O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR

 

Por José Adelino Maltez

maltez@netcabo.pt

 

 

Perdoem-me, estimados leitores, que volte a trazer à praça pública algumas questões corporativas que envolvem a minha profissão de professor catedrático. Faço-o por meros motivos de interesse público, porque acredito que ser professor não é apenas um posto de vencimento, mas, antes, uma vocação, típica daquele que professa. Sinto, pois, que tenho o dever de ofício de manifestar a minha repulsa perante mais uma das peregrinas ideias da actual equipa do Ministério da Educação: o provincianismo de, pelo camartelo das leis e dos decretos, usar-se o pronto-a-vestir que alguns tecnocratas pensam ser a média estatística dos restantes modelos europeus.

 

Não bastava a conseguida ofensiva contra o ensino superior privado (onde acabaram os turbo-professores, mas nasceram os caquético-lentes), o conflito com a Universidade Católica, ou o sumptuário da avaliação do ensino superior, com muitas leis que o grupo gestor da 5 de Outubro não consegue cumprir e acaba por pactuar. Parece que, agora, começa a ter as mãos livres para destruir os valores clássicos que marcam a elite das universidades portuguesas.

 

Por outras palavras, retomando os métodos furtivos da pré-abrilista reforma de Veiga Simão e enquadrando-os na mística saneadora do gonçalvismo, delineia-se mais uma daquelas "reformas fracturantes" que, mesmo quando se transformam em formais leis vigentes, são sempre leis inválidas, no plano dos princípios, e ineficazes, quanto à sua aplicação à histórica realidade social.

 

Refiro-me ao anteprojecto de estatuto de carreira docente universitária, onde se assumem modelos abstractamente uniformistas que, não atendendo à diversidade da experiência das várias escolas, pode agravar a necessária defesa da qualidade, gerando massificações suicidas, onde serão punidos todos os que procuram a excelência.

 

Com efeito, qualquer programa de mudança, porque não actua sobre uma tábua rasa, ou uma res nullius, tem de ter em conta as efectivas circunstâncias sobre que vai assentar. Importarmos agora, de forma abrupta, modelos que alguns pensam mais perfeitos na teoria, se pode constituir um razoável programa, corre o risco de não dar espaço para uma reforma realista, se não se estabelecer uma clara linha de rumo e um processo de transição que não sofram modificações na respectiva execução.

 

Julgo que a autonomia cultural portuguesa, o tal "pensar Portugal" para que a Conferência Episcopal apelou, exige a continuidade de uma instituição universitária que data do século XIII e é contemporânea da fundação das principais universidades do Ocidente. Julgo que o reino da quantidade é incompatível com a necessária procura da meritocracia e que urge a reconstituição de um verdadeiro elitismo democrático. Para tanto, importa manter o núcleo duro daquilo que foi a ratio studiorum, transformada, depois do pombalismo, no verdadeiro método de estudar, a que o modelo napoleónico da monarquia liberal, da Primeira República e do salazarismo continuou fiel.

 

Ora, há uma ideia e uma prática universitárias que, desde a I República, teve como elemento nuclear a figura do Assistente: aquele que, antes de ser Doutor e, depois de Licenciado, se treinava como Professor, pela experiência vivida das aulas e das investigações de escola. O tal Assistente que, antes de ser Mestre, pela execução da obra prima na própria oficina, tinha de ser Aprendiz e, depois, Companheiro, de acordo com o clássico princípio corporativo do cursus honorum.

 

Se agora podemos eliminar o nome, não nos convém extinguir a categoria, em nome da estatística, preferindo nominais títulos doutorais não enraizados na concreta cultura de uma escola e que acabarão por nos fazer regressar ao regime dos Lentes. Um Doutor que, antes de o ser, não tenha aprendido a Professar, pode não passar de papel de embrulho de um qualquer chouriço em figura humana. Um só Assistente experimentado pode ser bem mais útil e ter bem melhor qualidade que uma legião de doutorados sem qualquer contacto com a vida da escola e das aulas. Basta assinalar a lista infindável de licenciados portugueses com médias de 10 a 12 que, quase por correspondência e graças a elevado poder de compra, se doutoram em universidades europeias feitas para exportar títulos para o Terceiro Mundo.

 

Quando, de um momento para o outro, se altera o rumo estabelecido, preferindo-se, em nome da estatística e dos modelos abstractos, títulos formais, podemos vir a assistir a autênticas corridas a doutoramentos ou à importação de formais doutorados. A universidade portuguesa corre assim o risco de se transformar num alvo de tentativas de colonização por parte de entidades exógenas que decidam o fabrico em série de títulos que não mobilizam para o seu seio, preferindo exportá-los para zonas consideradas inferiores. Basta dar um salto para raia espanhola ou consultar certos anúncios sobre mestrados e doutoramentos por correspondência postal ou por correio electrónico.

  

As escolas que se pautam pelos valores clássicos não podem ser condenadas ao regime da inveja igualitária e do nivelamento por baixo. Aliás, não é por acaso que nas nossas escolas de elite mais se sedimentou a figura do Assistente. Especialmente em zonas onde a produção científica mais tem de ser fecundada pelas circunstâncias do tempo e do espaço portugueses. Porque, se em certas áreas podemos recorrer a uma importação passiva de modelos formativos exógenos, continuando a nossa magnífica tradição dos estrangeirados, há largas zonas, onde a aparente falta de produção em série de doutorados não significa uma ausência de vida universitária, mas, pelo contrário, uma preparação mais longa, em nome da qualidade.

Bem Comum da Semana

 

A ultrapassagem do momento anticlerical

A votação pelo parlamento de uma lei da liberdade religiosa que não coincide com o anticatolicismo e o facto da Conferência Episcopal não querer enclausurar-se na mera categoria do grupo de pressão, assumindo uma ofensiva cultural, em nome do valor Portugal, demonstra que, afinal, ainda há instituições. Isto é, entidades que não obedecem apenas a regras processuais, mas que também estão ao serviço de uma ideia de obra, ou de empresa, e assentam em manifestações de comunhão entre os seus membros. Quando é que alguns administrativistas compreendem que a sociedade são muitas sociedades, onde algumas até são comunidades e instituições anteriores à própria institucionalização do Estado? Quando é que certos constitucionalistas percebem que o próprio Estado não passa de uma instituição de instituições?

 

Mal Comum da Semana

 

De vitória em vitória, até à derrota final....

Na véspera de mais um Congresso do PS, as recentes sondagens à opinião pública confirmam aquilo que o bom senso da intuição sociológica nos tem vindo a apontar: que há um crescente desencanto e uma progressiva desconfiança face aos partidos políticos instituídos, mas que o eleitor médio prefere a segurança situacionista do mal menor, não transferindo as suas lealdades e expectativas para as oposições. O PS, se for marcado pela ideia de manutenção do poder pelo poder, pode assim respirar de alívio, reforçar a liderança de António Guterres e verificar que Jorge Coelho já se refez da queda da ponte. Convém, contudo, reparar no vazio em que assenta e recordar que a decadência situacionista em Portugal nunca se recorda da lei dos que vão, de vitória em vitória, até a uma súbita derrota final...