentem um enorme tédio face ao “travesti” de esquerda com que o Engenheiro Guterres se recobriu, eis que, por outro, não parecem também entusiasmar-se com os sinais de aparente mudança assumidos pelos líderes da oposição que vamos tendo.

 

Neste tempo cinzento de um março-marçagão, onde os assomos de primavera deviam ter manhãs de inverno com tardes de verão, não vemos que saltem as raposas nem que esvoacem as pombas. Pelo contrário: o tempo é de répteis feitos moluscos, essa legião de invertebradas criaturas que saem das tocas da hibernação e babam o modelo cobarde de, ao mesmo tempo, estarem com Deus e com o Diabo, porque, temendo a derrota, preferem o antijogo que nos leva a sucessivos empates.

 

A nossa querida esquerda ainda continua reaccionariamente iluminista, utilitarista e positivista. Ainda invoca as luzes da razão, supondo que tem o monopólio da inteligência. Ainda pensa, muito progressisticamente, que está a cavalgar no lado certo da história. Ainda se julga cientificista, dizendo não ter dúvidas e que nunca se engana. Isto é, continua a ser Santa Inquisição com outro nome, proclamando um antidogmatismo que, afinal, apenas é neodogmático.

 

Neste contexto, a grande vantagem da direita portuguesa, é o facto de ainda não existir. Com efeito, dado que as regras do jogo da política estão viciadas pelo “sistema” da arbitragem comunicacional, apenas existe a direita que a agenda virtual da esquerda deixa que apareça. Apenas existe a direita que convém à esquerda.

 

Por outras palavras, quem parte e reparte não é burro e percebe da arte. Isto é, o verdadeiro situacionismo de esquerda acha, como Salazar, que em política o que parece é. E continua a considerar, à maneira de Goebbels, que só existe aquilo que aparece, no horário nobre dos telejornais ou num “talk show” de grande audiência.

 

Quem, como o subscritor destas linhas, não se situa na esquerda da esquerda nem na direita da direita, não tem que surpreender-se com a circunstância de ser detestado pelos nostálgicos da revolução perdida, que o continuam a qualificar como reaccionário, e de não ser aplaudido pelos saudosos da reacção não alcançada, que o alcunham como falso conservador.

 

Acontece que, muito singelamente, sempre gostámos de navegar nas águas teóricas daquilo que é o verdadeiro conservadorismo contemporâneo, o qual, por ser mais tradicionalista do que reaccionário, mais adepto do contrário de uma revolução que de uma revolução ao contrário, sempre se situou na chamada esquerda da direita.

 

Se pudesse expressar-me em anglo-saxónico, diria que me sinto mais “wigh” do que “tory”, numa linha que vai de Edmund Burke e dos federalistas norte-americanos até Hayek e Oakeshott. De forma galicista, invoco em defesa das minhas posições um Benjamin Constant e um Alexis Tocqueville, pelo que teria de alinhar, depois do Maio 68, com Raymond Aron e com aqueles que, como Malraux, desfilaram nos Champs Elysées, a favor de De Gaulle, contra os adeptos de Marcuse e Che Guevara.

 

Confesso ser o exacto contrário do políticamente correcto de todos os que hoje se carimbam como politicamente incorrectos. Continuo conservador nos princípios, nos valores culturais e no enraizamento axiológico e comunitário. Insisto em ser liberal quanto ao modelo político. Persisto na radical defesa da justiça social quanto ao modelo económico.

 

Foi por causa destas ideias que mantive uma benévola expectativa face aos primeiros tempos do guterrismo, quando nele ainda se expressavam alguns sonhos dos meus parentes da social-democracia autêntica, da democracia-cristã e de certo radicalismo individualista, isto é, aquela direita da esquerda que parecia disposta a encerrar o ciclo cavaquista sem cair nas teias do soarismo ou nas ilusões choramingas do sampaísmo.

 

Verifico agora que o guterrismo se encavacou, quando renasceram os fantasmas do cabralismo e do fontismo. Do primeiro, retomou a lógica do “enriquecei” e da sociedade de casino, mobilizando antigos esquerdistas discursadores no Clube dos Camilos e outros tanto “adesivos”  vindos do miguelismo, tudo enrolando na hierarquia das sociedades secretas, congreganistas ou anticongreganistas. Do segundo, acabou por ter a ilusão de misturar a tese com a antítese, quando apenas se ficou pelo cepticismo utilitarista do homem de sucesso que mede as realizações do Estado pelo foguetório das inaugurações das obras públicas.

 

Por tudo isto é que me apetece proclamar, sobre a tragédia de Castelo de Paiva, o que nenhuma comissão de inquérito pode subscrever: tanto têm culpa os políticos como os técnicos. Porque ambos assentam no mesmo subsolo de ideias. Numa concepção errada de ciência que tanto levou ao terrorismo de Estado como ao terrorismo da razão.

 

Todos os que continuam a comungar das patetices iluministas, utilitaristas e cientificistas e que ainda não estudaram Thomas Kuhn, não há meio de perceberem que andam por aí os novos paradigmas da contra-revolução científica e da consequente contra-revolução política.

 

 Bem comum da semana

A culpa já não vai morrer solteira

Depois do grito de revolta do ex-ministro Jorge Coelho, alguns círculos geralmente bem informados comunicaram-nos que a Senhora Culpa acabou de proclamar que nunca pertenceu ao género feminino, à imagem e semelhança do respectivo concubino, o Senhor Estado, que também nunca se terá integrado naquilo que, até agora, parecia o género contrário. Os dois teúdos e manteúdos, em nome da paridade e da economia comum, que sempre praticaram, depois de assumirem o orgulho e a via do terceiro género, vão requerer solenemente a respectiva união de facto. O acto contratual, totalmente laico, será apadrinhado pela última esperança da esquerda europeia, o recém-eleito presidente de Paris.

 

Mal comum da semana

 

Os novos defensores do regionalismo

Será que em Portugal, o grau de visibilidade dos políticos é directamente proporcional à respectiva falta de memória? Como é possível que depois da tragédia de Castelo de Paiva, Alberto João Jardim, uma das principais armas do “não à regionalização”, proclame que a regionalização do continente deve voltar à agenda política? Ou que Paulo Portas, outro dos campeões do anti-regionalismo, em nome do Estado Unitário de Pombal, Afonso Costa, Salazar e Mário Soares, assuma, agora, a proposta de institucionalização de um Senado de distritos, que já cai nos terrenos do federalismo interno?