Para além dos Estados Unidos da saudade

Depois de uma profunda, mas breve permanência no Brasil, onde fui conferenciar sobre o Estado de Direito, num congresso internacional promovido por um dos ramos do "poder judiciário", reforçou-se a minha visão armilar da comunidade lusíada, o nosso seguro de vida universal, sem o qual seremos mais um dos búlgaros da Europa, com eventual direito à categoria dos bons alunos.

O meu renovado contacto com os problemas brasileiros confirma que os desafios da democracia representativa face à globalização são idênticos nas duas margens do oceano moreno, dado que em todo o lado a tal democracia parece sitiada pelo indiferentismo e pela corrupção, enquanto fenómeno de compra do poder. Também naquilo que foi a América Portuguesa se vive em estado de dormência social, com uma elite política cada vez mais afastada do povão e com uma verbosidade do discurso político, bem distante da prática, atingindo-se graves índices de falta de autenticidade.

Os poderes políticos democráticos ainda não encontraram forma eficaz de luta contra a corrupção. Alguns, como na Argentina, chegam mesmo a tentar a criação de uma agência única de combate ao fenómeno, anunciando-se um ministério da transparência e da ética, na mesma altura em que as televisões do país são invadidas pelos "transparentes "reality shows".

Outros, como o presidente venezuelano, procuram a demagogia esquerdista inconsequente, que tanto elogia Mao e Fidel como protege ostensivamente os investidores estrangeiros, enquanto condiciona e desincentiva os capitalistas nacionais. Porque, se os primeiros apenas visam o lucro, já os segundos têm a tentação de também interferirem na política interna.

A globalização gerou assim uma nova forma de politicamente correctos que leva os possidentes a apropriarem-se do discurso esquerdista, enquanto a corrupção continua a rimar com populismo e caciquismo. E o povão lá vai ficando sem adequadas formas de participação tanto no Estado-aparelho de poder, cada vez mais leviatânico, como na chamada sociedade civil, cada vez mais organicamente estruturada em torno dos privilegiados das forças vivas.

Enquanto na Europa há dois terços de gente que vive cada vez melhor e um terço de excluídos, na chamada América do Sul, a relação inverte-se, com uma maioria sociológica de excluídos, uma base de pobreza que sustenta uma minoria de ricos cada vez mais ricos. A este conjunto começa a dar-se o nome de economias emergentes que, caso entrem em derrapagem, à maneira indonésia, podem pôr em risco o equilíbrio desta frágil ordem internacional.

Retomando a referência ao Brasil, confesso que o meu amor a este Novo Mundo vai além da mera romagem ditirambica aos Estados Unidos da Saudade de que falava António Ferro. Tenho de amar o Brasil porque amo Portugal e o quero capaz de vencer os balanços de uma balança da Europa onde corremos o risco de ser manejados pelas teias do novo directório.

Ora, face a uma globalização, marcada pelas regras do jogo das potências dominantes, de marca anglo-saxónica, importa resistirmos num espaço mais amplo de uma comunidade de afectos que tanto passa pela comunidade lusíada como pela confraria dos hispânicos, como propuseram Gilberto Freyre e Agostinho da Silva, na senda da profecia de Joaquim Pedro de Oliveira Martins.

Na América do Sul, uma multidão imensa, em luta pela sobrevivência, talvez não tenha tempo para pensar nas raízes da identidade. Assim também o Brasil, cujo Congresso edita as obras do nosso Silvestre Pinheiro Ferreira, que a maioria da nossa classe política continua a desconhecer. O Brasil profundo, como encontrei no Maranhão, na pequena cidade de Alcântara, onde continuam pujantes e autenticamente populares as chamadas Festas do Divino, isto é, do nosso Espírito Santo, como se praticam ainda nos Acores. O Brasil da cidade de S. Luís, onde o projecto "Reviver" reconstruiu quase réplicas da nossa Alfama.

No Brasil, nós, portugueses, e nós, brasileiros, comungamos do mesmo sentido de revolta contra certos ventos da história dos vencedores. Mas, a revolta dos Canudos ainda resiste e talvez venha a florir num mundo melhor, com mais justiça e mais solidariedade. Talvez não esteja longe o dia em que o império dos afectos volte a ter consigo a força da razão.

Bem Comum da Semama

O Português que nos pariu

Li esta semana o pequeno livro da jornalista e romancista brasileira, Angela Dutra de Menezes, dito "O português que nos pariu", onde é contada uma história lusitana, na qual as falhas ciêntíficas são compensadas pelo ardor imaginativo de quem nos ama e nos conhece de raíz. Afinal, os Estados Unidos da Saudade, também podem ser saudades de futuro.

Mal Comum da Semana

Viva a Europa dos Pequenos Estados

O "não" irlandês ao modelo de Nice, tal como o anterior "não" dinamarquês a Maastricht, pode obrigar a que nós, europeus, recusemos o modelo furtivo de construção do chamado directório, sobretudo, o da locomotiva franco-alemã, prenhe de eurocratas sem sonho e sem ideia de Europa. Espero que o triunfo de Blair possa dar cumprimento ao sonho de Jean Monnet, para quem sem presenca forte de britânicos não seria possível uma Europa democrática, uma democracia de muitas democracias.