O TIRANO QUE SULCA A DEMOCRACIA...
“A
cada palavra, porque pensamos com elas, fica preso um pensamento...”
A minha provocadora crónica de há quinze dias, onde, sob o manto diáfano da ironia e da ficção, tentava recobrir a violência da verdade, teve, como resposta, aquele que há-de ser um dos mais belos e corajosos discursos de revolta individual da actual literatura portuguesa. Honra-me transcrevê-lo, com a devida autorização da autora:
“Meu
amigo Miguel Bandeira
Sei
que já te deveria ter escrito agradecendo a tua disponibilidade (naquele dia
tão difícil de explicar pela inteligência) para conversarmos acerca de
realidades minadas à fundura, pelo poder de quem mingua dia-a-dia, mas se não
dilui no poder carcomido em que se move.
Tal
como eu, pensas que a questão de fundo é a da falta de estatura e capacidade
cogitadora.
É
o reaparecimento de novos casos, dizes!
Será
só isso, meu querido amigo?
Não
acontecerá que estes estranhos seres morrem antes da vida, e não depois?, e,
por essa única razão, o infausto destino é o de minguar, minguar, até que
deles nem resíduo reste?
Todavia,
atenção!, digo-te, não se descure que o “fenómeno” carece de tratamento.
As raízes indiciam propender só para um lado...
Na
verdade, como bem sabes, de há muito que me excluí de um mercado de trabalho
“normal”, por convicção e entrega àquilo que entendi que nunca se
rasgará, compelida e voluntariamente doada a um ponto de luz, que um dia ou uma
hora propícia, me deu a saborear que o conhecimento – escalada dura – nos
oferece um único e alto olhar.
É
indizível o sofrimento meu e teu, pois que assim pensando e estando, tenhamos
de enfrentar tão força bruta.
Julgo
que tudo o que te contei e me contaste, faz parte de um crime perpetrado que bem
tira proveito da inércia e do silêncio dos circuitos normais que o deveriam
denunciar.
O
maquinismo do poder absoluto executa-se impune e, por essa mesma razão,
necessariamente sem prudência ou réstia de pudor, ainda que ensombrado por
quem lhe faz frente.
Os
infames afazeres dos que anoitam qualquer confronto leal de ideias, fora do
senso e do saber e da lei e da moral, jogam por interesses sem interesse, um
jogo de bolsas de ocultas e ataviadas regras, já que a democracia lhes faculta
claramente esta opção.
Como
falámos, também penso que recapitulam, sem parar, a lógica da “obra” que
produzem para que se sintam menos incriados na “grande fórmula”, que, de
forma alguma lhes poderá parecer algum dia inane.
Claro
está que o tirano que sulca a democracia, recebe ele próprio ordens – ainda
que possa não o intuir – e envia sinais de mando, já que presentes se
encontram sempre, e, em brilhante paciência e obediência hierárquica
inquestionável, filas de escravos a perder de vista, com um bolor de postura de
vida que polui, a razoável distância, a própria incineração do lixo.
Assim,
dotados de um dispositivo golémico, envolto em falsas e bastardas boas-maneiras,
seguem estes candidatos a déspotas o Manual da Fractura da Matriz das Coisas, best-seller
acessível aos seus crânios, apenas porque conhecem o sinónimo de “Manual”
e de “Fractura”, à falta de serem capazes de conhecer a “Matriz” ou
descortinar quais serão as “Coisas”, que o próprio manual desconhece, mas
tal como eles muito ignora, muito teme e muito odeia e por essas razões todas
se justifica o uso.
Desconheço,
meu caro amigo Miguel Bandeira, até quando o Estado de Direito se aguentará
sem se olhar de novo a si próprio e, exigir a vontade inequívoca de se sentir
tratado como Estado e reencontrar o convívio com o Direito, voltando a escutar
com atenção a sensível e soberana Democracia que perplexa constata que se vai
consentindo que, os legistas de pavimento subterrâneo, sejam vistos,
frequentemente, a atravessarem as ruas desta nossa capital, transportados em
privativo rick-shaw, em horas que propalam entrevistas imperiais
destinadas ao homen-padrão, a quem enfim só falta dar vida.
De
seu pendor ignaro, nunca entenderão que desta feita, tu e eu, não só não
perdemos qualquer espaço de Ser, como aqui fica provado “que a pequenez do
mimético déspota nunca obstará ao caudal da palavra dita e escrita”. Assim
nos ensinou um dos nossos grandes Mestres.
Ambos
sabemos, o quanto um nosso comum amigo, tem razão ao afirmar “que o mais
grave problema é que estes “fenómenos” põem muitas vezes em causa o
problema da nossa liberdade”.
Em
bom rigor, destituída sorte a que não se impõe à redução do tamanho dos
povos e das culturas. Pobre o país cujo fio de luz só sustenta a imobilidade
face à verdade imensa.
O
colapso surpreendê-los-á, disseste-me!
Só
por essa tua esperança – bastante lance aos que se empenham –
te agradeci, no início desta carta, a tua sempre presente
disponibilidade para as comuns e firmes lutas, e não apenas por mim te
agradeci, antes, por um imperceptível mas profundo mundo melhor que um dia se
abrirá em movimento de esfera.
Um
grande abraço. A tua sempre amiga
M.
Teresa Bracinha Vieira
PS
Agradeço-te a sugestão de levar esta carta até quem, através dela, se possa
sentir em sítio menos estrangeiro”.
A minha irmã Teresa (nome real) faz parte daquela corrente eterna dos chamados “mal-amados” que nos escutam do próprio Além. O nosso comum amigo Miguel Bandeira tem na vida real um nome que aqui não pode ser citado, pelo alto cargo que ocupa. O tal reaparecimento de novos casos, a que a carta alude, tem base em factos desencadeados por pequeninos actores de interesses sem interesse. Apenas decidi registá-los para defesa do futuro.
Acrescento que em Portugal, no ano 2000, se repete, sem fogueira, o auto de fé de 12 de Setembro de 1706 que afastou da Universidade um Cristão Novo, numa série continuada, pouco tempo depois, pela caceteira detenção do autor do poema “O Reino da Estupidez”, para falar nalguns dos mais conhecidos casos de afastamento de membros da entidade que continua a Academia fundada por Platão.
Tal como os saneamentos de professores e alunos em 1824, 1828, 1834, 1844, 1913, 1931, 1938, 1961, 1974 e 1975, a corrente inquisitorial das Juntas Expurgatórias continua, afectando especialmente todos os que não têm um diploma que lhes dê acesso à ordem corporativa dos instalados.
A minha irmã Teresa foi a mais recente vítima deste persistente Reino Cadaveroso, onde continua a não poder conciliar-se a Inteligência com a Honra. Com “inteligentes” que não compreendem a Imaginação e com pretensos proclamadores da “honra” que não querem deixar viver os que querem viver como pensam e não pensam como vão vivendo.
Peço ao Miguel Bandeira que não deixe a Teresa partir para o exílio das inúmeras universidades do Novo Mundo que a convidaram. Peço à minha irmã Teresa que resista, aqui e agora, para que a semente nos dê passado presente e saudade de futuro.
“A
cada palavra, porque pensamos com elas, fica preso um pensamento...”