PORTUGAL ANOS NOVENTA

DE NOVO O PRINCÍPIO DA DISTÂNCIA

 

Artigo publicado no semanário Expresso, em 10 de Fevereiro de 1989

 

 

Quem observar a Europa desta sua praia ocidental - para uns, finisterra da periferia, para outros, porto de partida para todas as sete partidas -, vai poder asistir, durante a década de noventa, ao regresso da inacabada questão das nacionalidades, com as consequentes secessões separatistas e unificações integracionistas. Neste contexto, talvez importe rpensar o sonho do nacionalismo português, depois do fim do ciclo do Império e do afã de concretização da prioridade das prioridadesque foi a adesão às Comunidades Europeias. Com efeito, nesta década de noventa, estão criadas as condições para que, depois do tratado de paz franco-alemão, que criou a CECA, a CEE e a EURATOM, se lancem as bases para um acordo global de paz perpétua entre o Ocidente e o Oriente da casa comum europeia.

Neste contexto, Portugal, que é o mais permanente dos Estados europeus e talvez o único que não tem problemas de minorias nacionais nem reinvidicações históricas significativas de unificação, pela integração de outras parcelaas territoriais, talvez deva meditar sobre meia dúzia de verdades elementares que condicionam o respectivo modo de estar no mundo.

Temos, talvez, de recordar que o actual mapa político da Europa é dominado por uma série de grandes Estados, herdeiros de projectos imperiais de vocação europeia ou regional que, dentro de si, incluem várias nações sem direito a Estado.

Temos de lembrar, também, que, pelo contrário, grande parte dos pequenos Estados europeus resulta de meros tratados de paz entre potências vizinhas e que, em quase todos eles, persistem problemas de minorias nacionais.

Temos de assinalar que as actuais fronteiras estaduais europeias foram fixadas, na sua grande maioria, há menos de um século, em virtude tanto da explosão das nacionalidades do século XIX como das duas guerras mundiais deste século.

Temos de insistir no facto de sermos um pequeno Estado Nação que conseguiu conquistar, manter e, algumas vezes, reconquistar a respectiva autodeterminação, ao longo de oito séculos de independência política, ousando resistir tanto às naturais tentativas de absorção levadas a cabo pelo forte Estado vizinho como aos cantos de sereia de certos espaços supranacionais.

Importa, na verdade, reconhecer que o segredo da nossa secular resistência nacional, se assentou em factores internos, consolidou-se, fundamentalmente, pela forma como conseguimos situar-nos internacionalmente, na balança das alianças externas. Com efeito, o ser com outros na comunidade internacional sempre potenciou o nosso eu comum. Sempre soubemos gerir interdependências para garantirmos a independência nacional. Sempre soubemos submetermo-nos para sobrevivermos, ao mesmo tempo que também sempre lutámos para continuarmos a viver.

A independência afonsina, por exemplo, afirmou-se tanto na luta contra o Islão, em aliança com os cruzados do norte da Europa, como também nas resistências aos reis de Leão e de Castela, sendo especialmente garantida pelo reconhecimento internacional da Santa Sé.

Isto é, Portugal surgiu no contexto de um espaço supraestatal e não apenas como resultado de um dálogo bilateral. Porque sempre procurámos o d'além para salvarmos o d'aquém, porque nunca caímos na ingenuidade de afrontarmos o muro de Castela como simples púcaro de barro em choque com uma panela de ferro. Porque sempre utilizámos a manha e o jeito, onde nos faltavam as forças. Sempre demos entusiasmo ao pensamento, aventura ao pragmatismo e paz na terra aos homens de boa vontade, através de uma cultura de diálogo e de universalismo.

Importa hoje de reconhecer o facto de, a partir de 1986, termos que efectivar o processo de defesa da independência nacional num terreno onde, há muito, estávamos desabituados a mover-nos. isto é, no quadro de dois grandes espaços supranacionais: o da Aliança Atlântica e o da Comunidade Europeia.

É evidente que, nestas circunstâncias, a ilusão de um nacionalismo autárquico, temperalmente isolacionista e tendencialmente auto-suficiente, foi claramente substituída pela realidade de uma soberania autocondicionada num grande jogo de diálogo multilateral.

Voltámos, de certa maneira, às nossas origens medievais, quando também conquistámos a independência no seio da res publica christiana, jogando com a tensão entre dois pólos hegemónicos desse espaço: o imperium e o papado.

Também agora, a nossa independência nacional tem de afirmar-se num quadro multinacional através de uma adequada gestão de interdependências, pelo que a afirmação da nossa personalidade nacional tem que desdobrar-se nos vários diálogos intraeuropeus, intraocidentais e face ao resto do mundo, muito especialmente face ao mundo que o português criou.

Defender a independência nacional portuguesa na década de noventa talvez não seja manter a utopia do conceito de soberania elaborado por Jean Bodin nos finais do século XVI, quando Portugal já tinha quatro séculos de independência nacional.

De facto, não aprendemos a construir o Estado com Maquiavel, nem precisámos do romantismo da Revolução Francesa ou do idealismo alemão para descobrirmos a consciência nacional. Já tínhamos Estado antes de haver o nome de Estado; já éramos soberanos antes de ser inventado o conceito de soberania. Do mesmo modo, desde 1385, e, sobretudo, desde 1640, já praticávamos a soberania popular e a autodeterminação nacional, precedendo muitos dos princípios que virão a ser consagrados universalmente com as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa.

Somos antigos, mas não somos antiquados. Porque o nosso modelo de autodeterminação nacional constitui, sem dúvida, um dos melhores exemplos de transição entre a aldeia e a república universal.

Tal como a polis grega serviu de luzeiro para os séculos vindouros, a forma portuguesa de Estado Nação pode constituir um adequado modelo de harmonia universal para todos esses povos à procura de Nação que, como brasas debaixo das cinzas, se estão a transformar na nova fogueira dos nacionalismos que incendeiam as carcaças de certos imperialismos europeus, dos Balcãs ao Báltico e da Biscaia aos Urais.

O nosso modelo de comunidade nacional, bem distante dos imperialismos ditos nacionalistas que se enfrentaram nas últimas guerras mundiais, constitui o small is beautiful que melhor permite a conjugação internacional.

Nesta viragem do século, temos de compreender que a construção do espaço integrado da Comunidade Europeia vai, inevitavelmente, gerar a descolonização da Europa e a ultrapassagem do ambiente dos pós-guerras, incluindo as próprias guerras frias, sobre cujas cinzas continuamos a viver. Que o digam os chamados regionalismo e federalismo intra-estaduais que marcam os grandes Estados e que constituem simples eufemismos tecnocráticos que escondem efectivos nacionalismos proibidos.

Seria trágico que o exemplo português fosse, por nós, substituído por modelos que tendem a ser ultrapassados.

Temos de reconhecer que defender a independência nacional nestas circunstâncias passa, sobretudo, por defender um conceito português de independência nacional.

Isto é, passa, em primeiro lugar, por defendermos um efectivo conceito de nação cultural, de um modelo que seja mais Nação-Estado do que Estado-Nação. Passa, portanto, por um nacionalismo enraizadamente português.

Um nacionalismo que assim tem de ser cada vez mais um regresso aos próprios factores democráticos da formação de Portugal. A um conceito mais de comunidade do que de sociedade, mais de instituição do que de contrato, mais de valores do que de interesses. Tem de ser a procura das raízes da nossa harmonia. Das aldeias e bairros que constituem as nossas repúblicas municipais e de um conceito mais federativo de Estado em todas as frentes onde o carácter unitário não exclua nem a participação nem a descentralização. Porque é típico do nosso modo de estar no mundo e de construir o político, estabelecer uma unidade de ordem através da diversidade dos elementos institucionais que a compõem. Que o diga esse resultado chamado Brasil, o mais grandioso dos Estados Nações e o mais unitário dos grandes espaços estaduais do nosso tempo.

O nosso nacionalismo tem pois de ser o nacionalismo que convém aos portugueses.

Por mim, não me temo do muro dessa nova Castela que é a CEE. Receio mais o cheiro da nova canela que está a despovoar o reino de valores nacionais. Dessa imperceptível colonização que nos vai massificando, destribalizando e gerando um destrutivo individualismo onde não há rei nem lei, nem paz nem guerra.

E as nações são sempre, como assinalava Georges Burdeau, um sonho de futuro partilhado, situando-se naquela terra de fronteira, onde confluem a Poesia e a História.

Porque se o homem é razão e vontade, também não deixa de ser imaginação. E nestes tempos de homo aeconomicus, importa fazer lembrar que também somos um animal symbolicum.

Porque, como dizia Paul Ricoeur, toda a razão tem um horizonte sobredeterminado pela crença; porque há um ponto onde o racional comunica com o mítico; porque há uma constituição simbólica do laço social.

A nação não é, contudo, um qualquer mito, da mesma família das ideologias, como certo neomarxismo tende a propagar com algum êxito, sob roupagens vocabulares que ocultam as respectivas origens. A nação é também um facto e um valor. E os valores nada têm de subjectivo ou de arbitrário. Nem sequer estão para além da realidade. Os valores apenas existem para penetrar a realidade.São como a luz que atravessa certos corpos e lhes dá significação.

Veja-se o que ensinou esse grande mestre da portugalidade que foi Hernâni Cidade, quando definia a nação como algo que tanto é um corpo geográfico como uma alma espitiual. Para ele, os agrupamentos sociais, já unidos ou em processo de se unir pela comunidade do sangue e da língua, vivem durante transcursos, que podem ser de séculos ou de milénios, sob idênticas forças de modelação física e espiritual - o mesmo ambiente geográfico, o mesmo clima, a mesma alimentação, as mesmas condições de actividade, os mesmos estímulos de pensamento e de imaginação. A esta situação chama o autor vago e instintivo impulso de convergência a que se pode seguir um intencional esforço de concórdia de vontades lúcidas, o que acontece sob o incitamento de um chefe e na oposição a outro grupo.

E a Nação forma-se com o seu corpo geográfico e a sua alma espiritual, quando às colectivas determinações do presente começam a dar apoio as memórias colectivas do passado, começam a determinar objectivo as aspirações colectivas do futuro.

Por seu lado, a Pátria é algo de diferente: da Nação emerge a Pátria, quando, à luz da cultura clássica, que ensina a palavra e aviva o orgulho que ela suscita, se exalta o sentimento de suas singularidades reais e supostas, de seus triunfos no esforço por que as vai afirmando. E estamos em face duma nova realidade espiritual, duma nova personalidade colectiva.

Sermos Portugal, querermos continuar a ser Portugal, não é apenas termos direito a dispôr de uma história privativa que podemos comemorar com mentalidade de museu ou de turismo cultural, como certas comissões oficiais tendem a estabelecer.

Sermos Portugal não é apenas estarmos na terra de Portugal ou possuirmos o bilhete de identidade de cidadão português. Sermos Portugal é cremos em Portugal e querermos ser Portugal de forma actualista, sem utopias e sem acronias. Ser Portugal é vivenciar um Portugal permanecente. É, como dizia Jacques Maritain, sermos uma comunidade de modos típicos de sentimentos, enraizada no chão físico da origem do grupo e no chão moral da história. É reconhecermos que uma determinada comunidade só se torna ou só permanece como nação quando esta situação de facto entra na esfera tomada de consciência, quando o grupo alcança ou resiste numa psique comum. É, como dizia Fernando Pessoa ter raízes no passado e raízes no futuro.

Porque a nação teria sempre uma triplice relação com o passado, o presente (nacional e estrangeiro) e o futuro. Porque em todos os períodos há forças que tendem para manter o que está, porque tendem a adaptar o que existe às condições presentes, e forças que tendem a dirigir o presente para um norte previsto, visionado no futuro.

Uma Nação é, assim, um organismo específico em que, como em todos os organismos, lutam, sustentando-o, forças que tendem a dissolvê-lo e forças que tendem a conservá-lo. Entre as forças de integração, Pessoa coloca, em primeiro lugar, a homogeneidade do carácter nacional, cuja acção integradora consiste em nacionalizar todos os fenómenos importados do estrangeiro. Refere, em segundo lugar, a coordenação das forças sociais e, em terceiro, a sociabilização das forças individuais, considerando que a decadência artística e literária é o fenómeno mais representativo da decadência essencial de uma nação.

Temos, pois, que a nação é entendida como um conceito puramente místico, como um meio de criar uma civilização, como um organismo capaz de progresso e de civilização. Porque a nação sendo uma realidade social não o é material. É mais um tronco do que uma raiz. O Indivíduo e a Humanidade são lugares, a nação o caminho entre eles [...] A Nação é a escola presente para a Supernação futura.

Ser Portugal nesta década de noventa, onde o ano de 1989 acabou por ser muito mais importante que o desejado 1992, tem de ser reviver Portugal, esta algema de séculos que nos pode libertar. É que, conforme as palavras de Fernando Amado, podemos ser pigmeus sobre a cabeça de um gigante.

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.