Não há Direito!

 

 

Últimos dias do ano de 1998. Depois da operação raposa do deserto. Depois das aventuras mediáticas em torno da detenção de Pinochet em Londres. Depois de se confirmar o fim dessa ilusão que foi a paz em Angola. Depois, até, do discurso de José Saramago ao receber o prémio Nobel… Teorizar, a partir destas circunstâncias, sobre a hipótese de uma justiça mundial e de uma nova ordem internacional, talvez apenas admita a célebre observação desse céptico entusiasta que é o Professor Adriano Moreira, para quem da nova ordem só sabemos que acabou a antiga

Com efeito, a velha ordem internacional, nascida em Yalta, Bretton Woods, São Francisco e Potsdam, essa que fez os julgamentos de Nuremberga, mas amnistiou o massacre de Katyn, e que se consolidou pela chamada guerra fria, se foi simbolicamente derrubada pela queda do muro de 1989, ainda não lançou sementes de esperança para uma nova orgânica internacional. Porque se mantém em vigor um modelo de direito internacional público que talvez ainda não tenha suficiente justiça para ser efectivo direito, o mínimo de autodeterminações para ser inter-nacional, nem uma altura adequada de fins para ser público. Por outras palavras, a nova ordem ainda não pode ter um mínimo de justiça mundial porque o direito que a rege ainda não é suficientemente válido, faltando-lhe também os adequados requisitos da vigência e da eficácia, as tais três dimensões do jurídico, indispensáveis para que a justiça não seja impotente. Neste sentido, temos de concluir que estamos condenado a viver em regime de vazio de justiça mundial.

A tal ordem a que chegámos depois de 1989, à imagem e semelhança daquela que a precedeu, apesar de longos intervalos de paz imperial, ainda não obedece aos mínimos civilizacionais da chamada paz pelo direito. Ela ainda não é suficientemente polida ou civilizada, ou, dito por outras palavras, ainda não é marcada pelos fins superiores que levaram o homem a constituir uma polis (donde vem o polido) ou uma civitas (donde vem o civilizado). Aquilo que, no plano interno dos Estados, se conseguiu com o chamado Estado de direito, isto é, o esforço de institucionalização do poder que nos fez superar o regime da vingança privada, ainda não está vigente nas relações entre os Estados, dado que estes ainda continuam a viver em regime de estado de natureza. Falta uma justiça mundial porque os poderes mundiais que têm vigência e a eficácia ainda não são dotados de validade, dado que não têm o direito como fundamento e como forma de limitação.

Neste sentido, esta ordem internacional ainda é ditada pelo regime da paz dos vencedores, onde tem razão quem vence e onde não vence necessariamente quem tem razão. Logo, o day after aos pretensos tratados de paz ou de limitação de armamentos, têm mais a ver com a razão da força do que com a força da razão. Daí que a ordem internacional se aproxime mais da desordem bem organizada do que da institucionalização do poder de uma polis, de uma civitas ou de um Estado de direito. Para que Pinochet pudesse ser julgado. Para que Saddam Hussein pudesse obedecer à comunidade internacional. Para que em Angola pudesse haver futuro, precisávamos de aplicar ao mundo aquilo que aplicamos na polis. Precisávamos de uma prisão mundial, de uma polícia mundial, de um tribunal mundial, mas também de enquadrar a prisão, o polícia e o juiz num direito efectivamente universal, com uma validade, uma vigência e uma eficácia indiscutíveis. Precisávamos, em primeiro lugar de uma ideia de justiça universalmente consensualizada, capaz de mobilizar uma força institucionalizada que a tornasse independente. Por outras palavras, precisávamos que a política deixasse de obedecer às razões de Estado e passasse a ser pautada por um Estado razão.

Foi isto que proclamou um tal Emmanuel Kant em 1795, no opúsculo intitulado Projecto Filosófico da Paz Perpétua. Aí, contrariamente a algumas leituras pietistas, de quem só treslêem o título de tal texto, volta a proclamar-se a necessidade clássica de uma juridificação do poder ou de uma moralização da política. Onde os Estados não fossem apenas criadores, mas também objectos do direito. E não foi por acaso que em 1995, no bicentenário da ideia kantiana, dois dos principais teóricos políticos da actualidade vieram a terreiro, glosando o texto. De um lado, John Rawls, com uma proposta de regresso ao direito das gentes em The Law of Nations. Do outro, Jürgen Habermas, com uma releitura des Wigen Friedens. Tal como, antes, João Paulo II, na Centesimus Annus, de 1991, retomava as teorias da comunidade internacional de Vitoria e Suárez.

Em vez de pensarmos a justiça mundial ao ritmo do pensamento de Kant, João Paulo II, Rawls e Habermas, fazemos alfinetadas teóricas dizendo Pinochet, Fidel de Castro, Kabila, Hitler, Mao e Estaline. Entramos numa renda de bilros de comparações em termos quantitativos, no tocante à medição da repressão, num domínio onde pouco importa o mais e o menos em termos de crimes contra a humanidade. E falamos muito do caso Pinochet porque este nos é mais próximo, mais vizinho, mais familiar. Tal como nos horroriza Timor porque em Santa Cruz se rezou em português. Tal como invocamos Fidel de Castro porque nessas memórias de cruzam Salazar, Saramago, Che Guevara e Maio de 1968. Até falamos mais no Chile repressivo do que na Argentina militarista, porque há Isabel Allende e Pablo Neruda e não a complexidade do peronismo e do justicialismo de Buenos Aires. Aliás, Pinochet aconteceu porque a doutrina oficial do containment assumida pelos norte-americanos admitiu um Estado de Segurança Nacional como meio violento ao serviço de um fim superior: a defesa da economia de mercado e a possibilidade de instauração da democracia. Porque foi dominante o lastro teórico dos chamados maquiavélicos, defensores da liberdade, o tal realismo que chamou utópicos aos intérpretes do projecto kantiano.

Neste sentido, julgar Pinochet é julgarmo-nos. Porque sempre admitimos que há actos de violência menos violentos do que certos estados de violência. E até tratámos de nobelizar antigos terroristas feitos homens de Estado. Fiéis àquela hipocrisia que continua a separar a política do direito e ambos da moral. Quando importa encontrar um fundamento espiritual  para a ordem mundial. A única via que nos permitirá vencer a violência desta paz dos vencedores, aliás bem próxima da paz dos cemitérios, e instaurar a paz pelo direito.

A paz dos vencedores, essa que admite o Estado como lobo-do-Estado onde a comunidade internacional não passa de uma guerra de todos contra todos, contradiz a realidade de um mundo novo surgido daquilo que alguns teorizam como a revolução global. Afinal, entre a Tempestade no Deserto  e a Raposa no Deserto o tal gnóstico fim da história, não passou de um mero regresso da história

A verdade é que desde 1945, para além das fases quentes da Guerra da Coreia, do Vietname, das guerras do Médio Oriente e da Guerra do Golfo, decorreram cerca de centena e meia de conflitos que, praticamente, não nos deram um só semana de paz, principalmente através das chamadas guerras por procuração.

Importa sublinhar que a tal primeira revolução global na história da humanidade, segundo uma expressão consagrada num relatório feito para o Clube de Roma, em 1991, por Alexander King e Bertrand Schneider, não se reduz à mera globalização da economia e da comunicação social, peças de um puzzle bem mais complexo, onde também se incluem a grande revolução técnico-científica, a revolução dos teatros estratégicos e a revolução demográfica.

Está em curso uma revolução global porque o primeiro estímulo para a identificação e a sobrevivência das comunidades políticas historicamente constituídas já não vem das tradicionais relações entre amigos e inimigos da velha essência do político, mas antes dos inimigos globais de todas as comunidades humanas, como são a fome, as doenças, as questões ambientais ou o risco maior de um confronto nuclear à escla planetária.

Só a partir de agora Kant deixou os domínios da metafísica e se transformou num realista. Porque se é verdade que cada grupo humano só ganha consciência de si mesmo quando consegue estabelecer uma fronteira com o outro, levando à sobrevalorização da ameaça vinda de força, como principal elemento de desintegração, só neste nosso tempo é que surge uma ameaça global e, consequentemente, só agora que os homens todos começam a ganhar consciência existencial da globalidade humana.

Ao contrário do que proclamou Saramago, a economia desmaterializou-se. O poder deixou de residir nos elementos materiais, nos factores de produção da teoria marxista, como era a terra, os recursos naturais e as máquianas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças. O poder transformou-se numa rede de poderes, deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter e passou a ser uma relação, uma rede de muitos micropoderes, onde os novos mestres predadores e conquistadores já não são os detentores dos factores de produção nem os organizadores da era dos managers, mas sim os efectivos manipuladores da rede que conseguem por todos os meios a necessária inside information.

Actualmente em cada cem homens, há 22 chineses, 20 membros do subcontinente indiano, 10,2 europeus, 5,7 da antiga URSS, 5,5 da América do Norte, 11,4 africanos, 8,4 da América Latina.

Atendendo à distribuição da riqueza quatro quintos da riqueza mundial cabe a uma sétima parte da população do mundo

Talvez importe vislumbrar alguns dos sinais dos tempos que a hiperinformação da aldeia global nos oculta, talvez importe tentar penetrar na constelação causal das nossas circunstâncias, a fim de conseguirmos detectar as correntes profundas da história que nos arrastam.

As lentes imediatistas, utilizadas pelos analistas do curto prazo, descrevendo, com os mais pormenorizados zooms das reportagens directas, as árvores da nossa floresta, quando não a casca ou um pedaço de folha, não nos têm deixado perspectivar a própria floresta, coisa que apenas se consegue pela técnica da compreensão e pelo clássico método científico que impõe que se procure substituir a opinião pelo conhecimento.

Faço parte daqueles que gostariam de subscrever o Projecto da Paz Perpétua  de Immanuel Kant e até gostaria de participar na elaboração de uma lei universal que colocasse a guerra fora de direito, declarando-a como o inimigo público número um de toda a humanidade.

Mas sei, de experiência vivida e pensada, que em nome dessas ilusões o Presidente Wilson com os seus 14 Pontos  e o Pacto Briand-Kellog não impediram que depois da Grande Guerra de 1914-1918 se tivessem acirrado os ressentimentos que conduziram à Segunda Guerra Mundial, assim se demonstrando que muitas das principais causas do inferno são as boas intenções sem força.

 

Com efeito, se tenho os olhos postos no céu dos princípios de uma paz pelo direito, tembém tenho os pés presos no chão da realidade dos homens concretos. Embora acredite não ser utopia a constituição de uma organização universal que consiga estabelecer na comunidade internacional um estádio semelhante àquele que no interior dos Estados já foi atingido, com o Direito a superar a vingança privada, apoiado no monopólio da força física legítima, julgo que só dentro de um longo prazo, que poderá ser de séculos, poderemos banir a guerra e estabelecer a necessária paz pelo direito.