PORTUGAL CREPUSCULAR

Artigo publicado em Povo Livre, Maio de 1976

 

1.Explosividade

É de suicidas o povo de Portugal. Talvez ele seja um povo suicida. Para ele, a vida não tem sentido transcendente. Sim, talvez queira viver, mas para quê? Mais vale não viver.

Temos de reconhecer que estas palavras de Miguel de Unamuno, escritas em 1908, se não são totalmente verdade, reflectem, contudo, uma certa faceta do nosso modo de ser.

O mesmo Unamuno explica melhor: esta tristeza enorme, este pessimismo arreigado tem origem na falta de um ideal colectivo elevado, um desses ideais que, unificando a vida de um homem e de um povo, lhes confere aquela personalidade sem a qual, e apesar da riqueza, a vida não passa de tristeza e de vacuidade. A origem de tal pessimismo é a apatia, uma apatia que, Às vezes, desencadeia ataques de fúria.

A resposta a Unamuno, talvez a encontremos em Keyserling que, ao considerar-nos um povo contraditório, chegou à conclusão que todos os feitos e gestos dos portugueses foram verdadeiros fenómenos de explosão. Porque, comprimidas, tensas e, no entanto, sem contacto interno, as forças contrárias avizinham-se como um explosivo. E não há possibilidade de desenvolvimento integral senão pela explosão [...] Inversamente, a impossibilidade de fazer a explosão, determina, por necessidade lógica, a crispação; as possibilidades unicamente parciais das forças portuguesas, tornam-nas sem finalidade.

Não nos interessa procurar esboçar alguns dos traços essenciais do carácter português nem sequer tentar explicar as causas próximas e remotas do nosso modo de ser.

Diremos apenas que as sucessivas alcáceres quibires que nos têm acontecido, de há séculos a esta parte, provocaram um certo desinteresse colectivo.

A tal falta de estímulos supragrupais que nos vem lançando uns contra os outros e quase todos contra fantasmas.

O tudo ou o seu nada. O patriotismo mais obscurantista ou a desnacionalização mais vesga. Um constante balouçar na corda bamba dos absolutismos sobre o abismo do desânimo e da apatia.

Até quando?

2-Portugal Aposentado

Portugal, 1976. Hoje, como desde há séculos, o crepúsculo.

Depois do sonho do Quinto Império, a Pátria, de novo, em perigo. A penumbra das horas incertas, a encruzilhada. Da tese para a antítese, da antítese para a tese. Contraditoriamente ... mas sem nunca acontecer a síntese superadora.

Encravados entre Castela e o Atlântico, com dois arquipélagos esquecidos nas brumas atlânticas, que Portugal podemos ser?

É que ser Portugal não é apenas conservar Portugal; não é apenas cultivarmos os nosos jardins à beira mar plantados, com as sementes e as ferramentas que os outros nos emprestarem.

Isso é aposentar Portugal.

Continuar Portugal terá de ser, forçosamente, reinventar Portugal. Sem as euforias adolescentes do tudo, nem os pessimismos gerontocráticos do nada.

3. Salvar Portugal

Parafraseando Almada Negreiros, poderemos dizer que, apesar de já estarem escritas todas as frases que hão-se salvar Portugal, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo Portugal.

E salvar Portugal será salvá-lo, em primeiro lugar, da própria utopia da salvação, revistam os salvadores a forma de pessoas - por mais carismáticas que seja, - ou apareçam disfarçadas em doutrinas e ideologias - por mais científicas ou revolucionárias que possam parecer.

4. A Utopia

Todas as utopias são uma forma de fuga ao real, reflectindo uma atitude de desespero - são estáticas relativamente à dinâmica da história e conduzem ao mero exercício mental de alguma coisa que se pensa, mas não se vive.

Como escreveu Arnold Toynbee, as utopias escrevem-se nas sociedades cujos membros perderam a esperança de progresso e aspiram a um invencível equilíbrio estável como forma de travagem do declínio. Ao pretenderem fornecer o modelo planificado do que deveria ser (Garcia Pelayo), transformam-se, pura e simplesmente, numa negação do mundo e dos seus conflitos (Jean Servier).

5.A Religião sem Transcendente

Assim Portugal, aqui e agora. Entre os adeptos da salvação ideológica - autoproclamados de progressistas - e os crentes no slavador carismático - pelos outros rotulados de reaccionários -, o mesmo dogmatismo.

Para ambos, a política não é a religião ou, nessa altura, passa a ser a inquisição. E o fanatismo não é viril, é piegas. Não é corajoso, é medroso (Albert Camus).

Tanto uns como outros, ao procurarem permanecer fiéis àquilo que consideram a verdade, acabam por ser remetidos para a torre de marfim da ortodoxia estéril, de lá desferindo nefelibatas imprecações contra a ininteligibilidade do real.

Mas sempre uma forma de meio mundo andar ao serviço do outro, da tal idade de oiro, do tal milagre, em nome do qual podem cometer-se todos os crimes.

6.Os Moderados

Há também maquiavéis da abstenção que, segundo dizem, não percebem nada de política.

Mas, qual catavento bem oleado, estão sempre do lado que lhes convém, sempre ao sabor do vento novo.

São precisamente os que, anquilosados pela vergonha daquilo que representam - uma civilização moribunda - se apressam sempre em denegrir os seus e em fazer a apologia dos adversários moderadamente.

7.A Liberdade

Como dizia Frei Dinis das Viagens da Minha Terra, eis que a sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era - mas muito menos ainda pode ser o que é.

O que vai ser então?

De facto, nenhum analista político, por mais bruxo que seja, pode, através da bola de cristal das conjecturas, visualizar o cenário onde se desenrolará, dentro de meses ou anos, a vida portuguesa.

A história não é nenhuma peça de teatro que cada um represente no palco da existência. A liberdade do homem não se restringe apenas à interpretação de um certo papel a priori escrito.

A liberdade do homem implica a própria invenção dos papéis de cada um, porque a liberdade é, acima de tudo, criação.

A liberdade vive-se, não se vê. E no dia a dia. Não é nenhum messias impossível para um amanhã distante, mas a carne e o sangue dos nossos desejos.

Não é nenhuma gramática de fórmulas abstractas, mas um estilo que se pratica.

Mas sem o humanitarismo piegas daqueles conservadores que, dos seus castelos de palavras, contróem puzzles teóricos de labirintico entendimento, esquecendo-se da fome e da injustiça a que o resto do mundo está condenado.

Não, pois, a emoção pelo tornozelo torcido de uma qualquer Luizinha Carneiro, mas a consciência das alienações que o económico e a política constantemente nos movem.

8.Capitalismos

Ao transformar aquilo que era um vínculo directo do homem com as coisas - a autêntica propriedade humana - num mero instrumento técnico para o exercício da dominação, o capitalismo condenou o homem à servidão do individualismo.

Ao pretender construir o socialismo com homens traumatizados, em luta pela sobrevivência, nada se conseguirá senão uma nova forma de opressão. Deixar intacta a tirania da produção e do lucro, transferindo para uma entidade vaga, chamada Estado, todos os instrumentos de dominação dos antigos patrões privados, será agravar ainda mais a desordem histórica que o capitalismo provocou.

Como sair, então, desta sociedade de homens desenraízados e mutilados, incapazes de se revoltarem como homens livres e não como escravos? Como vencer o sistema que faz com que as necessidades, os hábitos, os interesses e as dificuldades económicas determinem massivamente o comportamento e as opiniões dos homens? A resposta é nos dada por Emmanuel Mounier: não se curará o económico senão com o económico, mas não só com o económico.

9. Os curandeiros

E o que se tem feito em Portugal?

Em vez de tratarem a doença que nos afectava com os ares livres da solidariedade e da co-responsabilidade, sem os quais não pode construir-se nenhuma comunidade, remeteram o convalescente para a enxovia dos moribundos.

Acrescentando aos males do feudalismo financeiro, os micróbios do socialismo de miséria - o medo e o ódio, sem os quais o totalitarismo nada consegue - os curandeiros gonçalvistas, ao pretenderem a edificação de um certo colectivismo saudosisticamente estalinista, fizeram renascer o mais radical dos individualismos: os homens sem fé nos destinos da comunidade, em luta pela sobrevivência.

10. Portugal Crepuscular

Continuará o crepúsculo de Portugal? Continuaremos o tal cadáver adiado que procria?

Se persistirmos em balouçar do radical individualismo para o radical colectivismo, nunca nos libertaremos das amarras da apatia e as utopias continuarão a iludir-nos.

Seremos apenas meros aposentados esperando que a morte nos liberte. Pior: suicidas sem coragem para a consumação do acto do suicídio.

A salvação não cairá do céu como maná. É preciso submeter-nos para sobreviver, mas teremos de lutar para continuar a viver (Antoine Saint-Exupéry).

Portanto, aventura e pragmatismo. Pensamento e entusiasmo. Aproveitarmos as nossas contradições no sentido da construção, da síntese superadora; não nos embrenharmos no desespero da crispação, nem do ecletismo das misturas impossíveis.

A liberdade de Portugal passa pela autodeterminação de cada português, pela vitória que cada português alcançar sobre a tentação da servidão individualista.

E não vale a apena lavarmos as mãos como Pilatos, atirando para cima de fantasmas muitas das culpas por que somos directamente responsáveis.

Todos somos culpados do país que somos. Temos o país que merecemos e seremos aquilo que soubermos querer.

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Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.