UM VERÃO SEM CRISE

 

Quando não há crise no horizonte, é Portugal que definha em substancial crise. Com efeito, a ideia de crise talvez seja tão antiga quanto a própria ideia nacional. Se uns poderão falar, à maneira do primeiro Antero, no tópico de decadência, já outros, ao estilo de Pessoa, apontam a existência de uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização, a degenerescência.

 

Na verdade, consciência de crise talvez constitua um excelente estímulo para a superação das crises, através da elaboração das respostas restauracionistas ou regeneracionistas, por vezes embrulhadas sob o signo do seu aparente contrário que é a revolução.

 

Alguns, na senda desse romântico da contra-revolução, que foi António Sardinha, procuram a “tradição”, entendida como “um regresso para seguir em frente”. Outros falam, conforme o saudosismo republicano, num “refazer a renascença”. Porque, como dizia o mestre da arte de ser português, Teixeira de Pascoaes, “renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com as suas raízes, para dar à nova luz do futuro a sua flor espiritual”.

 

E é este regeneracionismo, mais ou menos frustrado, que constitui, aliás, o primeiro dos fundamentos do Portugal contemporâneo. Com efeito, a revolução liberal de 1820 pretendeu assumir-se como a restauração das antigas liberdades que teriam sido usurpadas pelo absolutismo ministerial. Mais tarde, a revolta republicana de 1910 tentou retomar a inacabada obra de Pombal contra aquilo que o gnóstico anticlericalismo do Partido Republicano considerava o reaccionarismo beato, clerical e congreganista.

 

Mesmo a ruptura de 1926, que começou por ser moderadamente republicana e liberal e acabou catedrática, ao lutar contra o que considerava ser o demoliberalismo estrangeirado posterior a 1820, visava retomar a pretendida pureza de um poder central absoluto, para reconstruir o abstracto Estado de uma pretensa grandiosidade perdida.

 

Também a nossa mais recente ruptura revolucionária, a iniciada em 1974, disse querer lutar contra aquilo que pleonasticamente qualificou como a longa noite da ditadura fascista, e restaurar a liberdade oprimida, procurando construir uma jovem democracia igual à média institucional dos países cristãos polidos e civilizados da Europa Ocidental, em luta tanto contra o terceiro-mundismo como contra os que, apoiados pela decadência do império soviético, nos queriam transformar na Cuba da Europa.

 

Portugal só entra verdadeiramente em crise quando passa a dominar o “reino cadaveroso” dos situacionismos, onde maiorias sociológicas, mais indiferentes do que silenciosas, passam a defrontar as minorias activas de manipuladores da apatia, com vanguardismos, progressismos ou reaccionarismos. Esses degradantes crepúsculos situacionistas, que podem durar décadas, onde o oportunismo e a corrupção nos fazem apodrecer por dentro, até que o fruto desse equilíbrio instável, mas tendencialmente duradouro, acaba por cair de podre ao mínimo abanar de um golpe de Estado, muitas vezes fruto do acaso.

 

Foi assim com a Rotunda do 5 de Outubro, com a movimentação das colunas militares no 28 de Maio ou com os tanques de Salgueiro Maia em 25 de Abril de 1974. Todos eles menos causas do que consequências. Não será assim em 2001, porque a ilusão do golpe de Estado foi definitivamente abandonada, por ausência de circunstâncias.

 

Por isso, a constante crise portuguesa apresenta, nestes últimos tempos, novos e significativos contornos. Com efeito, talvez pela primeira vez na nossa história, estejamos a assistir à eliminação dos últimos vestígios daquilo que Oliveira Martins qualificou com o Portugal Velho. Isto é, o país da província, predominantemente marcado pela Igreja Católica e pela formação profissional e patriótica dada aos soldados rurais durante o serviço militar obrigatório.

 

Se o país urbano e burguês ganhou a guerra civil de 1828-1834, venceu a Maria da Fonte, com o recurso a tropas estrangeiras, implantou a República, ao conquistar Lisboa,  transmitindo o facto à província através do telégrafo, e comandou o PREC de 1974-1975, também é verdade que, de vez em quando, o país rural costuma estragar o esquema e impulsionar algumas alterações estruturais no tal processo.

 

Agora, com a eliminação de tais resistências ancestrais, resta-nos a simples revolta individual ou o declarar-nos “cansados da vida”, partindo para os mais variados Vales de Lobos, a fim de não pactuarmos com a hipocrisia institucionalizada nem cedermos à frustração.

 

Tal como depois de Alcácer Quibir ou das invasões francesas, Portugal, na sequência das derrotas ou das meias derrotas, fica sempre um país profundamente dividido quanto à respectiva estratégia nacional e, sobretudo, quanto à interpretação dos seus objectivos nacionais permanentes, para utilizar alguns dos conceitos obsidiantes dos estrategistas. Simultaneamente, ficamos também maduros para uma colonização do invasor ou do protector, seja a de El-Rei Junot ou a do Senhor Beresford. E desta forma nos vamos esquecendo dessa “fibra adquirida ao longo de séculos e ao longo dos séculos refeita e sedimentada”, para utilizarmos as palavras de Fernando Namora.

 

BEM COMUM DA SEMANA

O PAÍS EM BANHOS

Os principais protagonistas do Portugal político, porque não vai haver “Verão quente”, têm cerca de dois meses para recuperarem as energias perdidas. Dado que Guterres ainda não caiu de pôdre, sugerimos, aos líderes da oposição de direita, que refaçam o respectivo discurso. Portas tem de ir além do som dos respectivos “slogans”. E Barroso não pode continuar a exagerar no defeito típico dos antigos esquerdistas convertidos à direita, para quem tudo tem de ser “Realpolitik”. Os arrependidos sinceros correm o risco de envelhecer cedo de mais, quando, cultivando a imagem de pretensos “homens de Estado”, podem, afinal, parecer “homens de plástico”. É imperdoável considerarem que todo o idealismo se reduz à utopia assassina que os moveu nos tempos de juventude. A direita democrática não tem que ser pura demagogia nem inevitável pessimismo antropológico.

 

MAL COMUM DA SEMANA

OS FILHOS DO MAIO 68

A propósito dos episódios que rodearam a cimeira do G8 em Génova, foi comovente notarmos o regresso da “esquerda caviar”, com a viagem feita à manifestação por cerca de cinquenta jovens portugueses do partido do Professor Doutor Francisco Louçã. Até a Engenheira Maria de Lurdes Pintasilgo foi à televisão demarcar-se dessa gente fina, dizendo que não estava contra a globalização, mas contra as consequências daquela a que chegámos. E, horrorizando certos fanáticos do Bloco de Esquerda, chegou mesmo a invocar o Papa João Paulo II. Eu que sempre estive a favor de De Gaulle,  Malraux e Aron e que também cito o Papa, apenas digo, na senda de Mounier, que os problemas económicos se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Não preciso de ser neoliberal para continuar liberal.