MONÁRQUICOS E REPUBLICANOS
Artigo publicado em Outubro de 1989
A mais significativa manifestação comemorativa do passado 5 de Outubro foi, sem dúvida, o caderno ostensivamente monarquista que o semanário "Independente" publicou, o qual talvez constitua a mais importante acção de propaganda da "causa" ocorrida desde o 25 de Abril de 1974.
De um modo irreverentemente juvenil, os neo-monárquicos do referido semanário conseguiram transformar o movimento de ideias, que tem D. Duarte Pio como símbolo, em algo de adequado aos gostos do nosso tempo, num flagrante contraste como o estilo "bota de elástico" do jacobinismo do Grão Mestre Raul Rego, quase reduzido às tradicionais manifestações de cemitério, entre as flores murchas e o cheiro seminarista a velas de cera.
Também o Senhor Duque de Bragança teve a corajosa inteligência de conceder ao mesmo jornal uma das suas melhores entrevistas dadas a um órgão de comunicação social português, declarando expressamente que os monárquicos devem esquecer o restauracionismo e lançar-se numa nova época instauracionista, de acordo com a tradição portuguesa e o universo democrático.
D. Duarte Pio teve a serenidade de, mais uma vez, se afastar daquelas sereias que o procuram imiscuir nas areias movediças da política partidária, assumindo-se como símbolo de um movimento de ideias que, por ser hoje mais cultural do que político, é, por isso mesmo, mais superiormente político.
É evidente que, no actual quadro político, não existe um problema de regime. Se formalmente não vivemos em monarquia também substancialmente não temos um regime republicano, segundo os ideais dos revolucionários da Rotunda.
O facto da Primeira República ter sido caricaturalmente parlamentarista e partidocrática, transformando o Presidente da República num simples instrumento do partido dominante , eleito pela "classe política" num colégio eleitoral, apenas provocou um vazio na simbologia máxima do Estado.
A partir do 28 de Maio e, muito principalmente, com a institucionalização do Estado Novo, através da Constituição de 1933, gerou-se um formal presidencialismo bicéfalo, onde efectivamente imperava o Presidente do Conselho de Ministros que, mesmo depois de abandonar a titularidade da "ditadura das Finanças", continuou a ser o efectivo "Princeps".
O salazarismo, com efeito, liquidou em Portugal o dilema Monarquia/República, gerando um hibridismo que a dita III República, posterior ao 25 de Abril ainda não conseguiu superar.
Com efeito, o estilo salazarista de chefia do Estado foi particularmente acirrado com o General Ramalho Eanes que, apesar de legitimado pelo voto popular, nunca se libertou de uma outra superior legitimidade: a de ser militar, a de pertencer a uma entidade que a si mesma se considera diversa da "sociedade civil".
Só com a eleição de Mário Soares se deu uma efectiva restauração da República a nível da chefia do Estado, uma restauração que, contudo, não foi feita contra os monárquicos nem marcada por sucedâneos cesaristas e que levou agora o próprio Duque de Bragança a qualificar a actuação de Soares como a de um verdadeiro monarca.
Paradoxalmente, a nossa primeira experiência efectivamente republicana , a nível da chefia do Estado, em setenta e nove anos de República, está também a gerar um dos primeiros movimentos de verdadeiro instauracionismo monárquico, retomando-se uma das constantes da nossa tradição política, que teve no Integralismo Lusitano, durante a I República, e nos movimentos monárquicos de oposição ao salazarismo os principais esteios contemporâneos.
Está , aliás, por fazer o inventário da influência da formação monárquica no actual regime, muito principalmente na biografia intelectual de políticos como Francisco Sá Carneiro e de muitos outros sociais-democratas, socialistas e democratas-cristãos que, se não fossem as convenções folclóricas do regime, sempre prefeririam um 1º de Dezembro com o Rei de Portugal do que um 5 de Outubro no cemitério dos regicidas.
Não se iludam, contudo, os monárquicos militantes com estas novas brisas da história. A monarquia em Portugal não foi derrubada pelo 5 de Outubro. A monarquia já tinha sido derrubada muito antes, tanto com o absolutismo como com o revolucionarismo de inspiração jacobina, e continuou a ser derrubada depois dessa data, com as subserviências face ao cesarismo e às ditaduras.
A monarquia, como instituição de direito natural, apenas existe quando a instituição tem efectiva legitimidade, isto é, quando ninguém a discute e todas a praticam como instituição viva, tão natural como o ar que se respira ou a nação que todos os dias se plebiscita.
Com efeito, não haveria monarquia em Portugal, nos termos da legitimidade das velhas leis fundamentais, se, por exemplo, através de um referendo, a maioria absoluta ou a maioria qualificada da população optasse pela monarquia. Enquanto a ideia monárquica continuar factor de divisão entre os portugueses, enquanto continuar vivo, mesmo que minoritário, um partido republicano, a monarquia nunca poderá conquistar a legitimidade.
A monarquia não existe se depender da obediência e não do respeito. Só existe monarquia se o rei for tão natural como a família, sem estar dependente dos factores da conjuntura. Por isso é que a existência de partidos que se qualificam como monárquicos continua a ser um dos principais atentados contra a própria ideia monárquica em Portugal.
Do mesmo modo, será impossível qualquer instauracionismo monárquico se persistir na opinião pública a confusão entre a ideia monárquica e o aristocratismo, muito principalmente daquele que continua a ser ostentado por certos aristocretinos da nossa praça, maioritariamente descendendentes da falsa fidalguia do baronato liberal, que usurparam os títulos através da especulação financeira e dos golpes partidocráticos.
Na verdade, qualquer instauracionismo monárquico só será viável se a política portuguesa voltar de novo a ter aquela necessária temperatura espiritual geradora de efectiva legitimidade e de democráticos consensos populares. Enquanto a política que temos continuar a traduzir em calão os discípulos de Maquiavel o monarquismo não passará de emblema para certas castas falsamente monárquicas e que são as verdadeiras responsáveis pela efectiva não popularidade da ideia monárquica em Portugal.
Diria, pois, à maneira de Fernando Pessoa que, apesar de sempre ter sido monárquico, se houvesse, agora, um referendo sobre a questão, teria que optar pela República para defender os verdadeiros princípios monárquicos.
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.