Os autores destas linhas foram co-autores de um pequeno livro intitulado manifesto de universitários, onde inventariaram algumas ideias sobre o bem comum dos portugueses, um texto pedagógico sem os rigores metodológicos da investigação académica, que não quis situar-se no campo das movimentações político-partidárias e procurou fugir ao esquema do pensamento dominante entre a actual história dos presentes vencedores. São agora desafiados para, através de uma intervenção semanal, praticarem o civismo da conjuntura, dando opinião sobre os acontecimentos, as doutrinas e as ideias. Pedem-nos que larguemos o saber epistémico da nossa actividade universitária e que passemos ao saber aplicado dos compromissos, da filosofia prática. É o que vamos tentar fazer, exercendo um dos principais direitos da cidadania: a liberdade de expressão de pensamento.
Queremos afirmar que, como homens livres, podemos reflectir sobre o fenómeno do bem comum e ter, como universitários, opiniões políticas. As nossas diferentes formações académicas, os diversos percursos, os variados compromissos políticos e as conflituantes concepções do mundo e da vida de cada um de nós não nos impedem de exprimir uma opinião comum, assente numa crença funda nos valores nacionais. Neste sentido, chegámos, assim, a um acordo quanto às perguntas mesmo que não tenhamos todas as respostas para as questões inventariadas.
Com efeito, sentimos que importa lutar contra a corrente deste situacionismo mental da ditadura do statu quo, esse status in statu, esse establishment de um blocão central e centralista que nos vai colonizando, desde logo porque marcado por um complexo binário que polariza o pensamento entre uma pretensa direita e uma pretensa esquerda, onde há um centro que é mistura e imaginados extremos, sempre medidos em termos de percentagem, quando pensar é fugir do caixilho que nos limita e inventar para além do preconceito.
Por nós, subscrevemos a democracia pluralista, o Estado de Direito e os direitos do homem, esses princípios bássicos das comunidades políticas, hoje universalmente aceites, mas hipocritamente interpretados. Ideias antigas, mas não antiquadas, já presentes no discurso do ateniense Péricles, um dos pais-fundadores da democracia e que hoje tanto marca a União Europeia, como os grandes mestres do humanismo activista, de laicos e cristãos.
À partida, temos de concluir que a liberdade política e a liberdade económica se exigem reciprocamente e que ambas, em interacção, podem ser compatíveis com aquela justiça inteira que abrange a justiça comutativa, a justiça distributiva e a justiça social. Deste modo, fiéis ao essencial da herança que produziu a nossa democracia da sociedade civil, queremos continuar a vocação daqueles portugueses que, nestes dois últimos séculos, tentaram conciliar a posição liberal com a justiça social e humanismo cristão, procurando consolidar a liberdade nacional na pluralidade de pertenças a comunidades supra-estaduais que garantam esses valores.
É esse passado, lido sem complexos de guerra civil ideológica ou de falsas questões de regime, que nos pode levar a conciliar alguns dos avós que nos desgovernam o subconsciente - pedristas e miguelistas, regeneradores e progressistas, monárquicos e republicanos, socialistas utópicos e democratas-cristãos, integralistas e seareiros, radicais e adeptos de um presidente-rei.
Os portugueses que somos, herdeiros dos portugueses que fomos, têm de descobrir ser manifesto na nossa história que, muitas vezes, em lugar da luta de contrários, de amigos contra inimigos, de reaccionários contra progressistas, houve divergências e convergências possíveis e, sobretudo, aquelas saudades de futuro, sem as quais as pátrias não são possíveis. A pluralidade de pertenças também é diversidade de heranças, para que surjam os desafios sem os quais Portugal não vale a pena.
A complexidade portuguesa dos tempos que correm, onde, entre divergências e convergências, apenas podem surgir a emergência de novas convergências e de novas divergências, apenas demonstra que continua perene a procura do bem comum, aquela síntese da ordem e da justiça de que falava São Tomás de Aquino.
A novidade da nossa intervenção talvez passe pelo reconhecimento de que nada há de novo debaixo do abraço armilar que constitui o ambiente do nosso símbolo nacional. E mais uma vez nos dirão o que a outros, antes de nós disseram. Os nostálgicos da revolução perdida talvez nos qualifiquem como reaccionários. Os saudosos da reacção não alcançada talvez nos alcunhem de falsos conservadores.
Será de recordar o que salientou há cerca de cento e cinquenta anos Alexis de Tocqueville: não é a história que faz o homem, é o homem que faz a história, mas sem saber a história que vai fazendo. Porque a história é produto das acções dos homens e não apenas das intenções de alguns deles.
Parafraseando Daniel Bell, quase pode dizer-se que o tempo de complexidade que estamos vivendo implica tanto a procura da generalidade, do interdisciplinar, dessa fundamental ciência dos assuntos gerais que se aproxima do bom senso, como o estabelecimento de princípios axiais diferentes (disjuntion of realms). Neste sentido, aquele que é conservador nos princípios, nos valores culturais, no enraizamento axiológico e comunitário, também pode ser liberal no tocante ao modelo político, e defensor da justiça social quanto à economia.
Pode estar em crise o soberanismo do Estado, não estão em crise as liberdades nacionais. Pode estar em crise certa concepção jacobina da democracia, não está em crise o conceito clássico de cidadania nem a perspectiva poliárquica e pluralista da democracia. Podem estar em crise modelos económicos que se esqueceram da justiça política, não está em crise a necessidade do mercado. Como ensinava Emmanuel Mounier, os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta, senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade.
Acontece apenas que a principal das forças vivas da actualidade é o povo português, isto é, a mistura de povo com uma certa ideia de Portugal, onde o valor Portugal, a primeira palavra da nossa Constituição, é que dá sentido ao povo, mas onde o adjectivo português só existe em função do substantivo homem concreto. Onde a essência só se realiza através da existência que, afinal, constitui a única realidade substancial. É em nome da fidelidade a Portugal e à solidariedade entre todos os portugueses que devemos assumir a resistência do nosso libertacionismo, compatibilizando-o com o grande jogo do europeísmo e do globalismo. Com um Estado que não transforme as potencialidades em vulnerabilidades, mas, antes pelo contrário, que assuma o respectivo poder funcional e volva a vulnerabilidades em potencialidades, principalmente no ritmo da balança da Europa. É sobretudo no palco da política internacional que se jogará a viabilidade portuguesa. Do Estado e da Sociedade dos portugueses. Só com a Sociedade no Estado e o Estado com a Sociedade poderemos enfrentar o desafio da Europa e da globalização. Por outras palavras, só gerindo dependências, potenciando inderdependências e assumindo o patriotismo de queremos continuar independentes é que valerão a pena os vínculos libertadores de cumprir Portugal.
Reabilitemos o Estado pela qualidade do lugar público da justiça. Voltemos à autonomia da sociedade, recriando a nossa tradicional democracia da sociedade civil. Libertemos a economia. Para que haja homens livres, portugueses conscientes das liberdades nacionais, cidadãos do género humano. Pelo abraço armilar, Portugal vale a pena. Esperanças de Portugal, futuro do mundo…