Ter a coragem de esquerda para me dizer de direita.

 

 

Se o meu estimado leitor detesta liberais, comunitários e identitários, esses que preferem Max Weber a Karl Marx e não se entusiasmam com as conclusões da contracimeira de Porto Alegre, escusa de percorrer as linhas que se seguem. Se não tolera gente conservadora nos valores, radicalmente adepta da democracia e defensora da justiça social com efectiva igualdade de oportunidades, sem ceder às modas do beatério neomarxista, afaste de si esta folha, espezinhe-a ou condene-a ao silêncio. Prefira meditar, muito republicanamente, na moção com que o Engenheiro Guterres pretende fazer uma “viragem à esquerda” no próximo Congresso do PS. Entenda, por favor, que esse “novo ciclo” pretende retomar “o espírito” dos galicistas “estados gerais”, onde agora importa “ir da esquerda para o centro” e não “do centro para a esquerda”, conforme as prédicas da nova Sacristia Nacional da Agitprop, dispersas por vários jornais da nossa praça.

 

Apesar de todos os esquerdistas me poderem acusar de miguelista disfarçado e de alguns reaccionários desconfiarem do meu liberalismo, não quero aqui esboçar qualquer espécie de manifesto antiguterres, apelando para os não-socialistas de todo o mundo se unirem contra sotaque beirão do ministro Coelho, a fim do mesmo ser substituído pelo neopombalismo transmontano de Isaltino Morais ou para que, em vez da arcanja figura de uma ministra com tiques de rigor merceeiro, regressemos às segundas figuras ministeriais ou secretariais do cavaquistão que bombarrilizaram à moda de fafe a candidatura de Ferreira do Amaral.

 

Enquanto os próceres da oposição apenas nos oferecerem, como alternativa ao “statu quo”, um mero anti-sistema que não passa de um sistema ao contrário, de um simples irmão-inimigo do mesmo governo de espertos fomentador de tiranetes, prefiro saudar a coragem poética de um Manuel Alegre, revoltado contra o situacionismo, ou o contributo do ex-deputado Henrique Neto para o próximo manual da ética republicana. Bem queria que surgisse essa necessária direita com coragem de esquerda, capaz de mobilizar a maioria sociológica e apontar para a mudança.

 

Sinto-me vagamente co-responsável pelo actual “status”, dada a circunstância de em 1995 ter sido um desses militantes do centro excêntrico daquela direita anticabralista, saudosa da “maria da fonte” da nossa Vendeia, que deu o seu apoio a Guterres, Guilherme d’Oliveira Martins e Sousa Franco, para estes nos livrarem dos “jobs for the boys” do Estado Laranja. Verifico, agora, que a “viragem à esquerda” de Guterres, que continua a poder ser a vencedora das próximas eleições legislativas, não passa de uma espécie de marcelismo não frustrado.

 

A única maneira de superarmos o actual situacionismo está na emergência de uma alternativa oposicionista que não continue a entoar a ladainha do “oh tempo volta para trás!”, dominada por reciclados “homens de sucesso” do neo-riquismo cavaquista, essa imagem que leva os incautos a confundir o liberalismo com o negocismo de gente com fax para o “off shore”; e o pluralismo dos legítimos grupos de interesse e de pressão, com “tráfego de influências”.

 

Porque continuamos acabrunhados pela doença do pós-totalitarismo, aconselho, os que continuam a pensar baixinho, a lerem os ensaios recentemente publicados por Tzvetan Todorov: «Mémoire du mal, tentation du bien: enquête sur le siècle» e «Eloge de l'individu : essai sur la peinture flamande de la Renaissance».

 

Compreendam, por favor, que a política não pertence ao domínio do Bem, mas do Menos Mal; não da Verdade, mas do Justo. Anotem e sublinhem: o amor e a felicidade nada têm que fazer no contexto da política. Aliás, porque nem tudo é político, a política não tem a ver com o absoluto.

 

Reparem que o pior pecado do século XX nasceu da circunstância do totalitarismo ter introduzido essa relação com a totalidade do ser nos domínios do político. Alguns dos maiores homens da cultura do passado século assumiram-se como fascistas, comunistas e nazis porque os totalitarismos foram, ao mesmo tempo, exaltantes e assassinos.

 

Os novos-velhos clérigos da nossa intelectualidade esquerdista, que nunca leram Benjamin Constant, os teóricos de “The Federalist” traduzidos por José da Gama e Castro, o manifesto do Padre Casimiro José Vieira ou Silvestre Pinheiro Ferreira, comandam toda uma legião mestre-escola de revolucionários frustrados que continua a encher de vazio a cabecinha dos nossos adolescentes, considerando-os rascas e ingratos só porque estes, apesar de continuarem a invocar a utopia do assassino Che Guevara, tratam o senhor ministro, o senhor presidente e o senhor vereador, que foram antigos líderes da revolta estudantil, como se estes fossem hierarcas do salazarismo, coisa que na verdade são.

 

Eles não compreendem que importa separar a moral e a política, de maneira que não possa haver uma política submetida à moral, como na teocracia, ou uma moral decorrente de uma escolha política, como aconteceu com os totalitarismos, nascidos do utilitarismo, ou se insinua agora nos pretensos sacristas da ética republicana que nunca estudaram pelos manuais de Aranguren e de Mário Sottomayor Cardia.

 

Considerando Fernando Rosas, com as suas nevroses anti-Franco Nogueira, como o génio necessário da passagem do milénio, choramingando com as crónicas walersteinianas de Boaventura Sousa Santos ou anticlericalizando-se com os modelos mentais de Vital Moreira, cuja síntese se chama hoje José Reis, eis que quando dizem sair do marxismo althusseriano ficam-se pelo retrógrado de um jacobinismo de pacotilha, que se julga tolerante porque conversa nos salões da hierarquia instalada com antigos ministros de Salazar e que se acha reformista só porque retoma os modelos anticongreganistas de Miguel Bombarda.

 

Todos eles continuam a gaguejar ataques ao fantasma neoliberal da globalização, mantendo a diabolização binária da respectiva memória marxista-leninista, estalinista ou trotskysta, e assim transformam este país no caixote de lixo de uma esquerda, onde as memórias da resistência antifascista se transformaram em cheques sem cobertura ou em justificações louvaminheiras para o acesso à categoria dos medalhados comendadores do 10 de Junho sampaísta.

 

Bem Comum da Semana

O poder judicial ainda existe

Não tenho dúvidas quanto à qualidade técnica e ao sentido de coragem cívica que marca a maioria dos nossos magistrados e advogados. Reconheço, contudo, quanto a democracia tem sofrido com as armadilhas mediáticas que têm afectado a imagem de confiança pública do poder judicial. Os casos Universidade Moderna e Vale e Azevedo, meras rotinas policiais e judiciais que encheram, ou enchem, as parangonas, constituem um dos mais arriscados desafios da actual democracia portuguesa. A administração da justiça não pode condenar os seus servidores mais ilustres a seguirem a via da ficção. O país é real.

 

Mal Comum da Semana

Ministros, donos e absolutismo

Apesar de estar nos antípodas do Bloco de Esquerda, não posso deixar de manifestar a minha solidariedade com um destacado militante desse movimento, o director clínico do Hospital de Santarém, dirigente e funcionário do Ministério da Saúde, eleito pelos seus pares, que foi alvo de alguns desvios de linguagem pouco constitucionais de uma Senhora Membra do Governo, à qual eu recordo que “ministro” quer dizer “servus ministerialis”, isto é, escravo da função. Só no absolutismo é que o chefe é dono da casa. Num Estado de Direito, institucionalizámos o poder, para deixarmos de obedecer a um déspota e passarmos todos a obedecer a uma abstracção.