Pela Santa Liberdade!

 

Por José Adelino Maltez

maltez@netcabo.pt

 

Hoje quase vou registar meus pensamentos à maneira dos "blogues", procurando a beleza do breve, da nota solta que se esvai num écran, ou numa folha de papel. São folhas que voam num ápice, na brisa do tempo que passa. Até podem ser introspecções, restos de poema por cumprir. Ou farpas difusas, ferroadas, palavras contra palavras, num corropio.

Porque os "blogues" sempre foram. Já o eram antes de o serem. Cadernos de notas esparsas que, na gaveta guardávamos, impressões, esboços, pequenos gestos, grãos do próprio tempo pensado, escorrendo pelos olhos dentro, pelo corpo além, por dentro de nossa mente.

 Os "blogues" passam e não prendem. No instantâneo se confundem, com outros restos, feitos destroços, pedaços que se amontoam no baú da memória. Folhas ao vento, folhas do tempo, sinais de um todo, como a teia de Penélope. E, pedra a pedra, por dentro de mim mesmo, onde, cá por dentro, outros me vão lendo, em raiva, em comunhão, em lava...

Aliás, o melhor remédio para as úlceras do tubo pensador, dizem os conhecedores, é sabermos escolher as iguarias que neles lançamos e sabermos expulsar, com devidos condimentos meio-camilianos, aquilo que nele provoca absolutismo.

Com efeito, nunca gostei muito de pidismo pretensamente antipidesco nem de insinuações inquisitoriais de “jet set”, feitas de fascismo pretensamente antifascista. Por isso, sempre detestei certa direita sem ideias, que, por continuar a seguir a cartilha do marialvismo emburguesado, continua a ser a mais estúpida do mundo. Desses que apenas sabem fazer ataques pessoais, trocando o nome das fichas da “formiga branca”, da PIDE e do COPCON e que até julgam que têm direito de insultar os pobres paizinhos dos pretensos plebeus “feios, porcos e sujos” que, segundo eles, apenas têm a obrigação de bater palmas aos filhos da gente fina que, de vez em quando, vão às feiras visitar o povo, com a mesma chapeleta com que fazem caça nas coutadas dos primos da linha de Cascais.

Noutro plano, aparentemente mais elevado, também sempre incompreendi os que pensam que a direita é uma simples posição geométrica, definível pelo acaso histórico. Penso naqueles que, em 1974, não estavam à esquerda dos que se quiseram rigorosamente ao centro e de quem não temos que sofrer as freudianas reviravoltas serôdias provocadas pela educação salazarenta. Refiro-me, evidentemente, a mais uma das sempiternas lucubrações de um marechal da dita direita que persiste em querer ser a única autoridade capaz de emitir certificados de “nihil obstat” sobre a democraticidade das direitas que possam emergir até ele morrer.

Prefiro dizer que se eles fossem as únicas direitas a que temos direito, eu ia, com a extrema-esquerda, para a Maria da Fonte e para a Patuleia. A fim de mandar os Cabrais para o marquesado e o grão-mestrado, antes que eles nos impusessem outra Convenção do Gramido, em nome de uma nova Quádrupula Aliança capaz de gerar um novo Porto Rico.

Compreendo, pois, a fúria do neopidismo, bem ultra-reaccionário no seu infra-estrutural inquisitorialismo, desses que se sentem agora coactos pelos incêndios que geraram, procurando assumir-se como aqueles bombeiros pirómanos da anedota real.

Antigamente a "oligarquia dominante", usava uma palavra bem mais sintética: "judeu". Depois foi a de "comunista". Seguiu-se o "fascista". Manteve-se o "saloio", o "provinciano" ou o filho de mãe indecorosa.

Acrescentarei apenas que me basta executar mentalmente o gesto bem cultural do Zé Povinho do Bordalo. Não sendo do Minho nem comendo jaquinzinhos, dado que, quanto a animais menores, com escama e espinha, a União Europeia é bem explícita, sempre acrescentarei que prefiro o leitãozinho da Bairrada, a única maneira de comer projectos de porco, antes destes produzirem banha mental. Abaixo os bonzos! Sejam endireitas ou canhotos...

A política faz-se de baixo para cima, horizontalmente, e não pela via do verticalismo dos influentes. Esta deve ser a postura dos que professam a ideia "liberal", resultante da soma do "liberdadeiro" com o "libertacionista", de acordo com aquilo que considero a nossa tradição "azul e branca", conforme a síntese da "santa liberdade" da traída Maria da Fonte.

Logo, a razão de Estado não tem uma regra diferente da ética da convicção, a não ser para os que se julgam iluminados e como tal se excepcionam, ao invocarem, como regra de conduta, a mera ética da responsabilidade que, parecendo ter razão no curto prazo, se perde no médio e longo prazos, sendo portanto uma má moral e uma péssima política.

Tal como a pequena-grande minoria dos meus concidadãos, reconheço que sou marcado por aquela rusticidade que nunca se adaptará à sociedade da corte, e que tem a ilusão de querer ser de um só rosto e de um só parecer. Por isso tenho de assumir-me como radical, contra a "servitude volontaire", porque aprendi a dizer "não" à falta de autenticidade daqueles jogos de poder que nos obrigam a torcer para não quebrar.

Quero estar na primeira linha dos que denunciam o poder pelo poder, de maquiavélicos ou nietzschianos, essa atitude que avassala os jogadores e onde passam a ser meras insignificâncias as eventuais consequências persecutórias, mesmo que sejam levadas a cabo pelas sargentadas de má memória, contra aqueles que, depois de serem usados no estádio anterior, não se adaptaram às novas circunstâncias.

Temos a responsabilidade histórica de reconciliar a democracia com a tradição portuguesa, especialmente quando continua a faltar um sistema político feito à imagem e semelhança da psicologia portuguesa. De acordo com a secular tradição democrática em Portugal. Com uma portugalidade imanente que temos de aprofundar, desenvolver e futurizar.

É por isso que, como velho liberal, continuo a não ser neoliberal. Continuo a estar contra a importação dos modismos que não reparam na pesada herança deixada por essa aliança do nosso capitalismo de Estado com o chamado socialismo de consumo.

Julgo que os governamentalismos vigentes continuam a ser um híbrido puro que procura conciliar as vantagens conservadoras da gestão pós-revolucionária com a incubação das respectivas sementes superadoras, tratando de cobrir tais contradições com o mito conveniente do reformismo.

Acontece que o clássico Estado do intervencionismo imperial ou do nacionalismo proteccionista tem de se adequar ao ritmo de uma sociedade aberta à concorrência internacional, onde os monopólios mercantilistas ou os processos indirectos de controlo estadual dos meios de comunicação social levam a um desperdício de recursos.

Aliás, a verdade poderá aproximar-se da linha da visibilidade, como o azeite que vai subindo a água, quando passar a febril agitação desta sociedade que tem ilusões de ser hiper-informada.

Os portugueses que não são meros ovençais das ministeriais figuras, os que não querem continuar bonzos, entre endireitas e canhotos, como se direita e esquerda fossem posições ontológicas, só passíveis de benzeduras teológicas, têm que continuar a lutar contra todos os despotismos

Têm que reconhecer que permanece a oligarquia das bestas dos sucessivos devorismos e, portanto, que apoiar os setembristas de Passos Manuel e que derrubar tanto os Cabrais como os seus bastardos fontistas.

Porque os ditos estão bem vivos, apesar do caceteirismo ainda não ter vindo para as ruas, dado que apenas se manifestam os jovens candidatos à Junta Expurgatória. Cá estaremos vigilantes, pela Santa Liberdade! Guilhotina, nunca mais! Que todos os manetas sejam remetidos para Paris!

Estou tão "imensamente à direita" de quem quer "conservar o que está" que, ultrapassando a "medida" do geométrico hemiciclo, fui à esquerda da direita, passei para o extremo-cento e, de tão radical, já entrei na grande espiral da "revolução". Porque na anaciclose os extremos não se tocam, só os situacionistas se confundem, usando do mesmo inquisitorialismo de grão-mestres impunes.

Repito: inimigo é "judeu", "miguelista", "talassa", "maçon", ""congreganista", "comuna", "fascista". Por outras palavras, quem ficar sujeito a esta "diminuição de cabeça", pode ser alvo de toda a adjectivação de quem vê no espelho os respectivos fantasmas.

Com efeito, qualquer manual de arumentos estalinistas, goebbelsianos e pidescos conhece a técnica totalitária do "quem não está por mim, está contra mim". Qualquer pindérica vulgata dos autoritarismos conhece o processo do "quem não está contra mim, está a favor de mim". Só que o autor destas linhas não tem inimigos, apenas sente que deve denunciar as ideias erradas.

Parafraseando o antigo, mas não antiquado, liberal Ortega y Gasset, também digo que a direita e a esquerda continuam a ser uma estupidificação típica dos que sofrem de hemiplegia mental e que nos querem binarizar, de forma maniqueísta. Porque a direita a que chegámos resulta da esquerda que temos, principalmente quando a direita a quem concedem o direito à palavra é a direita que convém à esquerda, onde os que emergem são sempre os que representam certas caricaturas que visam perpetuar a democratura

Confesso que nada de pessoal me move contra certos epifenómenos da esquerda e da direita instaladas ou que estas palavras reflectem qualquer atitude de “prima dona”, mas já arranquei todos os restos de punhos de renda que tinha disponíveis. Apenas não tolero os que se assumem como os difusores do caminho e da verdade, que apenas pensam em personalização do poder.

Mas tenho fundas razões para combater uma corrente bem mais ancorada em certa atavismo lusitanista, que mistura a atitude do “português suave” com um certo leninismo metodológico, considerando que, face a uma linha considerada justa, de se estar com o pretenso sentido da história, há perigosos desviacionismos, tanto à esquerda como à direita.

Há, na verdade, uma certa geração que se pensa vanguardista só porque foi educada pos certas literaturas de justificação constante de algum  memorialismo de políticos jubilados e que repete o niilismo da cultura dos “soundbytes”, quando ela, afinal, é bem mais pré-abrilista, continuando os argumentos do marcelismo, quando este proclamava que toda a não-esquerda, que estava contra o regime defunto, tinha que ser dos ultras.

Mesmo os descendentes do Integralismo Lusitano, que, na senda de Paiva Couceiro, Afonso Lopes Vieira, Alberto Monsaraz, Luís de Almeida Braga, José Hipólito Raposo e Vieira de Almeida, participaram no Congresso da Oposição Democrática, eram bombardeados pela propaganda do regime com o epíteto de extrema-direita. Aliás, o próprio Salazar, durante a I República, namoriscando e lançando piropos a António Maria da Silva, era por este qualificado como "centrista"...

Seguiu-se, já depois de Abril, um neomarcelismo revisto e acrescentado, com um melodramático pseudo-centrista que cantarolava: "a direita que não está comigo é naturalmente fascista". Até um Francisco Lucas Pires não escapou à campanha, bastando recordar algumas tristes declarações de alguns bonzos que, situados na extrema-direita social e económica, tentavam inventar um fantasma em quem pudessem bater, a fim de obterem, da esquerda-baixa, um certificado de democraticidade.

Portugal não pode estar dependente da idiossincrasia ambiciosa de certos ministros, ex-ministros e outros líderes políticos, no activo, na reforma, na jubilação ou no estado de cadáveres adiados que procriam vindictas. Especialmente dos que conseguem fingir que é verdade, a mentira que tão completamente vão ensaiando.

Portugal não pode depender de certas formas secundárias de personalização do poder, onde as cabeças visíveis da emanação mediática recobrem as moluscas fundações onde os coisas assentam. Portugal precisa que a palavra emitida volte a adequar-se à vida vivida. Não podemos continuar a viver entre o palco que todos vemos, encenado pelos bastidores a que só alguns acedem, e que muitos vão agora cerrando com as portas blindadas do falso segredo de Estado.

Por isso, talvez tenha o direito de proclamar que, politicamente falando, talvez não haja apenas o preto e o branco, mesmo que seja a direita pura e a esquerda imaculada. Entre o preto e o branco, há muitas tonalidades de cinzento e não apenas um espaço geométrico, mensurável em percentagem, com um centro, no rigoroso meio de uma qualquer recta imaginária. Politicamente falando, cada homem é sempre uma mistura, essa simples encruzilhada, onde o acaso e a necessidade do Criador fazem, de cada um, o tal ser que nunca se repete. Por isso, muitas direitas de hoje são esquerdas de ontem, tal como muitas esquerdas são antigas direitas.

 Ora, o pior da divisão entre direitas e esquerdas está precisamente nos pressupostos e preconceitos que classificam os valores de esquerda e os valores de direita. Permitam-me, pois, que insista com certas provocações, como a possibilidade de um "miguelismo liberal". Até poderia dizer, com toda a seriedade, que também sou um "realista republicano" e um "federalista nacionalista". Eis a razão pela qual uso uma expressão de Miguel Reale, segundo a qual há quem esteja "na esquerda da direita" e que pode assumir-se pelo "social-liberalismo". Tudo depende dos tons de cinzento utilizados pelo politicamente incorrecto.

  Partindo destes pressupostos posso dizer, com toda a coerência, o seguinte: um liberal pode ser a favor da justiça social e da justiça distributiva; a direita pode ser a favor da regionalização; pode ser europeísta;  e até pode não ser confessional.

 Para tanto, podem encontrar-se alguns históricos e futuros da direita que que prefiram Leonardo Coimbra ao Cardeal Cerejeira, Fernando Pessoa a Monsenhor Moreira das Neves e Agostinho da Silva a São José Maria Escrivá. Pode haver gente de direita que tenha participado na equipa directiva do primeiro partido português do arco constitucional que se proclamou da direita e liberal, até ousando invocar o pessoano "nacionalismo liberal". Pode existir gente de direita que sempre tenha sido europeísta e que se tivesse assumido contra o eurocepticismo primitivo. Pode haver gente de direita que, entendendo que não há um abstracto povo, mas uma federação de povos, tenha participado no movimento "Portugal Plural" ou na "Direita pela Regionalização". Pode haver gente de direita a acreditar que, antes de haver pátria, têm que existir muitas pequenas pátrias e que o Estado não vem do vértice da soberania para os súbditos, mas antes de baixo para cima, dos cidadãos, enquanto república ou comunidade, para o aparelho de poder. Eu sou um deles. E talvez haja mais.

Citando um meu companheiro de crenças, Professor Doutor Paulo Ferreira da Cunha, também eu digo que "há círculos ultra-minoritários, muito selectos, em que o ser-se de direita, da pureza da "direita" (expressão dita com enlevo quase religioso) é que é o santo e a senha. Aí compensa ser de direita, uma direita que se emula com a "esquerda caviar" (e à qual já ouvi chamar "direita jaguar", expressão porém ainda sem curso legal), e por isso, tal como ela, tem a mesma concepção ritualística da propriedade dos nomes e dos labéus. Tal como a esquerda intelectualista e purista, essa direita crê que o poder lhe é devido por um qualquer direito divino, e ter poder é, antes de mais, nomear as coisas. Poder genesíaco original que o "primeiro rei", Adão, teria tido ao pôr o nome aos animais - assim o diziam os velhos autoritários ingleses, que Locke refutou no Segundo Tratado do Governo Civil".

Não tendo herdado, de nenhum dos seus avoengos, o famoso cacete, não o tendo aburguesado para bengala e também sem o ter transfigurado em punho cerrado, apenas mantenho, da violência plurissecular dos meus egrégios, a sublimação gestual do Zé Povinho, a que jamais renunciarei.

Sei que algumas higiénicas almas da nossa praça ficam muito agastadas quando alguém, que tem as mãos livres, decide enfrentar o culturalmente correcto da direita que convém à esquerda, bem como da esquerda que convém à direita.