O PRINCIPAL DOS CIDADÄOS

Artigo publicado em 11 de Abril de 1989

 

Qualquer pessoa civicamente empenhada, milite num partido político ou na categoria cada vez mais crescente dos independentes, que também engloba alguns filiados nos mesmos partidos, tem que sentir-se angustiada perante a denúncia independente feita pelo deputado Almeida Santos relativamente ao cesarismo democrático vigente. Não estamos, evidentemente a delirar sobre a ditadura, o autoritarismo ou o totalitarismo, mas apenas a reflectir sobre aquele presidencialismo de Primeiro-Ministro, conforme a previsão de Adriano Moreira, logo em Julho de 1987. Estamos perante a efectiva realidade de um poder pessoal democrático, feito à imagem e semelhança de um cidadão, à volta do qual, gravita uma maioria parlamentar absoluta que, para sobreviver, o tem que transformar no principal dos cidadãos, no tal princeps, segundo a etimologia romana.

O principado, com efeito, nasce sempre no seio de uma democracia, quando, através de um gradual concentracionarismo, se vão reunindo num só magistrado da República os vários poderes das restantes magistraturas.

Enquanto na mesma República Romana a ditadura era uma magistratura extraordinária e com prazo marcado, onde claramente se estabelecia um período de juristício, isto é de suspensão do jus, do direito, já o principado manteve formalmente o pluralismo institucional da República, reduzindo, embora, os restantes órgãos do poder a simples fantoches presos aos cordelinhos da efectiva sede do poder.

É evidente que o candidato a principal dos cidadãos da actual República Portuguesa não se chama César Augusto, Afonso Costa ou Oliveira Salazar. Também não se iniciou nos negócios do Estado como cônsul militar ou com o apoio de forças armadas, institucionais ou revolucionárias. Subiu ao poder através de eleições totalmente livres que o sufragaram como uma espécie de tribuno da plebe e tem ao seu dispor a força de um partido que constitui a maioria no parlamento, nos governos regionais, nas autarquias, nos dirigentes da Administração Pública e nos chamados gestores públicos. Tem, além disso, o fervor militante de um monopólio televisivo, entidade que, hoje, substitui os anteriores comícios e assembleias populares.

Se ninguém tem dúvidas quanto à legitimidade do título democrático deste eventual principado, não deixa de haver muitos começam a pôr em causa a respectiva adequação substancial aos chamados factores democráticos da formação de Portugal. Com efeito, para que uma democracia seja civicamente democrática, não basta que cumpra formalmente as regras do jogo democrático, impondo-se, para além disso, o respeito efectivo pelos valores democráticos. Para que uma democracia seja uma democracia de cidadãos, não basta que ostente a gramática da democracia formal ou que exercite a respectiva liturgia; tem que ter um estilo de acordo com a gramática e que exercitar os gestos sem lhe perder o sentido. Em suma: tem que praticar os valores democráticos e entender, como dizia Ortega y Gasset, que a essência da democracia é o diálogo com o adversário. O que, pelo menos, não admite que a política se transforme numa espécie de guerra por outros meios, onde os oposicionistas até são qualificados como traidores à pátria, apenas porque se atrevem a pisar o risco daquilo que um certo princeps considera a respectiva majestade.

Nestes termos, podemos dizer, embora paradoxalmente, que uma ditadura extra-parlamentar, com prazo certo, ofende menos a democracia que a existência de uma ditadura parlamentar maioritária que despreze o direito das minorias e estabeleça o concentracionarismo. Se o actual Estado Laranja, por exemplo, retomasse a má experiência maioritarista do PRP de Afonso Costa, durante a Primeira República, teríamos, inevitavelmente, uma crescente destribalização democrática, onde a ausência de alternativas tenderia a suscitar a tentação da ruptura.

Com efeito, as recentes turbulências da actual governação mostram que a hipótese de passagem da nossa República para um regime de principado pode não pertencer apenas ao domínio da ficção científica. O conflito entre as tendências psicológicas do eventual candidato a principal dos nossos cidadãos e a tradição histórica antitotalitária e quase libertária do partido fundado por Francisco Sá Carneiro, num regime onde o Presidente da República não tem instrumentos constitucionais de intervenção moderadora, pode gerar perigosas distorções democráticas.

Se a governação do regime, por hipótese, optasse pela vertigem de ir de vitória em vitória até um qualquer final, jogando entre o tudo e o seu nada, iria, naturalmente, ganhar batalhas , mas também poderia levar a democracia pluralista a perder a guerra. Se num tempo de perestroikas, o PSD caísse na tentação do unanimismo e do centralismo democráticos , que mesmo na URSS já pertencem à proto-história, e entendesse por glasnot a requisição da Polícia Judiciária para averiguação de fugas informativas, a opção pelo principado começaria a adquirir contornos.

O entendimento da política como a efectiva tensão entre amigos e inimigos, o freund e o feind de Carl Schmitt, tão caro a certos politólogos que estão no governo, pode levar a que os extremos da antítese se confundam. Por exemplo, ser antigonçalvista em 1989 é a melhor forma de perpetuar o gonçalvismo mental, através de uma espécie de comunismo branco feito de muitos fantasmas conspirativos que transplantam para o amicus os defeitos que este atribui aos hostes.

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.