PELO ATLÂNTICO, A CAMINHO DO SUL
Publicado na revista Africana, nº5, Setembro de 1989
Neste ano de 1988, a quatro anos do mito ou da realidade de 1992, quase três décadas volvidas sobre o começo da última guerra em que Portugal esteve directamente envolvido e cerca de década e meia depois da chamada descolonização, se ainda não houve suficiente distanciação histórica para podermos fazer um balanço dos últimos anos da dimensão africana de Portugal, começa a tornar-se incómodo o silêncio que, sobre a matéria, têm mantido quase todos aqueles que acreditaram e defenderam a ideia de um Portugal euro-africano, nas décadas de sessenta e setenta.
Pode ser que o deslumbramento ou o sentido da necessidade histórica quanto à nossa integração na Comunidade Europeia nos leve a esquecer o passado recente. Pode ser que a continuação das guerras em Angola e Moçambique nos leve a uma mais profunda compreensão daquela guerra em que os portugueses participaram entre 1961 e 1974. Pode ser que a vontade de cooperação com os novos Estados de expressão oficial portuguesa não aconselhe que reavivemos feridas antigas... Mas vai sendo tempo da verdade vir ao cimo da água e de não calarmos aquilo que foi o primeiro sonho de uma certa geração.
Confesso que acreditei e lutei pela utopia de um Portugal pluricontinental e plurirracial, dito uno e indivisível, que se estendia do Minho a Timor. O próprio Arnold Toynbee terá chegado a afirmar que Portugal, o primeiro e o último dos impérios coloniais, poderia ser o primeiro de uma nova era. Eu fui dos muitos que acalentou essa ilusão nacional de nos transformarmos numa espécie de ponte entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo.
Havia, então, para além das inúmeras variantes da teses do abandono, desde as sinceramente portuguesas àquelas que apenas exprimiam os interesses de certas potências estrangeiras, três concepções sobre o destino da utopia portuguesa.
Os defensores da tese do ter consideravam que Portugal tinha um conjunto de territórios como propriedade sua, donde podia perfeitamente exercer-se o utendi et abutendi.
Os defensores da tese do estar assinalavam que nesses territórios apenas estava uma administração portuguesa, pelo que urgia manter a nossa presença.
Finalmente, havia aqueles que perfilhavam a tese do ser e que, desde António Enes, consideravam não haver Portugal sem África, que o ser português implicava a igualdade absoluta entre as diversas parcelas de Portugal e as suas variadas gentes, sem a existência de um núcelo centro-metropolitano, à volta do qual gravitassem diversos satélites coloniais.
O regime político da Constituição de 1933 que, adoptando o Acto Colonial, começou por aplicar os conceitos do ter, passou, nos anos cinquenta, a balbuciar a tese do estar para, tardiamente, assumir, por palavras e actos, mas com muitas omissões, as teses do ser, até ao momento em que, com a revisão constitucional de 1972, preferiu retirar o conceito estratégico nacional da Constituição, passando a vigorar uma espécie de interregno de dúvida metódica. Entre o tudo e o seu nada de um mito nacional, preferiu utilizar o racionalismo contra os ventos da história, um racionalismo marcado por uma agonia que, embora honrada, acabou por não ter glória.
O destino fez com que tivesse vivido vinte e poucos anos da minha vida nesse Portugal dito anos do fim. Éramos, então, um pequeno Estado que sustentava uma guerra de guerrilha em três frentes, numa altura em que uma superpotência, como eram os Estados Unidos da América, suportava o vexame do Vietname e que médias potências europeias, como a França e o Reino Unido, preferiam o regresso às Metrópoles, segundo a lógica do custo-benefício.
Portugal, neste contexto, ficou sozinho, de certeza que não vergonhosamente só, mas enfrentando quase directamente os interesses da outra superpotência, a URSS, ao mesmo tempo que sofria as incompreensões e certa falta de visão estratégica dos Estados Unidos da América e sem receber qualquer espécie de solidariedade activa conjunta dos Estados europeus ocidentais.
Exercitar nestas circunstâncias a independência nacional implicava necessariamente uma forte dose de teimosia bem como uma enorme carga de energia histórica e talvez não fossse viável tal persistência se a comunidade nacional não aderisse ao objectivo de defesa do território sob formal soberania portuguesa. Infelizmente, nunca foi possível testar tal atitude através de uma metodologia retintamente democrática que, como tal, plebiscitasse a condução do Estado neste domínio. Porque se não existissem tais receios, estamos convencidos que uma ampla maioria dos que então tinham direito à cidadania portuguesa, tanto na Europa como nas então províncias ultramarinas, teria sufragado a existência de um Portugal multicultural. E com muitíssima mais legitimidade, poderíamos contestar o crime daquela chamada descolonização que não quis ouvir a voz das populações nem auscultar o sentido profundo desse plebiscito de todos os dias.
Angola podia ser tão ou mais portuguesa quanto o Alaska e o Hawai se tornaram Estados norte-americanos ou a Sibéria se integrou na Federação da Rússia, autodeterminando-se pela russificação. A única diferença é que Portugal não era uma superpotência e a Europa Ocidental, depois da Segunda Guerra Mundial, deixara de ser protagonista dos interesses mundiais.
O sonho português tinha fundas razões e muito coração. Faltavam-lhe apenas os meios de que são feitos os Estados: o poder, a força material. E nem sempre as legitimidades conseguem compensar as potências.
Pena também foi que esse sonho não pudesse ser exercitado antes da tempestade do pós-guerra. Que se não tivessem seguido as estratégias estruturais propostas por Paiva Couceiro e Norton de Matos, antes da ONU se ter transformado num festival de novos Estados em crise de adolescência.
Apesar de tudo, valeu a pena. Eu, pelo menos, tive a honra de haver pertencido a uma comunidade nacional espalhada por três continentes, onde pôde exercer-se, embora imperfeitamente, o sonho romântico de construção de uma união de povos de várias culturas.
É evidente que a chamada descolonização, ao provocar um vergonhoso fim do ciclo do Império, lançou Potugal europeu e as parcelas africanas e asiáticas que, até então, até então, estavam integradas na soberania portuguesa numa profunda crise de identidade.
Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe lançaram-se nas aventuras da construção de um Estado e de uma Nação. Num primeiro momento reagiram violentamente contra a antiga metrópole, mas, pouco a pouco, foram redescobrindo, através do exercício da língua comum, que faziam parte de uma comunidade cultural suprapolítica, onde a força das recordações comuns poderia forjar laços para o futuro.
Ao abrigo de uma expressão valorativamente neutra, a tecnocrática cooperação, os países africanos de língua oficial portuguesa, apesar das distanciações provocadas pelos sinais ideológicos invocados pelos respectivos governos, foram aproximando-se do velho Portugal europeu e conversando com o Brasil. Infelizmente, os episódios da guerra da África Austral, na qual se inserem as violentas guerras civis de Angola e Moçambique, não têm permitido que as relações de paz consolidem aquilo que já é hoje um desejo comum de reaproximação.
Do mesmo modo, a profunda crise económica que abalou a potência brasileira, bem como os reflexos isolacionistas da respectiva política externa, não têm permitido que o Atlântico se possa transformar num oceano mais moreno, mais luso-afro-brasileiro.
Com efeito, os que sonharam com um Portugal do Minho a Timor, mesmo depois da integração nas Comunidades Europeias, ainda continuam a considerar que Portugal tem de continuar voltado para o Atlântico, a caminho do Sul.
Porque Portugal continua a ser mais do que a pequena casa lusitana, com os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Portugal também são as comunidades portuguesas espalhadas pelos vários cantos do mundo e as relações especiais que o Estado português e os cidadãos portugueses podem estabelecer com os outros Estados de expressão oficial portuguesa e com todos os homens que têm o português como língua materna.
Este património moral, que faz parte da essência da nação portuguesa, ainda hoje constitui uma espécie de sguro contra a nossa eventual diluição no seio de um grande espaço europeu e, muito especialmente, no contexto da Península Ibérica.
Reavivar esta memória e lançar os caboucos para uma mais intensa cooperação futura deveriam constituir uma das prioridades do Estado e da Sociedade Civil em Portugal. Porque um Brasil que vença a crise económica, uma Angola com paz e Moçambique em segurança serão, sem dúvida, importantes peças no xadrez internacional.
Mais tarde ou mais cedo, há-se chegar a hora dos países de língua oficial portuguesa.
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.