POR UMA CONSTITUIÇÃO MENOS PÉSSIMA

 

A nossa Constituição de 1976, essa mistura de repentismo de assembleia com o pudim científico dos constitucionalistas, esse híbrido de ciência e revolução, que ora proclama os amanhãs que cantam ora se assume como uma tentativa de antologia de direito comparado, trata-se de um texto que ainda está preso ao imaginário de uma revolução frustrada e onde, aqui e além, abundam ideologismos e utopismos que tendem a transformar o legislador em Pontífice, a lei em Textoo e o jurista em Doutor, para utilizarmos as palavras de Pierre Legendre.

De facto, ela resulta de um conúbio entre certo messianismo marxista e o positivismo cientista, levando a alguma confusão entre o sagrado e o profano, sem que consiga destrinçar-se o real do imaginário e a lógica do mito.

Surgiu, a partir de então, aquele messianismo constituinte que levou o deputado-jurista de todos os partidos a assumir-se como uma espécie de João dasa Regras de uma nova Idade de Ouro, género que talvez deva pertencer a um certo pretérito imperfeito que não deve servir de lição para o futuro, principalmente quando se tem a ilusão de fazer uma constituição que dure até à consumação dos séculos, como proclamava o vintismo de Borges Carneiro, esse vanguardismo dito racionalista que talvez não passe de mero regresso ao mágico.

Com efeito, importa assinalar que o esforço pedagógico e científico de toda uma geração de constitucionalistas pós-revolucionários, bem como a vigilância político-jurídica do Tribunal Constitucional, não conseguiram iludir a realidade de quase sempre termos vivido em regime de manifesta inconstitucionalidade por omissão. Especialmente quando os governos e as maiorias parlamentares deixaram de ter como objectivo o abrir o caminho ao socialismo, porque, desde então, governar e legislar transformaram-se em exercícios de quotidiana fraude à lei constitucional.

Um simulacro que permitiu que se fomentasse uma certa hipocrasia social, contribuindo para que o direito se afastasse da vida, numa duplicidade que permitiu a economia paralela, a evasão fiscal, a corrupção e todo o vazio ético que desprestigiou a democracia e o Estado de Direito.

Contudo, a constituição de 1976, apesar de ser uma péssima constituição, talvez seja das menas péssimas que tivemos desde 1822, porque o movimento da vida e a democracia da sociedade civil foram revogando, pelo desuso, grande parte das normas constitucionaisa programáticas.

Outro dos factores que contribuiu para o desprestígio da constituição tem a ver com a circunstância das revisões constitucionais terem ficado presas nas teias da partidocracia bipolar, nessa balança de poderes do sistema político português, onde continua a prevalecer o modelo de bipartidarismo entre partidos directores, apesar do ambiente ser formalmente pluralista.

E a próxima revisão corre mais uma vez o risco de se repetir o modelo das revisões constitucionais de 1982 e de 1989, quando o texto foi alterado com base em prévios acordos interpartidários, primeiro entre a AD e o PS e, depois, entre o PSD e o PS.

Com efeito, quando a decisão fundamental sobre a revisão constitucional apenas depende dessa hipótese de acordo entre o partido único da situação governamental e o principal partido da oposição parlamentar, os defeitos partidocráticos do actual sistema político são agravados pela tentação bipolarizadora, correndo-se o risco de ficar ainda maior a distância que separa a chamada classe política da chamada sociedade civil.

Os dirigentes dos nossos principais partidos parecem esquecer que o poder político numa democracia pluralista não é tanto uma relação entre governantes e governados, quanto uma relação entre a sociedade e o aparelho de poder.

É que numa democracia assente na poliarquia de uma sociedade aberta, o Estado não é o L'État c'est moi do absolutismo, mas antes o L'État c'est nous do projecto de Estado de Direito Democrático.

O Estado não é um qualquer ele de uma cidade do comando pairando por cima da cidade da obediência, mas antes um nós, uma comunhão ou comunidade em torno de um objectivo comum permanente, feito por causa das coisas que se amam.

Do mesmo modo, o governante é governado e o governado, governante. Porque o governante, em vez de um poder solto ou absoluto, apenas pode ter um poder-dever, uma função, um ofício. Porque o governado, enquanto cidadão, deve ter participação directa na política, tanto através do poder de sufrágio, quanto pelo referendo constante com que a opinião pública vai sufragando os actos da governança.

E isto, porque os governantes brotam dos próprios governados, não podendo assumir-se como herdeiros do pólo activo de um qualquer pactum subjectionis.

Compreende-se pois que o poder político em modelos de democracia pluralista seja mais amplo que o binómio governantes / governados. Ele é acima de tudo relação entre o Estado-Aparelho-de-Poder e o Estado-Comunidade, ou, como os clássicos diziam, entre o Principado e a República.

O poder político é, portanto, complexo e global, abrangendo todo o espaço da polis. Assim, se se torna absurdo reduzir a tensão política à relação governante / governado, não deixa também de soar a ridículo traduzi-la pela relação situação / oposição, com dois partidos a reivindicarem o monópolio de tais posições.

Basta recordar que os dois partidos em causa, PS e PSD, ambos com dimensão nacional, repartem entre si o domínio do aparelho do poder em sentido amplo, do governo às regiões autónomas e autarquias.

Além disso, tanto PS como PSD, marcados pela tipologia dos catch all parties, assumem-se cada vez menos como partidos ideológicos ou partidos de militantes, e cada vez mais como partidos de integração de massas ou partidos de eleitores. Isto é, os partidos em causa têm tanto mais força quanto mais se enraizam na rede de micropoderes da sociedade civil, ou, dito de outra forma, quanto mais grupos de interesse e grupos de pressão conseguem mobilizar.

Ora, quando, ao arrepio destas tendências, os dois principais partidos portugueses assumem a pretensão de conformar a Constituição em termos da partidocracia de partidos directores, parecem esquecer que a complexidade do poder político em regime pluralista, vai além do mero aparelho de poder, exigindo que o Estado Comunidade não se transforme num marginal, susceptível de se perspectivar como um pária ou um ser indiferente perante uma decisão excepcional como é a revisão constitucional.

É que qualquer norma constitucional não pode deixar de inscrever-se no âmbito mais vasto de um pactum unionis. Qualquer norma constitucional não deve ser ditada de cima para baixo, isto é, do aparelho de poder para a sociedade. Pelo contrário, deve resultar do máximo consenso da comunidade.

Se a verdadeira autoria de uma Constituição deve caber à comunidade, qualquer desvio partidocrático do processo, apenas contribui para que se agrave a distância entre o Estado Aparelho e o Estado Comunidade.

Sobre a matéria, apenas me apetece citar o antigo conselho de um dos pais-fundadores da Constituição americana, John Adams: uma constituição é um padrão, um pilar, uma garantia, quando compreendida, aprovada e amada. Mas sem esta compreensão e amor, é como se fosse um papagaio de papel, um balão, pairando no ar.

De facto, as boas constituições, as constituições amadas e compreendidas pela comunidade, são as constituições que vêm da república para o principado, as constituições que constituem um Estado a partir da própria sociedade. Só assim é que as constituições podem unir. E só assim é que também podem durar.

A nossa Constituição, que ainda tem muitos dos vícios típicos das constituições de peritos, dessas constituições tipo pudim que se assumem como uma espécie de antologia de direito constitucional comparado, corre sérios riscos de se partidocratizar. O que será inevitável se cair na ratoeira de ficar dependente de um acordo feito nos bastidores entre os plenipotenciários do líder socialista e do líder social-democrata.

E de pouco servirá que o rascunho de acordo seja depois objecto de discussões técnicas entre os deputados constitucionalistas mobilizados para a comissão parlamentar em causa, dando ilusão de participação aos restantes partidos do sistema, como o PP e o PCP.

As actas dessas sessões poderão ser interessantes para notas de pé de pagina de futuras sebentas de direito constitucional ou como excelente pretexto para dissertações académicas, mas talvez não sirvam para dar autenticidade à democracia participativa, pluralista e representativa.

A constituição tem que ser compreendida e amada. Tem que ser instrumento para a união do Estado Aparelho com o Estado Comunidade. Os partidos dominantes se não querem que, por um lado, se agrave a partidocracia e que, por outro, não cresça o indiferentismo dos cidadãos, têm pelo menos que suscitar a discussão pública do processo de revisão constitucional.

De outro modo, a Constituição ficará em regime de segredo de Estado, bem menos aberta à discussão pública que o horário dos hipermercados, o código da estrada ou o impacto no ambiente de uma qualquer ponte para o outro lado do tédio...

Por mim, gostaria de ter uma constituição menos péssima, isto é, mais próxima dos homens concretos que têm o direito e o dever de se assumirem como portugueses. Deixá-la ao sabor dos humores e desamores dos altos dignitários e das Cortes ou estados gerais de dois, quatro ou cinco partidos, é repetir o erro crasso daqueles outros pretensos constitucionalistas que rabiscaram entre corredores e salas fechadas o acordo de Maastricht.

Que não aconteça aos nossos partidocratas o que ainda há pouco tempo sucedeu aos eurocratas: perceberem, a posteriori, que se os povos não assumem os acordos dos plenipotenciários os textos deixam de ter autoridade.

 

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.