Nova Iorque, a capital da nossa breve aldeia global, essa cidade
feita quase por subscrição mundial, acabou ferida de morte no postal ilustrado
do seu próprio coração. Foi num dos últimos dias do primeiro Verão do século
XXI que um breve fio de linho nos fez passar da ficção para a realidade, dos
efeitos especiais hollywoodescos e dos simuladores de jogo da microsoft, para o
eterno mistério da divina dignidade humana através da exposição pública, e em
directo, da íntima banalidade do mal.
Eram duas torres
gémeas, orgulhosamente feitas com a
fragilidade do aço e do cristal, onde se concentravam algumas das principais
sedes da geofinança que, muito higienicamente, iam maquinando negócios e
especulações que, hora a hora, afectavam a vida de milhões de homens. De um
momento para o outro, alguns guerrilheiros suicidas, treinados pelos sucessivos
Lawrences da Arábia dos nossos serviços secretos, e armados com canivetes,
decidiram não obedecer ao guião do produtor e, invertendo a posição das
armas, fizeram sair o tiro pela
culatra, em nome ódio.
Afinal, esta bela
ordem mundial, procedente de Ialta, esta paz dos vencedores, imperialmente
comandada, que durante meio século nos iludiu, inventou demónios fora de nós
mesmos, dizendo que o inferno eram os outros, quando, afinal, eles estão dentro
de nós mesmos e não serão exterminados se, muito cientificamente, apenas
assassinarmos aqueles que pensamos ser os mandantes do crime.
Uns falam no
ataque à própria democracia, outros num confronto entre a civilização e a
barbárie, numa eterna luta do mal contra o bem. Muitos tratam de justificar o
horror, usando argumentos cobardes, com um pau de dois bicos que recordam
Hiroshima e Nagasaqui.
E alguns outros
alibis se vão lançando. Repetem-se anedotas sobre a burrice de Bush, não se
reparando que a presidência norte-americana é, sobretudo, uma instituição,
onde, conta mais a pilotagem automática do que a interpretação do actor que a
representa. Não faltam sequer os comunistas cunhalistas que retomam os tiques
escleróticos de certos discursos da guerra fria.
Sei tudo isto,
mas não quero lavar as mãos como Pilatos. Prefiro sujá-las no apoio que
conscientemente dou às instituições da república norte-americana e aos líderes
incontestados do bloco de aliados a que me orgulho de pertencer. Mas não possso deixar de dizer,
angustiadamente, que, para além da necessária acção de polícia reprimindo os
prevaricadores, importa dar força a um mais eficaz direito internacional.
O compreensível e
necessário acto de polícia, capaz de lancetar o terrorista, não deveria ser
qualificado como acto de guerra, dado que este último depende da incerteza
quanto ao vencedor, joga na roleta do
acaso e na incerteza do jogo de morte. Queria que a acção de punição fosse
duradouramente eficaz, sem necessidade de guerra, que sempre foi um terror
institucionalizado e legalizado, assente no esquecimento de muitas outras
“twintowers”, onde quem com ferro mata com ferro morre.
Prefiro Kant a
Rambo. O tal acto punidor que se avizinha, visando eliminar os autores morais e
materiais do horror a que todos assistimos, pode ser terapêutico, mas nunca
será suficientemente preventivo se não houver coragem para a criação de uma
semente de Estado de Direito Universal.
Sugiro que os norte-americanos, em nome dos princípios da bela
constituição que os gerou, adiram, agora, aos modelos do tribunal penal
internacional.
É evidente que o
mundo, aqui e agora, não vai vencer o inferno e aceder à salvação, que só a eventual
vida eterna e a paz dos santos nos pode trazer. Mas, porque não somos anjos,
mas homens, que caem e se levantam, que pecam e se arrependem, também não somos
bestas. O mundo é imperfeito, mas podemos aperfeiçoá-lo, criando instrumentos para um mundo menos
mau, ao contrário do que proclamam os hobbesianos, desesperados com o
homem-lobo-do-homem, sempre em luta com os adeptos da utopia, à procura do bom selvagem.
Apesar de não ser
adepto do pacifismo da paz dos cemitérios, julgo que todas as guerras são
inconscientes nos seus mortos. Em todas as guerras do bem contra o mal, mesmo
quando o bem triunfou, sempre perdemos muitos pedaços de bem. Em todas as
guerras, os guerreiros sempre contabilizaram, de forma utilitarista, que os
actos de violência são menos violentos do que os estados de violência que se
combatem. Tenho medo que o mundo entre em regime de loucura sem regresso, caso
se opte pelo aventureismo da Lei de Talião e o instinto de “cowboy” esmague o
sentido do “rule of law”. Porque se os norte-americanos seguirem a puritana
sede de vingança, sofrerão a frustração de não não poderem cumprir os
respectivos objectivos.
Seria trágico
cairmos na tentação do conflito de civilizações, de cruzadas contra guerras
santas, onde cristãos e muçulmanos, se deixem enredar no fanatismo cego de
todos os talibans e inquisidores que temos dentro de nós, mesmo quando
satirizamos os diáconos remédios.
O terrorismo é
uma das raízes permanecentes das sociedades contemporâneas. Todos os agentes da
Razão de Estado, que com ele, agora, se alarmam, já, outrora, o
instrumentalizaram. Todas as ideologias
justificaram guerrilheiros do bem contra o mal e elaboraram teorias de guerras
justas, quando não de guerras santas.
Só abandonamos as
teses de Hobbes quando tememos que a violência destrua as flores do nosso
quintal. Porque tem razão quem vence e nem sempre vence quem tem razão. Porque
a terra de ninguém que separa o amigo do inimigo acaba sempre por ser uma
espécie de jogo de soma zero, onde se anulam as virtudes os defeitos de ambas
as partes.
Há palavras que
matam. Há silêncios que são cúmplices do terror. Há ideias com boas intenções
que, quando mal interpretadas, nos podem conduzir ao inferno do terror.
Já fizemos de
milhares de mortes um registo de frieza estatística que guardamos nas páginas
coloridas de uma revista. Já todos contribuímos para esse grande pecado que é a
banalidade do mal. Mas não nos
esqueçamos que, desta, só sairemos se combatermos o crime, não pela guerra, mas
por essa anti-razão ao serviço da razão, a que damos o nome de direito. Prefiro
Kant a Rambo. O primeiro é real, o segundo, uma figura da ficção.
BEM COMUM DA SEMANA
Saudemos a
maneira como as televisões norte-americanas souberam superar o sensacionalismo
que costuma mostrar a banalidade do mal. Afinal não são precisas leis para que
se cumpra a moral. Afinal, nem tudo o que é lícito é honesto. Se a
auto-regulação demonstrou ser extremamente eficaz no respeito pelos sagrados
direitos da intimidade intimidade da pessoa, também o modelo organizacional da
política norte-americana, deu uma lição da unidade na diversidade, com os
poderes autárquicos, regionais e centrais a serem mobilizados para um objectivo
que também não distinguiu a oposição da situação, num hino de louvor da ideia
liberal de separação de poderes e de descentralização política, que os
herdeiros do jacobinismo nunca compreenderão.
MAL COMUM DA SEMANA
Neste mundo global
unidimensionalizado, muitos homens desesperados por um identitário reprimido,
face ao espectáculo das Twintowers, voltaram a querer ser terroristas. Porque a
fronteira que os separa dos heróis, apenas depende do resultado do jogo de
guerra. Porque muitos terroristas com êxito acabaram por ser estadistas
condecorados pelo Nobel da paz ou com as comendas da liberdade. Mesmo entre
nós, há muitas éticas republicanas que assentam nos Buíças e imensas
serenidades monárquicas que repousam em caceteiros assassinos. Para não falarmos em inúmeros banqueiros e
corretores da Bolsa que não deixam de fazer negócio com mãos sujas de sangue e
droga.