NA MORTE DE SANCHO PANÇA...

 

Os comentários, muito politicamente correctos, que marcaram o falecimento do Marechal Francisco da Costa Gomes, com as teses de Mário Soares e de Diogo Freitas do Amaral, apoiadas pelo PCP e secundadas pelos actuais líderes do PS e do PSD, a quererem estabeleceram o perfil oficioso do antigo Presidente da Revolução, vieram confirmar como alguns protagonistas do actual sistema político precisam da certas interpretações da história para poderem sobreviver.

 

O misterioso militar que, muito tecnocraticamente, serviu o salazarismo, o marcelismo e o abrilismo (do pluralista ao vanguardista), depois de se destacar como amigo dos americanos e da NATO, durante o golpe de Botelho Moniz, da Abrilada 1961, acabou o respectivo activismo político como aliado dos soviéticos e simpatizante dos comunistas. Se foi suspeito de servir objectivamente a CIA, também não deixou de ser acusado de coincidir com o KGB. Mas talvez seja mais simples reconhecer que sempre foi fiel à respectiva interpretação dos interesses nacionais portugueses e deixar que futuros historiadores, depois de consultarem os arquivos de Washington e de Moscovo, descubram o fio do meada.

 

Basta recordar que, nos começos do Outono de 1988, em pleno estado de graça do cavaquismo, o mesmo Marechal Costa Gomes concedia ao semanário “Expresso” uma curiosa entrevista, onde confessava que sempre preferiu “uma evolução natural da ditadura para um novo sistema em que se pudesse abordar noutros termos a política ultramarina”. Acrescentava também que o plano operacional do golpe do 25 de Abril de 1974 tinha sido mal feito: “por acaso tudo correu bem e as coisas passaram-se de uma maneira muito cómica”. Porque se a PIDE “tivesse actuado bem, hoje não tínhamos o 25 de Abril”.

 

Isto é, para o falecido marechal, o 25 de Abril de 1974 não passou de um acaso cómico, inserindo-se na linha de outros do mesmo teor, como o 5 de Outubro de 1910 e o 28 de Maio de 1926, onde os Otelos se chamaram Machado Santos e Gomes da Costa. Só que estes acasos modificaram profundamente a história política portuguesa, confirmando a nossa ancestral tendência para o improviso.

 

É que num povo dado a estes acasos do destino, podem acontecer processos racionalizados de conquista do poder, marcados pelo maquiavélico pragmatismo. Talvez por isso, os cravos vermelhos foram obrigados a elevar à categoria de vértice da revolução e da pós-revolução, tanto em 28 de Setembro de 1974 como em 25 de Novembro de 1975, um dos principais generais do “ancien régime”, cuja gélida racionalidade, típica de um matemático, sempre o configuraram como uma espécie de “anti-herói”, de um Sancho Pança, seguidor do espírito geométrico, analítico-dedutivo, que, depois de ser a sombra vários Quixotes, acabou por ser o fiel de armazém das falências e desilusões que as paixões geraram.

  

Costa Gomes talvez tenha sido um símbolo da faceta friamente calculista da personalidade portuguesa. Pelo aspecto e pelo discurso, a respectiva imagem não gerava emoções no espectáculo político, sendo o exacto contrário de António de Spínola, um dos últimos heróis românticos da nossa história. Por isso é que Mário Soares, nesse esforço ciclópico de ser o autor definitivo da história de Portugal do último quarto de século, tenta reverter, em seu favor sintético, o preto e o branco dos dois marechais. Como, aliás, tem a desfaçatez de procurar estabelecer a última palavra sobre as biografias de Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal.

 

A tentativa soarista de se assumir como o vencedor da história, por vezes, não repara que esta é uma ditadura de factos que nenhum revisionismo consegue ocultar para sempre. Mesmo que consiga a parceria do memorialismo de Diogo Freitas do Amaral, ambas  as manobras só surtiriam efeito se Portugal se transformasse numa espécie de cultura funerária, capaz de instrumentalizar o outro mundo. Aliás, a Fundação Mário Soares, com o dedinho historiográfico de Fernando Rosas, faz aquilo que a defunta Fundação Século XXI, nem no século passado, conseguiu.

 

Para quem procura seguir o realismo da continuidade histórica das nações, importa observar que continuamos a viver em pós-revolução, e que esta não passa da mistura do situacionismo anterior a 1974 com as chicotadas revolucionárias que o procuraram mudar. A consequência deste choque é apenas o presente sistema híbrido, onde as mesmas pessoas, as mesmas mentalidades e idêntica sociedade civil apenas estão enquadradas pela moldura de um novo regime político, com outras regras do jogo. Todas as revoluções apenas são pós-revolucionárias...

 

No essencial, tudo continua como dantes, porque, depois de passarem os fulgores de uma revolução política epidérmica, não aconteceu nenhuma revolução moral nem qualquer espécie de revolução cultural. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas mantém-se o mesmo sistema de poder e, consequentemente, permanecem pessoas do mesmo tipo e até das mesmas famílias. Aliás, o viracasaquismo tem sido uma constante em todas as nossas mudanças de regime.

 

Costa Gomes foi mais uma consequência do que uma causa. Nos primeiros dias de Abril, saudava a revolução liberalizante. Não tardaria a ser um dos sustentáculos das tentativas comunistas de controlo do processo. Mas quando as relações das forças vivas apontaram no sentido do pluralismo e da democracia representativa, com o 25 de Novembro de 1975, também foi capaz de navegar nesse sentido, sendo um dos que garantiu a aprovação da Constituição e a realização de eleições livres.

 

Sem nunca ousar pegar o touro de caras e preferindo sempre a cernelha, apenas abriu a faina ao cerimonial da pós-revolução, marcado por toda essa estirpe de Sanchos Panças, que tanto não lutam contra moinhos de vento como, perante o desafio do Adamastor, não querem morrer tentando, dado que preferem regressar à praia da partida. Sem Tormentas, mas também sem Boa Esperança.

 

 

BEM COMUM DA SEMANA

A coerência de Ramalho Eanes

O primeiro Presidente da República, eleito por sufrágio universal e directo depois de 1974, voltou a recusar aceder às alturas do marechalato. O homem de Alcains, símbolo do regresso dos militares aos quartéis e da serena transição para a democracia pluralista, justificou a atitude, dizendo que os últimos marechais representaram um certo ciclo das nossas forças armadas, intimamente ligado à defesa militar do Império. Eanes, que tem os defeitos e as virtudes políticas inversas às de Mário Soares, assume, neste momento, um estatuto que o deveria obrigar a quebrar mais vezes o silêncio. Porque já nos cansam outros que andam sempre a escrever os respectivos epitáfios.

 

MAL COMUM DA SEMANA

As margens da direita

Alguns políticos, que, não estando no activo, tentam assumir o monopólio da palavra direita, ainda não perceberam que a direita e a esquerda em democracia não são posições ontológicas, mas meras posições relativas, obtidas por conclusão eleitoral, onde muitas direitas até são antigas esquerdas. Com efeito, dois deles andam atarefados: um, a propor um Bloco de Direita, inspirado no pós-fascismo; outro, complexado por ter sido criatura, a querer vingar-se do criador. Ora, a direita sociológica, capaz de ser maioria política, está muito perto dos cinquenta por cento do eleitorado e nada tem a ver com os jogos florais das margens. Será que os ditos não percebem que tanta audição na comunicação social de esquerda apenas os quer transformar na tal direita ineficaz que convém ao actual situacionismo de esquerda.