O
ESTADO SOMOS NÓS
Na
semana em que se comemora o 25º aniversário da Constituição, apetece voltar a
ter fé nos velhos, mas não antiquados, princípios que nos libertaram do
autoritarismo e do totalitarismo e fugir ao estilo do "dá e leva" em
que se enredaram figuras públicas. Com efeito, o Estado que os portugueses têm
vindo a instituir e a refundar sofre de alguns desafios existenciais que
constituem o cerne da presente crise.
Começa
por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado
Segurança, dado que volta a pôr-se em causa o monopólio da força física legítima,
que ameaça desintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada.
Segue-se
a crise do Estado- Administração da Justiça, da confiança dos povos nos seus juízes
e nos seus procuradores, com a ameaça de esporádicas emanações da lei de Lynch.
Vem,
depois, a crise do Estado Imposto, dado que nos esquecemos que a história da
democracia é a história dessa longa resistência dos povos no sentido da
necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o
cerne das Magna Charta e que, entre nós, praticamos desde que instituímos o
parlamento em 1253.
Finalmente,
é a crise do Estado Burocracia, esse instrumento vital do Estado Racional
Normativo, dado que, de tanta reforma administrativa e de tanta modernização
administrativa, se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o
funcionário, aquele que é um "servus ministerialis", o escravo de uma
função, marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o
clientelismo e o emolumento.
Todas estas
crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, onde o poder político, tanto
o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os
grupos e sobre as facções.
O Estado
e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente
organizada. Não são coisas, são processos, exigem-se mutuamente, não podem
entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário, que,
enfraquecendo-os, acaba por inviabilizar a comunidade política que devem
servir.
Assim, a
questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder
mas no assumir da plenitude da democracia. É que, em democracia, o Estado não é
um soberano exterior à sociedade. Em democracia, "o Estado somos nós",
os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de
escolher os representantes. Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas
realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria
instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de
meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens
que as vivificam.
O
fundamental está, pois, no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a
que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas
fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização, onde 1+1 seja
mais do que o resultado aritmético. Onde a união comunitária da política faça a
força do "pluribus unum", gerando uma mais valia de sonho, de imaginação,
de energia.
Mais política
é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade.
Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais
política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem
o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado,
mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a
intimidade da família e da pessoa, em suma, para a realização do direito dos
direitos, que é o direito à felicidade.
Apesar
de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos
regimes políticos mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que
qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, onde acabam
sempre por preponderar os sargentos e os censores, mesmo que com brandura de
costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia,
decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal,
um pedaço de bem.
Sempre é
melhor dialogar com o adversário, pôr o poder a travar o poder, e evitar que
ele se torne "ab-solto", absoluto. Porque se o poder enlouquece ou
corrompe, o poder em soltura, corrompe absolutamente ou enlouquece
absolutamente, mesmo que apenas se manifeste apenas pela arrogância.
É um
novo modelo de Estado e de Sociedade que temos de reinventar, restabelecendo a
segurança do Direito contra a Força, impulsionando a Justiça contra o arbítrio,
dando força à Justiça e impondo Justiça à Força.
Um novo
modelo que restaure a legitimidade do Imposto como Contribuição, para que a
justiça distributiva e a justiça social não percam o sentido unitário e
compensem as falhas da justiça comutativa. Onde seja possível realizar o
"de cada um segundo as suas possibilidades", para que possa
praticar-se o "a cada um segundo as suas necessidades".
Um novo
modelo que faça renascer a confiança do cidadão na sua Administração, que deve
voltar a ser posta ao serviço do todo, sem fenómenos de compra do poder, e onde
o mais competente da legitimidade racional, vença os atavismos do fidelismo
patrimonialista ou do lealismo carismático. Onde o saber possa, pela igualdade
de oportunidades, constituir a principal forma de acesso ao poder,
contornando-se os desvios do mandarinato.
Um
Estado de liberdades, de grupos e de partidos, onde se vença a demagogia do
"star system", o neopatrimonialismo corporativo e os tentáculos da
partidocracia. Um Estado sem "vãs glórias de mandar" que assuma o
realismo de apenas ter o tamanho da Sociedade que somos, daquilo que
economicamente produzimos ou da ciência que intelectualmente geramos ou
aplicamos.
Bem
Comum da Semana
O
regresso da oposição
No tempo
do autoritarismo salazarista, nunca um bastonário da Ordem dos Advogados disse,
dos governantes, o que ouvimos, nestes dias, de Pires de Lima, sobre Guterres e
Jorge Coelho. O Primeiro Ministro pode ter amplas zonas de incompetência e até
utilizar a barganha para aprovar Orçamentos de Estado, mas o facto de o
podermos dizer, aqui e agora, sem papas na língua, apenas demonstra que o
Estado de Direito Democrático é bem menos mau que a paz dos cemitérios.
Mal
Comum da Semana
O
perigo da desconfiança
Apesar
de simpatizar com estilo camiliano do bastonário e do seu liberdadeirismo
conservador, temo que, perante as aparentes zangas de comadres, o homem comum
português continue a ser o mais desconfiado da Europa. Julgo ser boa ocasião
para o advogado Jorge Sampaio exercer, como Presidente da República, um certa
pedagogia de magistratura de influência, explicando a certos ex-ministros,
vindos da extrema-esquerda, que houve, e pode haver, democracias de marca
absolutista e totalitária, coisa que apenas se evita com o tal Estado de
Direito.