PORTUGAL DOS PEQUENITOS E A MANIA DAS GRANDEZAS

 

 

Com o país político em regime banhista, preparando a chamada “rentrée”, poucos estão dispostos à leitura de pesadas análises sistémicas. É por isso que, tentando seguir o ritmo estival, vou ceder à moda de aconselhar, aos nossos políticos profissionais, algumas leituras de férias.

 

Com efeito, se pudesse ser ditador da educação política durante alguns dias, emitiria um decreto com força de lei, tornando como leitura obrigatória três fundamentais livros portugueses, indispensáveis para a compreensão do atavismo da nossa classe política. Refiro-me, evidentemente, ao “Portugal Contemporâneo” de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, ao “Vale de Josafat” de Raúl Brandão e à “Conta Corrente” de Virgílio Ferreira, obras onde abundam surpreendentes retratos psicológicos da continuidade decadentista da monarquia liberal, da república maçónica e do abrilismo pós-revolucionário.

 

É impressionante verificarmos como há uma identidade fundamental dos políticos profissionais portugueses nestes quase duzentos anos de sociedade demoliberal, onde domina a mentalidade do “Portugal dos pequenitos” com a “mania das grandezas”. Um exemplar laboratório de sociologia política, onde há a permanente lei da “queda do anjo”, conforme a sátira de Camilo Castelo Branco, com fundas raízes nesse magnífico tratado da “Arte de Furtar”

 

Na verdade, os políticos profissionais deste país, esses que seguem o “cursus honorum” dos deputáveis, ministeriáveis, presidenciáveis, são hoje dominados por uma geração cinquentona, ou quase, marcada por uma traumática saída da adolescência nos anos sessenta, do crepúsculo do Estado Novo. Todos eles dependem muito das más leituras que fizeram entre os dezoito e os vinte anos de idade. É de alguns desses anjinhos decaídos que apetece falar.

 

Quando no Verão de 1968, António de Oliveira Salazar caiu da cadeira, Gonçalo tinha acabado de entrar na Faculdade e de se assumir como militante comunista, quando nem sequer imaginava que viria a ser ministro de um governo PS. Acabara, então, de entrar na categoria dos “intelectuais”, graças a duas férias grandes de meditada leitura. Entre o sexto e o sétimo ano, a conselho do encarregado das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, devorara António Sérgio à sombra da figueira do quintal, mas a secura do racionalismo calculista do grande líder intelectual da “Seara Nova”, se o fez deixar de ir à missa, deixou-o num vazio de inteligência emocional, que só foi colmatado nas férias seguintes, depois de ter concluído brilhantemente o curso dos liceus, quando encontrou o rumo certo nas obras de Lenine.

Hoje, depois de muitas andanças e contraditas, continua sem ir à missa e deixou mesmo de ler em profundidade, apesar de já ter começado a citar Karl Popper, após assistir a umas conferências de João Carlos Espada; de ter encomendado as últimas obras de Anthony Giddens por causa da Terceira Via; e de considerar John Rawls um chato da pior espécie.

 

Encontrei-o noutro dia numa dessas livrarias de centro comercial, onde conversava muito amigavelmente com o Carlos, seu patrício beirão, também ele ex-ministro da mesma pasta, mas pelas bandas do PSD. Cumprimentei-os brevemente, mas não quis interromper aquele acto de tolerância democrática, entre memórias de aventuras de faculdade e alguns segredos de Estado. Porque são bons rapazes, apenas prometi vingar-me publicando esta reportagem íntima.

 

Carlos é um pouco mais novo que Gonçalo, mas também virou intelectual depois de duas solitárias férias grandes. Nas primeiras, em vez de Sérgio, devorou Jean-Paul Sartre e também deixou de ir à missa. Nas seguintes, percorreu rapidamente Lenine, mas logo passou para as obras completas de Mao Tse Tung. Acabou naturalmente na extrema-esquerda e quando apareceu o PREC assumiu-se como o mais exaltado dos saneadores de CDSs, PPDs, PSs e PCs. Hoje, o Carlos, depois de cavaquistanizado, continua a ser uma das eternas esperanças da direita reviralhista, é um bem sucedido ajudante dos homens de negócios do “ancien régime” e continua a ler obras de alta densidade, pelo método da fotocópia, até porque dá aulas numa universidade privada de Vila Nova da Sardinha, actualmente dirigida pelo Joaquim de Arriaga.

 

É com este Quinzito que fecharei o tríptico de hoje. Mais novito que os outros dois, nunca passou as férias grandes em ascetismo de leitura. Licenciadito com metade de passagens administrativas, quase tirou o curso por correspondência e, desde pequenino, começou destacar-se como líder dos jotas. Preferindo a radical luta contra as ondas do mar revolto durante o Verão e a popular visita a feiras em campanha eleitoral durante a invernia, ficou senhor de uma retórica fulminantemente vazia que o elevou a secretário de estado adjunto do ministro adjunto e, depois, ao altar de ministro mesmo adjunto.

 

Quase quarentão, decidiu finalmente intelectualizar-se, aceitando o convite para gerir os restos de uma dessas também pequenitas universidades privadas, cujo accionista maioritário é o principal empreiteiro do município onde se situa a dita. A tal universidade, que havia sido fundada pelos amigos políticos do Gonçalo, teve o azar de deixar entrar na sociedade gestora da mesma, a câmara municipal, onde, por acaso, Quinzito exerce as funções de chefe do areópago.

 

É a partir de então que este decide brincar às universidades, isto é, deter o alvará duma delas e, pelo método do cheque, comprar doutores, professores e outros seguidores, a fim de criar um “brain trust” para a conquista e manutenção do poder dentro do respectivo partido. Apesar de, no íntimo, lhe apetecer gritar “abaixo a inteligência”, até decidiu rever autocraticamente programas de filosofia analítica, porque não tinham utilidade e citavam “espanholitos”, ao mesmo tempo que chamou para sacristão um desses professores de província que gostam de passar os fins de semana em Lisboa. Em seguida, nomeou um especialista em massas falidas para subchefe e, com o dedo em riste, típico do autoritarismo burocrático, entrou no jogo do chicote e da cenoura. “Se eu já fui ministro, quase dono do Estado, não pactuo com qualquer ministro”. “Se eu já fui ministro e legislador, não tenho que respeitar as leis”. “Aliás, estou-me borrifando para inspecções, comissões e tribunais. Hei-de voltar a ser ministro, se não chegar mesmo a primeiro-ministro”.

 

Num dia suspendia os regulamentos, no outro, ameaçava os funcionários com os regulamentos que, entretanto, suspendera. Num dia, elogiava a autonomia dos órgãos e dos conselhos, no outro, despedia todos os membros dos órgãos e dos conselhos. Num dia, tentava seduzir, no outro vingava-se em ódio contra os que não aceitavam ser seduzidos.

 

O Quinzito, mais “imune” que os nobres do Ancien Régime, vai continuar a mandar. A ser deputado. A ser autarca. Há-de ser ministro, presidenciável, dono. A coisa que está a desfazer há-de continuar a chamar-se universidade. O partido de que faz parte vai continuar-se a tratá-lo democraticamente. E os meus e nossos impostos hão-de continuar a pagar-lhe.

 

Infelizmente, o Quinzito foi ministro da nossa democracia, demonstrando que não sabe o que é o Estado de Direito, a separação de poderes e o institucionalismo. Como se demonstra pelos factos, ainda tem a cultura do pombalismo absolutista, segundo a qual (a) o que o príncipe diz tem valor de lei;  (b) o príncipe não está sujeito à própria lei que faz; (c) o Estado sou eu.

 

O Quinzito existe. É o produto da dialéctica do Portugal dos Pequenitos. Onde a tese é o Carlos (é preciso ter sido maoísta aos 18 anos para ser líder da direita aos cinquenta), a antítese se chama Gonçalo (quem leu Lenine aos dezoito anos nunca mais é capaz de ler nada) e a síntese tem de ser o Quinzito (a democracia tende a ser democratura se for dominada pela cultura da cavalgadura). Todas as semelhanças com a realidade não são apenas coincidências.