QUE OS REPÚBLICOS SEJAM HOMENS LIVRES!

Por José Adelino Maltez

 

Muitas vezes se tem dito, e é uma verdade,

que não há mais país livre sem instrução,

nem um país pode ser bem governado,

quando as ciências que mais contribuem para ilustrar os governantes

se abandonam ao desamparo.

 

JOSÉ JOAQUIM LOPES PRAÇA, 1868

 

A gentileza dos colegas da Universidade Nova de Lisboa desafiou-me para, largando certo exílio interno face aos donos do poder do neocorporativismo universitário, fazer um breve esboço avaliativo da presente ciência política portuguesa. Trata-se de tarefa bem ingrata para quem sabe, de experiência sofrida, os  meandros desse processo difuso que trata de cortar, uma a uma, as raízes da identidade de uma determinada situação cultural e da consequente identidade política, especialmente quando urge um sentido de missão capaz de reforçar aquela âncora de valores múltiplos que permite dar, a cada indivíduo, coerência, permanência e estabilidade, facilitando a socialização e superando as diferenciações ou desigualdades de natureza, classe, estatuto ou educação, permitindo a afirmação de qualquer coisa de comum e de constante entre os membros de uma determinada comunidade, o tal quid que permite a vivificação da cidadania.

Quando uma comunidade se desintegra culturalmente, desenraizando-se do húmus onde se aconchegam e vivificam os respectivos valores e, sobre um vazio de pertenças, apenas actuam os holismos de um Machtstaat - por exemplo, a exigência do imposto -, pode criar-se um aparelho de poder desligado da comunidade, ou um estado de violência susceptível de justificar eventuais actos de violência e, quiçá, a própria legítima defesa daquele individualismo que, perante um vazio de solidariedade, já não é capaz de invocar o aqui d’el rei.

Contudo, a desesperada invocação de um sincrético nacionalismo, mais ou menos confundido com um mitificado soberanismo, isto é, o apelo que se faça a um super-investimento identitário num só tipo de pertença política, pode fazer-nos esquecer que a república dos portugueses é uma daquelas comunidades ou nações que já existiam antes do Estado, da soberania e do próprio nacionalismo e que tinha hábitos de relação saudável com as comunidades infra-nacionais e supra-nacionais. Hoje, só uma comunidade nacional que possa reforçar a pluralidade de pertenças, é capaz de garantir os sentimentos positivos de fidelidade face a uma herança e, consequentemente, os laços de solidariedade. Só o respeito pelas experiências comunitárias de valores, o reforço da memória e dos projectos comuns pode dar estabilidade a uma vida quotidiana onde o sentido do bem comum exige o reforço das pertenças partidárias, religiosas, familiares.

Do mesmo modo, a educação para a cidadania tem também que reforçar as grandes causas das solidariedades supra-nacionais ou civilizacionais, desde as identidades europeias e ocidentais ao bem maior da pertença a uma cidadania do género humano, a uma república universal, inevitável consequência de qualquer Estado de Direito, onde a paz pelo direito constitui o projecto maior dos que pretendem que a força da razão seja mais forte que a razão da força.

Aliás, se fosse possível viajarmos numa qualquer máquina do tempo, aterrando no passado português de há cerca de cem anos, por exemplo, numa aula de princípios de direito político do Professor José Frederico Laranjo, na única escola de ciências sociais então existente em Portugal, a Faculdade de Direito de Coimbra, encontraríamos preocupantes semelhanças com a actualidade, tanto a nível do objecto dos estudos políticos como do processo de estudo desse mesmo objecto. Cem anos depois, as grandezas e as misérias do Portugal Contemporâneo permanecem nos planos da organização política e da mentalidade universitária, com idêntica sociedade relativamente aberta e paralela democracia política, ambas marcadas por uma obsidiante oligarquização e pela consequente corrupção, enquanto no tocante aos subsolos filosóficos permanece o mesmo fundo positivista e o subsequente cepticismo.

Repetindo a postura pluralista de Laranjo, tembém poderemos dizer que os governos da actualidade são [] governos de persuasão, ou governos pelo discurso, conforme a expressão de Guizot, embora com uma liga inevitável de corrupção, de que não são isentos, onde, na ordem internacional, vigora um sistema de sistemas de Estados grandes e pequenos, regidos pelas leis da atracção e do equilíbrio, onde os centros de hegemonia são diversos e onde há uma multidão de nações livres. Porque o tal Estado não passa de uma sociedade mais geral do que as sociedades que o integram, uma sociedade superior, entendida como a nação organizada em Estado ou, à maneira de Bluntschli, como a pessoa da nação politicamente organizada num país determinado.

Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.

Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raúl Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo …

Neste dobrar do milénio, nós, os ocidentais, que fomos capazes de, em nome da ciência, construir uma civilização, até nem podemos ter a pretensão de a ordenar. Num tempo de velocidade, vertigem e impaciência, neste império do vazio e do efémero, continua a faltar-nos uma concepção do mundo e do homem, uma concepção da vida, que entenda o homem e o mundo como um cosmos, dotado de uma ordem que nos faça olhar para cima e para dentro. Continuam a dominar concepções do homem e imaginários típicos do iluminismo e do romantismo, bem como ideologias e ideias-feitas para séculos pretéritos, e não temos a alternativa de uma nova fundamentação para os presentes sinais dos tempos, dado que continuamos a não querer misturar o lume da profecia com a serenidade da razão.

Eis o pano de fundo das angústias do nosso tempo, onde se insere o problema da política e talvez seja melhor reconhecermos aquele homem de sempre que levou Platão, há vinte e cinco séculos, a formular problemas que continuam sem resposta.

Ainda hoje continuamos a procurar a salvação do mundo, para utilizarmos o título de uma tragicomédia de José Régio, de 1954. Ainda hoje, nos dividimos entre o partido democrático, para quem só os princípios da liberdade são a garantia do progresso, o aristocrático, defensor da qualidade dos governantes contra a inconsciência e a mediocridade das maiorias, e o extremista, acreditando em regimes de autoridade baseados as aquisições da Ciência e da Técnica. E todos apenas vão concordando naquela metodologia que os leva a estar em desacordo, como Lenine a invocar Ford e Taylor, o futurismo fascista a repetir as imprecações do surrealismo anarco-comunista ou Georges Sorel a servir de inspirador para todos os totalitarismos dos anos vinte do século pretérito. Resta-nos a esperança de um rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha..., que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores. Um rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.

Ao longo destes anos em que nos temos preocupado quase exclusivamente com a politologia, sempre procurámos aceder a tal província do saber de forma comparativista. Com efeito, seguindo o conselho de Almerindo Lessa, não vale a pena descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado. Neste sentido, não há que temer ser estrangeirado, desde que sejamos capazes de seguir o conselho de Fernando Pessoa no sentido de nacionalizarmos tendências importadas, até porque não nos parece poder haver pensamento sem pátria, porque só é possível atingir o universal, partindo do local e peregrinando pelo supra-paroquial. Aliás, como proclamava o nosso Miguel Torga, talvez o universal não passe do local sem muros, do aqui e agora das nossas circunstâncias desafiado pelas exigências da cidadania do género humano.

O caso-limite a rejeitar talvez esteja naquela forma do professor português de filosofias estrangeiras que realiza um ensino de tradução e nem sequer cuida de fazer corresponder os conceitos importados às nossas próprias palavras. Insistir nesta via é aceitarmos ser colonizados, mesmo que disfarcemos a cedência com as bonitas palavras do progresso, da modernização ou da europeização.

Da mesma maneira, seria suicida assumirmo-nos como laboratório para experiências sociológico-políticas, visando a confirmação de teorias que outros elaboraram sem nos terem em conta. Se foram tristes algumas cenas do PREC, quando nos tornámos numa espécie de potencial reserva das ideologias e das utopias de certos marginais do Ocidente, continua a ser doloroso prestarmos menagem e citação a alguns politólogos do desenvolvimentismo e da mudança política que nos continuam a comparar a um república de bananas, embora temperada por uns pretensos brandos costumes, onde até poderiam instituir-se estufas de democracia exportável para o Terceiro Mundo ou a Europa do Leste. Soa a ridículo sermos transformados em simples palco para filmes sobre golpes de Estado na América Latina ou para mimetismos sobre o fascismo italiano, nessa permanecente leyenda negra que, à maneira de certas páginas de Byron, nos imagina como um país de bárbaros latinos com dois ou três ministros e um chefe de protocolo, civilizados e polidos.

Mas, se não devemos ser província, isto é, terra vencida por um qualquer centro de saber estranho à nossa índole, seria tolo não acompanharmos o movimento geral das correntes de ideias do nosso tempo, abrindo as janelas de par em par e tirando trancas da porta, mesmo que surjam resfriados ou que fiquemos mais susceptíveis aos assaltos. Infelizmente, a ciência política em Portugal continua a padecer da nossa pequena dimensão universitária, onde, em vez de um harmónico small is beautiful, se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem. Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.

Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.

Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.

Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.

Muitas vezes, alguns dos mais originais criadores portugueses, acabam por ser esquecidos e silenciados no seu próprio tempo. Já no século XX, um Cabral de Moncada ficou reduzido à torre de marfim do eruditismo universitário, enquanto se sucederam elogios fáceis a glosadores de modas efémeras, sem qualquer espécie de enraizamento na realidade da nossa história. Do mesmo modo, as investidas da imaginação criadora, da filosofia simbólica e das parábolas de um Agostinho da Silva, acabaram por ser reduzidas ao fait-divers de uma qualquer manipulação mediática, como se os apelos que esse mestre foi fazendo pudessem reduzir-se à dimensão de flor na lapela para uso de certos políticos.

Os juristas da Restauração, de Francisco Velasco Gouveia a João Pinto Ribeiro, proibidos pelo pombalismo, foram efectivamente saneados das nossas anteriores culturas políticas, do absolutismo ao demoliberalismo, monárquico e republicano. Muita da filosofia política da escolástica peninsular dos séculos XVI e XVII, nunca mais foi repensada, por não se enquadrar nos moldes laicistas e anticlericalistas, que mobilizou iluministas, positivistas e marxistas.  Liberais do centro excêntrico como Silvestre Pinheiro Ferreira ou Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque foram vencidos pela história e condenados ao pariato dos mal-amados. Obras contra-revolucionárias, como as de José da Gama e Castro foram objecto de censura explícita ou implícita e por isso nem se reparou que este último autor até foi o tradutor de The Federalist.

Os velhos liberais da era do constitucionalismo monárquico são quase todos banidos pelos posterior republicanismo e quase ninguém reparou que em 1878, um António Cândido editou a primeira grande tese doutoral de ciência política, os Princípios e Questões de Philosofia Política, I - Condições Scientificas do Direito de Suffragio, a que, três anos depois foi acrescentado o II - Lista Multipla e Voto Uninominal. Os republicanos dissidentes do partido conformado por Afonso Costa e pelo anticlericalismo carbonário deixam de ser citados e a tese de J. E. Campos Lima, de 1914, sobre O Estado e a Evolução do Direito, é saneada por anarco-sindicalismo.  Com o salazarismo, novo absolutismo trata de vingar-se de demoliberais da direita e da esquerda e até o próprio pensamento social-cristão quando desalinha do modelo oficioso passa para a marginalidade, pelo que nem registo em bibliotecas públicas ficou da frustrada tese de Domingos Monteiro, Bases da Organização Política dos Regimes Democráticos. I A Organização da Vontade Popular e a Criação da Vontade Legislativa, de 1931.

Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação dessa espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.

Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.

Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.

Alguns brilhantes teorizadores portugueses continuam a dividir o mundo segundo as dimensões da direita e da esquerda, mas padecendo daquela visão paroquial e demonizante de certos fantasmas da década de sessenta do século XX, segundo a qual até personalidades que se autoqualificam como da esquerda liberal passam a ser determinados como da direita democrática, para que, a partir de tal posição, não exista mais mundo polido e civilizado, mas tão-só as trevas da reacção.

Continuamos a sofrer os efeitos daquele gnosticismo típico do século XIX que irmanou cientismo, materialismo e positivismo, de tal maneira que qualquer governante dos dias que passam, ou dos imediatamente antecedentes, não deixa de invocar a Luz contra as Trevas, o Progresso contra o Atraso e a Modernização contra o Bloqueio.

Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda da direita, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencista representada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.

Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.

Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.

Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.

Alguns exemplos preocupantes, poderíamos anunciar. Com efeito, até o ancestral confronto universitário português entre o humanismo católico e o humanismo laico, um, tendencialmente marcado pelo nihil obstat e outro, mais ou menos maçónico, depois de se perder nos meandros das teorias da conspiração, deixou de ter sentido.

Aliás, os tradicionais estrangeirados portugueses da Idade Contemporânea, onde era esmagadora a hegemonia do pensamento político francês, foram recentemente substituídos pelas ways of thinking anglo-saxónicas. Curiosamente, alguns dos principais vultos do pensée 68 francês, pouco dados à New Left, foram substituindo Sartre, Althusser e os vultos da filosofia do desejo pelos membros da Escola Crítica de Frankfurt mais citados nos Estados Unidos da América.

Se ainda há alguns anos o vanguardismo português considerava como capital cultural do país o nível de discussões travadas entre bolseiros, refugiados e escrevedores que circulavam pelos Champs Elysée, eis que, nos dias que correm, parecemos deslizar para um novo foco colonizador, agora posto no além-Atlântico, entre Madison e Stanford, com viagens por Nova Iorque, Providence e Chicago. O resto do país, que é o país, situado fora dessa nova capital mental, porque não quer ir além da dimensão deste país, transformando-se em mera província, onde apenas se cultiva a paisagem, num sítio que quer abster-se de história, enrodilhado na vergonha pelo que fomos, apesar de muitos o querem erigir em reserva ecológica ou em campo de concentração para escavações arqueológicas.

Outros, quando procuram pensar sobre a invenção democrática, parecem continuar a tratar tal ideal como coisa importada do desenvolvimento dos outros, como se entre nós não houvesse tradições plurisseculares de consensualismo, resistência libertadora e vontade de autonomia. Especialmente numa época em que o Ocidente precisa de reaprender os génios invisíveis que vão agitando espaços culturais de quem estamos tão próximos, como o islâmico, o africano, o sul-americano e os da China e do Japão. Esses mundos que precisam daquele diálogo que aceita a contemporaneidade filosófica de todas as civilização, a dimensão da cidadania do género humano e a vontade de acedermos ao universal pela diferença. Porque, de outro modo, as reacções fundamentalistas contra formas etnocêntricas, poderão multiplicar-se, decepando a esperança de uma terra dos homens.

Se o exagero de um certo positivismo organicista, já serôdio, não permitiu que, nas décadas de quarenta e cinquenta do século XX, tivéssemos importado o behaviorismo; se as teorias elitistas de Pareto, Mosca, Ostrogorski e Michels chegam à universidade com quase um século de atraso; eis que as teorias pluralistas quase não são citadas, apesar da crítica do neocorporatism a essas mesmas teses ter entrado na moda.

Temos uma democracia, plurissecular, apesar de ainda continuar a ser qualificada como uma jovem democracia, com necessidade de consolidação e aprofundamento, mas falta-nos uma nova teoria da democracia, susceptível de dar pedagogia aos activistas políticos e aos políticos profissionais e de servir para uma efectiva formação para a cidadania.

As teorias sobre a democracia pensadas em português são quase todas de alguma excelente, mas serôdia, literatura antifascista, desde as páginas políticas dos seareiros Raul Proença e António Sérgio, aos trabalhos de Domingos Monteiro ou de alguns monárquicos personalistas.

Falta, sobretudo, um reconhecimento dos efectivos factores democráticos da formação de Portugal. Não apenas das raízes comunitárias medievais, tão profundamente tratadas por Jaime Cortesão, Paulo Merêa e Agostinho da Silva, ou do poder político no Renascimento português, como tão magistralmente teorizou Martim de Albuquerque, mas também dos elementos de soberania comunitária que deram corpo à Restauração de 1640.

Falta também ultrapassar uma certa historiografia de guerra civil ideológica, por exemplo, o perspectivar-se 1820 como uma reacção contra o despotismo ministerial do absolutismo e que, neste sentido, se configurou como uma efectiva restauração do consensualismo.

As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori. Com efeito, em Portugal, mesmo as minorias intelectuais com intervenção na política não cessam de viver em rebanho, para, numa curva da estrada, caírem na tentação de serem conselheiras de um qualquer césar de multidões, como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.

A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e mesmo os que dela estão dependentes foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.

Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, deixam transformar-se em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.

O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, tem levado os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.

Aliás, o nosso sistema político-partidário constitui um sistema de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole. Isto é, continuamos a dar razão a meia dúzia de autores bem lusitanos, desde Joaquim Pedro de Oliveira Martins a Raúl Brandão, desde Ramalho Ortigão ao próprio Fernando Pessoa, desses que, sem catastrofismos, perceberam Portugal nas suas próprias entranhas e que continuarão perenes enquanto os portugueses forem os inveterados portugueses que somos.

Aliás, politologicamente falando, é um erro reduzir o sistema político ao sistema político partidário. O sistema político é um todo onde o sistema politico-partidário constitui um simples subsistema, ao lado de outros subsistemas, como o social e o económico, e integrado num determinado ambiente internacional. O poder político, aquele poder que produz decisões políticas, também não é uma coisa que possa conquistar-se, como uma espécie de terra de ninguém. O poder polítio é uma relação entre vários poderes e micropoderes...

Portanto, falar em qualquer reforma do sistema político-partidário, pensando exclusivamente a partir das suas quezílias intestinas e julgar que, de cima para baixo ou de dentro para fora, é possível alterá-lo, constitui mero exercício de ilusionismo que não consegue intervir nas circunstâncias do ambiente que não só o condicionam, como também o conformam. O sistema politico partidário não passa de uma peça de um mais vasto sistema político. Não passa de um mero subsistema dentro de um sistema mais vasto que o diluiu.

Os factores de poder que o dito subsistema politico-partidário pode gerir são ínfimos, dado que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências. Da mesma forma, o poder internacional do Estado português não é uma coisa é uma relação, medindo-se menos pela física do poder e mais pela estratégia, pelo que as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades.

Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão, percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que cientificamente temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.

Quem não tiver consciência desta realidade, está a perder aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano, muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel ter inventado o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin ter inventado a soberania. Seis séculos antes de começar a balbuciar-se a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.

Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.

Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.

Este nosso permanecente Portugal Contemporâneo, longe de ser um ponto de chegada, constitui um efectivo espaço de transição entre os restos do absolutismo, onde o monarca já não era rei, mas um executante da abstracção geométrica da soberania,  e o actual modelo de democracia, representativa e pluralista, onde, no vértice da pirâmide normativa, se coloca um povo, também abstracto, mas realmente intermediado pela partidocracia e pelos restos corporativos da sociedade de ordens.

Neste sentido, seria ilusório simplificarmos o processo dos regimes políticos portugueses contemporâneos, dizendo que passámos do absolutismo para o liberalismo, da monarquia para a república e, depois, da ditadura para a democracia. Aderíamos assim àquela perspectiva progressista do processo histórico e dos adeptos da revolução por cumprir, para quem ainda vivíamos a frustração de não termos construído o socialismo e de não termos chegado a um fim da história, que até poderia implicar a extinção de Portugal como nacionalidade.

Mais do que a morfologia, interessa o metabolismo. Porque, na política, há sempre mudanças de estado, com a passagem de um todo para outro todo, onde cada todo, enquanto organismo vivo, isto é um ser que nasce, cresce e morre, é composto de várias parcelas. Logo, a primeira causa de qualquer alteração estrutural é sempre de carácter interno, onde há que atender ao duplo processo da assimilação, do anabolismo, e da transformação dos restos rejeitados (catabolismo).

Porque não basta a mera determinação super-estrutural da organização do poder político, interessa detectar os tipos funcionais de governação. Não nos devemos ficar pela fotografia estática das instituições na sua normatividade, no conjunto das suas regras de organização, dado que importa fazer a análise da sua dinâmica, nomeadamente quanto à detecção dos modelos de luta pelo poder, das práticas do exercício do poder e na detecção dos valores que as animam. Por outras palavras é preciso comparar a normatividade com a efectividade, medindo a distância que separa aquilo que se proclama daquilo que se pratica.

O Portugal político deste virar do milénio continua as peripécias de um projecto de modernização marcado por um mimetismo face a revoluções e a reformas, não só estrangeiras como também estranhas à nossa índole e às nossas circunstâncias, para parafrasearmos Fernando Pessoa. Neste sentido, conservaram-se alguns dos elementos caracterizadores da ideia iluminista de história dos vencedores, com a consequente literatura de justificação, bases de uma espécie de doutrina dominante, marcada pela tensão entre uma falsa ideia de progresso e uma demonizada mitificação da reacção, toda essa postura modernista que continua a admitir a vergonha de uma lenda negra sobre o nosso passado.

Talvez seja conveniente recordar, como salientava Ortega y Gasset, que todas as revoluções são pós-revolucionárias, porque uma revolução inteira é um processo dialéctico, em que a tese é dada por uma certa situação histórica, a antítese por uma ideologia que procura antepôr‑se‑lhe, e, finalmente, a síntese, pela revolução em sentido restrito, em que se fundem numa unidade nova os elementos anteriores.

O que efectivamente dura é aquela mistura de contrários que consegue conciliar o status anterior com o projecto que procurou contrapor-se-lhe. Assim, entre nós, o vintismo provocou os chamorros e barões devoristas de 1834-1836; o setembrismo deu origem aos ordeiros e a Costa Cabral; a Regeneração produziu Rodrigo da Fonseca e Fontes Pereira de Melo, tal como o 5 de Outubro gerou a bonzice de António Maria da Silva e um manequim fardado como Óscar Carmona; o 28 de Maio, depois do tenentismo, conduziu a Salazar; e os cravos e chaimites de Otelo Saraiva de Carvalho propiciaram Mário Soares e Cavaco Silva.

O Portugal de hoje, em regime de plena integração numa União Europeia, com eleições directas para um Parlamento Europeu e com os dois maiores partidos domésticos integrados nos dois principais partidos europeus, não é o Portugal de 1820, 1826 ou 1834, quando, decepados do Brasil, já não passávamos de um mero Estado secundário dependente dos Estados Directores da balança da Europa nascida do Congresso de Viena de 1815. Mas não é pela integração partidária que deixamos de correr o risco de nos transformarmos num Estado exíguo.

O Portugal do voto censitário de 1834 não é o Portugal do sufrágio universal de 1974. O Portugal sem partidos e sem democracia do salazarismo e da Guerra Fria não é o Portugal do pluralismo e da democracia dos nossos tempos posteriores ao ano 1989. O Portugal da televisão única de há cerca de duas décadas ou da Emissora Nacional de há meio século não é o Portugal do actual oligopólio televisivo. O cineasta Manuel de Oliveira não é o cineasta António Lopes Ribeiro e já não vivemos o ecologismo salazarista do viver habitualmente, entre o Pátio das cantigas e a Aldeia da roupa branca. O Portugal dos 80% a 90% de analfabetos de há cem anos não é o mesmo que o Portugal com 29% de analfabetos de 1974 e do que a iliteracia e o analfabetismo funcional de hoje, apesar de haver cerca de um milhão de cidadãos com frequência do ensino superior. O Portugal político antes do voto das mulheres não é o mesmo do modelo sociológico dos dias que correm, tal como o presente sufrágio universal não se confunde com os populismos cesaristas de 1918 e de 1928 ou o carácter plebiscitário das votações salazaristas dos primeiros dias do Estado Novo.

O cavaquismo não foi o cabralismo nem o fontismo e os actuais modelos, do PS e do PSD, parecem não querer seguir a raposice de José Luciano. Aliás, nem PS é o partido democrático de Afonso Costa, nem o PPD/PSD se confunde com os regeneradores, apesar de continuarem a existir partidos-sistema e da tendência para o rotativismo ser pesada. Do mesmo modo, as franjas do PCP e do CDS/PP nada têm a ver com os evolucionistas e os unionistas da I República, nem com os avilistas, constituintes ou reformistas da monarquia liberal.

No entanto, entre o Portugal de hoje e o descrito no El-rei Junot e no Vale de Josafat de Raul Brandão, ou no Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins, há imensas coincidências, bem retratadas na Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Existe, sobretudo, um deserto de ideias e a crescente compressão daqueles valores que apelam para a moralização da política, situação a que não corresponde o proclamado fim das ideologias, mas antes o triunfo de uma delas, a do utilitarismo, do cepticismo e do mero recurso aos melhoramentos materiais, tudo embrulhado no papel de fantasia do neo-maquiavelismo, onde não falta a confusão de proclamados defensores da democracia que a reduzem ao mero antifascismo, como se, neste oceano, não existissem proponentes de novos e velhos totalitarismos.

E aqui estamos nesta viragem do milénio, já com espaço existencialmente vivido para dizermos que todas as revoluções que aspiram à instauração de um homem novo, acabam por adiar as necessárias reformas do homem de sempre.

Assim tem acontecido em Portugal com todas as manias de um Estado Novo que, apenas fazem uma operação plástica à parte visível do inamovível iceberg do Portugal Velho. Porque, não sendo possível a criação do homem novo, a forma do político apenas se assume como o novo continente onde se derrama o conteúdo vital do português de sempre.

A fuga ao modelo do bom senso por parte dos opinion makers da actualidade tem impedido uma reflexão capaz de aprofundar as raízes da nossa democracia, onde há uma história plurissecular e a consequente democracia da sociedade civil.

Além disso, com a não ligação do mundo académico à reflexão sobre a questão política e com a liquidação dos grandes gabinetes de estudos dos partidos políticos, não foi favorecida a necessária passagem do regime da opinião ao regime do conhecimento. Curiosamente, desde que as fundações alemãs deixaram de operar em Portugal, os três grandes partidos defensores da democracia pluralista, deixaram de investir nas respectivas escolas de quadros e nem sequer têm estabelecido relações não interesseiras com os núcleos de estudos politológicos das instituições universitárias existentes. Isto é, sem termos opinião crítica, a opinião pública passou a ser usurpada pela opinião publicada, onde o poder instalado, nomeadamente nas televisões, continua a ter a ilusão demiúrgica de canalizar a liberdade de expressão do pensamento, promovendo, a partir do situacionismo, uma oposição conveniente, mas silenciando aquelas oposições que seriam incómodas, porque potenciais mobilizadoras de uma maioria moral e de uma maioria sociológica. Daí que as direitas e as esquerdas instaladas, depois de favorecerem a visibilidade de opinion makers oriundos da extrema-esquerda e da extrema-direita, aparentando pluralidade, apenas contribuíram para a ditadura do statu quo, recentemente reforçada pelo quase monopólio da reflexão tele-política por comentadores oficiosos do situacionismo.

Neste Portugal Contemporâneo demoliberal, entre a monarquia constitucional e a I República, a centenária procura de substituição de um Portugal Velho por um Portugal Novo em nome da modernização foi sempre feita através de revoluções vindas de cima para baixo que se foram recobrindo com sucessivos e contraditórios ismos, conforme os interesses dos grupos que dominavam o aparelho de poder e que tentaram aplicar um qualquer programa, mais ou menos ideológico.

Em todas elas, quase sempre o mesmo procedimento para a procura da legitimação. Conquista-se a elite urbana, assalta-se o poder do centro político pelo domínio da capital, mesmo que se parta de uma cidade periférica e, depois, invocando-se a luta da cidade contra as serras, vai-se propagando o modelo à província através do controlo dos aparelhos culturais da soberania e do uso do cacete despótico.

Se foi assim o vintismo, principalmente depois da martinhada de 11 de Novembro de 1820, logo o processo se repetiu nos dias posteriores ao regresso de D. Miguel em 1828, à vitória dos cartistas em 1833-1834, ao 5 de Outubro de 1910, ao 28 de Maio de 1926 ou ao 25 de Abril de 1974.

Momentos, às vezes, de contrários sinais ideológicos, onde se vão amalgamando descontentes em sucessivas coligações negativas. Com exaltados vintistas que hão-de ser ferozes miguelistas. Revolucionários republicanos de 1910 a instaurarem a ditadura nacional de 1926. Ou ex-salazaristas a usarem cravos vermelhos. Porque as contra-revoluções podem ser revoluções ao contrário e não apenas o contrário de uma revolução.

Outras mudanças ocorreram sem tumultos significativos, originadas pelo vazio de poder, como a revolução de 9 de Setembro de 1836, o golpe de restauração da Carta de Costa Cabral, em 1842, ou o movimento que instaurou a Regeneração, em 1851. Onde as mudanças assentaram em golpes palacianos, adaptados à alteração das lideranças daquelas sociedades secretas que constituíam então o subsolo da política, sempre comandando as episódicas movimentações de massas que sempre foram instrumentalizadas como elementos de pressão face a movimentações de bastidores.

Sucedeu sempre uma espécie de luta entre a cidade e as serras, entre uma lógica burguesa, estrangeirada, adaptada aos valores que nos chegavam empacotados no expresso de Vilar Formoso, e uma lógica rural, onde a primeira se reduzia à mobilização da inteligência e a segunda se ficava pela honra. Quando se impunha, e se impõe, o casamento entre a inteligência com honra e a honra com inteligência.

O segundo dos vícios tradicionais do demoliberalismo tradicional tem a ver com o facto de tais sociedades secretas reforçarem o nosso habitual recurso às fórmulas imaginativas da teoria da conspiração para a explicação das frustrações individuais ou grupais, gerando a estúpida confusão entre a política e a religião, destruidora da estabilidade psicológica do demoliberalismo, tanto na monarquia constitucional e na I República, como no anti-liberalismo salazarista.

O terceiro dos defeitos do demoliberalismo contemporâneo dos portugueses está na adopção de um figurino constitucional que, muitas vezes, seguiu o pronto-a-vestir de uma constituição-pudim, como dizia John Adams (1735-1826), onde a arquitectura utilizada obedeceu fielmente a tradutores de constituições estrangeiras.

Segue-se, em quarto lugar, a tensão entre sucessivas classes políticas que se unificam face ao inimigo comum do antigo regime derrotado, configurando-se o conjunto d’os compadres e as comadres que constituem o país legal, como dizia Alexandre Herculano. Com efeito, do país da realidade, vem a constante da indiferença que, de vez em quando, explode em revolta populista ou em apoio a césares de multidões, isto é, a experiências de poder pessoal, onde o carismático e o messiânico se aliaram.

Em quinto lugar, refira-se a centralização, aquilo que o mesmo Alexandre Herculano considerava o fidei-comisso legado pelo absolutismo aos governos representativos, mas enriquecido, exagerado; é, desculpai-me a frase, o absolutismo liberal. Um mal que tem a acirrá-lo o próprio processo de formação dos partidos, dado que estes sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem.

Em sexto lugar, importa referir que as nossas mudanças míticas de 1820, 1936, 1910, 1926 e 1974, sempre as configuraram como uma espécie de restauração de uma Idade do Ouro que o imediato ancien régime teria usurpado. E a nação menos revolucionária do mundo, assim passou a viver numa revolução perpétua, como salientava D. António Ferreira Gomes.

Mas numa revolução entendida platonicamente como regresso a um mitificado antes da pureza primitiva. 1974 fez-se contra os quarenta e oito anos de fascismo. 1926-1933 contra o demoliberalismo dos partidos. 1910 contra as liberdades perdidas pela concentração monárquica. 1820 contra o despotismo ministerial. Isto é, todas as revoluções quiseram ser regenerações e restaurações de um tempo anterior, mais perto do tempo anterior ao pecado originário.

Em sétimo lugar, saliente-se o efectivo regime de liberdade vigiada que os modelos demoliberais tradicionais geraram, em plena continuidade face ao absolutismo e o inquisitorialismo, com a proibição de certos grupos e de certas ideias. Deu-se assim uma sucessão de absolutismos porque até à vitória do pluralismo em 25 de Novembro de 1975, quando os vencedores anti-comunistas admitiram a permanência dos comunistas, sempre houve partidos proibidos e cidadãos sujeitos a capitis deminutiones. E mesmo quando a proibição se suavizou permaneceram os condicionamentos, formais ou informais, através daquilo que hoje se designa pelo politicamente correcto com as inevitáveis agressões ideológicas.

Uns são brutais, como o lápis azul do sargento censor do salazarismo, outros são subtis, dominando o aparelho de poder cultural, com formas educacionais que condenam ao silêncio os que não são convenientes.

Podemos até dizer que os regimes demoliberais tradicionais, apesar de invocarem a soberania nacional, sempre temeram a voz directa dos povos e o sufrágio universal, ao atribuírem à minoria dos activistas urbanos que conquistou o poder a missão de controlo construtivista da nação, visando a educação daquilo menosprezavam como a ralé.

Assim, uma das mais explícitas propostas de instauração do sufrágio universal surgiu do populismo miguelista durante a Patuleia que, paradoxalmente, continuava o sonho de certo vintismo. Aliás, a experiência massificada dos sufrágios directos teve início com os autoritarismos deste século, do sidonismo ao 28 de Maio pré-salazarista.

Saliente-se a este respeito que o colégio eleitoral da I República, excluindo as eleições de 1911, variou entre um mínimo de 471 557 eleitores e um máximo de 574 260, entre os recenseados, e um mínimo de 282 387 e um máximo de 407 960, entre os votantes. Com efeito, tal regime não pode vangloriar-se de sufragismo, comparativamente à monarquia constitucional, ao sidonismo e ao 28 de Maio. Na monarquia constitucional, segundo a legislação de 1884, os potenciais votantes chegaram atingir cerca de 70% da população adulta masculina, em 1884, descendo para 50% em 1895 (863 280), atingindo o mínimo de 693 424 em 1908, mas com 450 260 votantes.

A reforma de 1911, se foi mais generosa quantos aos recenseados, comparando-a com a legislação em vigor em 1910, mas não com a de 1895 ou de 1884, na prática, acabou por ter menos votantes que os de 1908 e até menos do que os eleitores de 1834. Contudo, logo se regressou ao modelo censitário, temendo-se o voto dos cavadores de enxada, e em 1915, tanto os recenseados como os votantes estão abaixo dos mínimos da monarquia constitucional.

Mais grave é a comparação entre a República e o sidonismo, dado que em 1918, admitindo-se o voto dos analfabetos e dos oficiais e sargentos das forças armadas, se atingiu um colégio eleitoral de cerca de 900 000 pessoas, com cerca de meio milhão de votantes, isto é, duas vezes mais recenseados e votantes que as anteriores eleições republicanas. E a comparação continua a padecer de défice comparativo se a fizermos com a eleição para o Presidente da República da Ditadura Nacional em 1928, onde Carmona aumentou em cerca de um quarto de milhão de votos, os recebidos por Sidónio Pais. Isto é, o presidente da ditadura recebeu quase o dobro dos votos dos recebidos por todos os partidos concorrentes às eleições parlamentares de 1925.

Os próprios actos eleitorais da I República variaram entre a plebiscitação do quase partido único do sistema e a determinação do grau de adesão dos eleitores às respectivas dissidências, almeidistas e camachistas, dado que uma efectiva alternância aos democráticos, apenas começou a ser esboçada a partir de 1919, com a junção de evolucionistas e unionistas nos liberais, os tímidos vencedores do acto eleitoral de 1921, mas logo derrubados pelo golpe outubrista desse mesmo ano, marcado pelos acontecimentos da Noite Sangrenta.

Se a democracia fosse entendida como o mero reino da quantidade, mensurável pela participação formal dos votantes em actos eleitorais, teríamos de concluir que, entre nós, até 1974, a ditadura foi mais democrática que a democracia. De facto, os democratas republicanos do início do século, temiam o voto dos analfabetos, tal como antes os monárquicos liberais receavam tanto o voto destes como o dos operários. Aliás, no último quartel do século XIX, verificaremos que o partido republicano defende o destaque para o voto das grandes cidades, enquanto os partidos monárquicos tendem a integrar as grandes cidades nos respectivos distritos, em defesa do voto rural, e até a defender o voto operário. Com efeito, não há nenhum partido que não faça a sua contabilidade eleitoral, pelo que Sidónio nunca temeu nem o voto operário nem o voto rural, dado que ensaiou o primeiro grande diálogo directo com as massas, nisso se distinguindo dos ditadores clássicos e dos movimentos fascistas que irão surgir nos anos vinte.

Os clássicos republicanos, marcados pelo modelo do professor primário e do burguês da classe média baixa dos lojistas, farmacêuticos, barbeiros e outros veneráveis frequentadores dos comícios republicanos, onde doutores e médicos bem peroravam, acabaram por perder em democraticidade face aos gestores do sistema monárquico liberal e aos posteriores arquitectos do populismo ditatorial.

De qualquer maneira, todos perderam comparativamente ao modelo democrático posterior a 1974. Perdeu especialmente o último colégio eleitoral do regime da Constituição de 1933, dado que, mesmo com o voto das mulheres, apenas atingiu 1 800 000 recenseados em 1973, contra os 6 231 372 de 1975, apesar de, nesta data ainda continuarmos a ter cerca de 30% de votos analfabetos.

Por outras palavras, só a partir das regras do jogo semeadas em 1974 é que a democracia voltou a conciliar-se com o sufrágio universal, apesar de alguns vanguardistas hierarcas do processo revolucionário chegarem a proclamar que aquilo que o povo escolheu nada tinha a ver com aquilo que convinha ao mesmo povo. Isto é, muitos revolucionário, entre os quais alguns doutorados em direito, chegaram a propor a superação dos resultados eleitorais de 25 de Abril de 1975, invocando, em nome do socialismo revolucionário institucionalizado, aquilo que os dignitários republicanos tinham referido face ao voto do povo pé-descalço, cavador de enxada ou de roçadora ao ombro. O problema foi terem-no deixado votar…

Quem viveu o ambiente das eleições de 25 de Abril de 1975, com filas imensas de povo anónimo a caminho das urnas, a fim de manifestarem a sua autodeterminação pessoal e sentiu, assim, existencialmente a força mística, mas real, de uma comunidade a votar contra a violência de um poder que pretendia continuar a subversão a partir do aparelho de Estado, não pode deixar de proclamar que a democracia é, sobretudo, experiência, dado que nela importa mais o primum vivere do que o deinde philosophari.

Tudo foi facilitado pela existência do chamado viracasaquismo, ou adesivismo, como vai dizer-se depois de 1910, com antigos jacobinos de 1820 que passam para os apostólicos agentes de D. Carlota Joaquina, enquanto leais servidores de D. João VI se tornam liberais, sempre aquelas evoluções rápidas das crenças, apenas explicáveis pelo oportunismo da adequação às flutuações do poder.

Este subsolo político do Portugal contemporâneo, onde podem inventariar-se cerca de cento e vinte governos e sete dezenas de eleições gerais, levou a que apenas meia dúzia delas tenham sido vencidas pela oposição, embora não pelo contrapoder.

Com efeito, o predomínio do poder executivo e a degenerescência da personalização do poder, no dominante primado do executivo, têm sido os elementos marcantes dos ciclos políticos portugueses, desvalorizando-se assim o papel das mudanças eleitorais.

Na monarquia liberal destacou-se Fontes Pereira de Melo, chefe de governo durante cerca de quatro mil dias, logo seguido pelos duques de Saldanha e Loulé, por José Luciano e Hintze, todos com cerca de três mil dias, pelo duque da Terceira, com cerca de dois mil, e por Joaquim António de Aguiar, com mil e quinhentos, numa certa repartição equitativa entre a direita e a esquerda do sistema.

Na I República, outra foi a instabilidade das quatro dezenas de governos, onde apenas se destacou a relativa duração das experiências de Afonso Costa e António Maria da Silva, ambos com menos de um quinto do tempo da governação de Fontes.

Seguiu-se o gigantismo de estabilidade do governo de António de Oliveira Salazar, mais de treze mil dias, levando a que o modelo posterior a 1974 gerasse uma via média que se aproxima de alguns dos ciclos de estabilidade da monarquia liberal.

De qualquer maneira, sobretudo na monarquia liberal e na I República, a efectiva sede de poder situava-se para além dos governos e dos parlamentos, sendo influenciada decisivamente pelas sociedades secretas que marcavam o ritmo dos directórios partidários. Na I República, tornou-se também importante o movimento das secções secretas instrumentalizadoras das forças armadas, bem como das forças vivas do poder económico, num pluralismo corporativo que não foi totalmente destruído pelo autoritarismo salazarista, quando também se assistiu ao regresso de um neo-congreganismo.

Depois de Abril de 1974, se se mantiveram os condicionamentos anteriores, o pluralismo foi alastrando em benefício dos poderes económicos, embora passasse a ser dominante o modelo partidocrático, temperado embora pelas personalizações democráticas do poder, de Ramalho Eanes a Mário Soares e, sobretudo, com Aníbal Cavaco Silva.

Por outras palavras, apesar da variação dos modelos eleitorais, o predomínio do poder executivo em sentido amplo sempre foi capaz de cumprir a máxima maquiavélica, assumida por Salazar, segundo a qual o essencial do poder é este procurar manter-se.

Com efeito, raramente os ciclos políticos foram desencadeados por mudanças eleitorais, à excepção da experiência fusionista desencadeada a partir das eleições de 1865. Só depois de Abril de 1974 é que se quebrou o atavismo, apenas explicável pela revolta do sufrágio universal.

Por isso, ainda se lêem com algum proveito retroactivo alguns politólogos do princípio do século XX, como Ostrogorski e Michels, para os quais qualquer massificação da actividade política traz sempre consigo o reforço da lei de ferro da oligarquia. Porque quanto mais se massifica a política, mais indiferentistas se tornam as massas e maior capacidade operacional ganham os grupos minoritários habituados a circular nas culminâncias do poder e a controlar as rédeas da besta leviatânica.

Bem mais ao estilo das crónicas de costumes, sempre diremos que as nossas autoconvencidas elites cabem quase todas nalgumas sacristias eclesiástico-televisivas, em dois ou três corredores de faculdade produtoras de candidatos a mandarins, em certos telefones bancários e noutros tantos salões herdeiros de lojas de antanho. Aliás, entre nós, quase todos podem encontrar-se em conselhos gerais de algumas fundações, em meia dúzia de conselhos fiscais e em certos altos lugares que gravitam em torno do sector público administrativo.

Outrora chamaram-lhe barões, os tais devoristas que substituiram os frades, por ocasião das privatizações de 1834-1836, e que assim nos foram escouceando, como nos ensinou Almeida Garrett. A base da tal classe bancoburocrática, conforme as palavras de Antero de Quental, a mesma que nos foi atrofiando e que, com o salazarismo, se deixou de anticlericalismo, tratando de pactuar com os frequentadores da sacristia dos regressados frades.

Concluindo, diremos que se o jurista sistémico, marcado por positivismos, exegéticos ou conseituais, procura, fundamentalmente, as leis formais, o ius positum in civitate, já o repúblico, nome que deveríamos dar ao cientista político, pretende o praeter legem, ao tentar descobrir os tipos funcionais de governação, visando saber como se manda e o até onde pode mandar-se, detectando, não apenas a legitimidade do título, mas também a legitimidade do exercício, isto é, a dinâmica da política, procurando sempre referir os factos aos valores, mas sem deixar de considerar que as ideias podem estar por dentro das coisas.

Só a partir daí é que se passa para a procura do sistema político, onde, para além da determinação das instituições constitucionais, interessa pesquisar os grupos que intervêm no processo político, isto é, as forças políticas, as forças económicas e as forças sociais, bem como as ideologias e o próprio enquadramento externo dessa unidade política.

Interessa-nos mais determinar o status in statu, o establishment, como dizia Almeida Garrett, ou, para utilizarmos as clássicas palavras de Jean Bodin, importa mais a forme de gouverner que l'estat d'une république. Porque, dentro de um mesmo estat d’une république (v.g., monarquia, aristocracia ou forma popular), pode haver várias formes de gouverner (v.g. a monarquia pode ser tirânica, senhorial ou justa; a aristocracia pode ter apoio popular; a forma popular tanto pode ter um governo efectivamente popular, como governos aristocráticos ou reais).

Ora, um professor universitário é um funcionário da comunidade, um servus ministerialis, um escravo da função que lhe foi atribuída, mas que ele deve professar, quando, para tanto, sente uma íntima vocação.  Não lhe cabe apenas dar aulas e produzir trabalhos de investigação, nem pode, muito endogamicamente, reduzir-se ao claustro das escolas onde exerce a actividade. Pelo contrário, deve procurar contribuir para que a comunidade, de que é funcionário, possa pensar-se a si mesma, tentando que a universidade se aproxime da vida pública. Mas não pode esperar que o poder instalado seja influenciado pelas suas individualíssimas reflexões, nem ter a tentação de se transformar em institucionalizado opinion maker, sempre dependente da contabilidade equilibrista da mistura da esquerda com a direita, com que os patrões da comunicação social fabricam aquela polarização que lhes convém, para continuarem a controlar o centro, dando uma no cravo e outra na ferradura.

Na universidade não se trabalha para o curto prazo, onde funciona o realismo neomaquiavélico, sempre à procura do mediático e do imediato, sempre com a angústia da finitude e sem preocupação com o eterno. Neste sentido, qualquer universitário deve assumir a coragem de ter que estar em minoria, para poder ascender ao estádio da ciência, do conhecimento, o tal nível epistémico que a mera opinião da conjuntura, mas sem a negar, como estímulo.

A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Se trabalha nas coisas perenes, tem, contudo, que reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço onde se movimenta, porque as essências apenas se realizam através da existência.

Aliás, os mesquinhos detractores dos professores universitários esquecem, quase sempre, este investimento no saber pelo saber, esta consultadoria pública que não cobra honorários nem se integra em gabinetes de projectos subsidiados por fundos públicos, nacionais ou comunitários, onde muitos mercenários se escondem.

Mas quem tem como profissão, e vocação, o pensar a política, só pode procurar aproximar-se de uma qualquer dimensão científica se tentar viver a verdade, dizendo o que, na verdade, pensa. Porque a ciência, enquanto esforço racional que visa fazer ascender a opinião ao conhecimento, não tem que excluir necessariamente o compromisso da opinião, essa força vital nascida de uma concepção do mundo e da vida. Antes pelo contrário!

A autêntica ciência política, enquanto real ciência da política, pode e deve permitir que pessoas livres, com diversas e contraditórias opiniões, assentes nos mais variados subsolos filosóficos, comuniquem entre si, através dos lugares comuns do conhecimento. Mas só há diálogo quando se procuram tais placas giratórias da dialéctica que, tendo como fundações os princípios gerais do pensamento, permitem que as ideias e os valores fecundem criativamente as várias perspectivas das inevitáveis posições parcelares que cada um possui.

A principal objectividade a que podemos aceder, quando tratamos de coisas políticas, é, pois, a de assumirmos, sem disfarce, as limitações de perspectiva das concepções do mundo e da vida dos nossos tribalismos político-culturais que, quando são enraizados numa história pessoal de convicções, geram sempre as limitadoras algemas de uma certa genealogia de subsolos filosóficos e os inevitáveis compromissos das velhas lutas e dos profundos companheirismos que lhes dão identidade.

Logo, os professores que querem ser mesmo professores e não assessores do poder, em nome de um pretenso governo de sábios ou de uma gerontocracia de notáveis frustrados, não podem deixar de ser modelos de contrapoder, de espírito crítico, de homens livres, livres da finança, dos esquemas institucionais de subsídios, da tentação da imagem e da própria partidocracia.

Toda a dissolução das tais coisas que, em comum, se amam, como a pátria, a liberdade e a democracia, dessas ideias pelas quais vale a pena morrer, contribui para que a coisa pública se depublicize e se corrompa. E quando falha a res publica, tanto se quebra a communio como se rompe o consensus juris. Isto é, não há democracia se não se consolidar uma comunidade que gere comunhão, e não se aparelhar um Estado de Direito norteado pelo valor da justiça, entendida como aquela dinâmica igualdade de oportunidades que promove a meritocracia de tratar desigualmente o desigual, através de uma concorrencial competição pelo mérito que não ceda aos atavismos do privilégio e da isenção.

As alturas do poder criam um jardim das delícias democráticas onde a demagogia dos discursos de quem, por dominar o poder pensa que conquistou a palavra, faz esquecer que a burocracia do aparelho de poder pode controlar disciplinadamente o poder espiritual.

Com efeito, também entre nós se gerou a intelligentzia, essa casta de intelectuels da republique des lettres, essa espécie de ordem monástica dos nouveaux clercs, desses que se transformam numa seita e procuram monopolizar a cultura, quando não lhe atribuem até um Ministério com esse nome, e que dotada do complexo de superioridade dos vanguardistas, se assume como uma colectividade de ideologia, não económica ou profissional.

Há sempre o risco de surgir uma nova classe dos pretensos proprietários do capital cultural, desse poder intelectual, hábil na renda de bilros ideológica, onde há mais reprodutores, vulgarizadores e distribuidores de símbolos, do que criadores. Porque se despreza o conceito etimológico de inteligência, o estado de espírito daquele que sabe intus  mais legere, isto é, ler por dentro, penetrar dentro das próprias coisas, captando, nessa intimidade, a essência das mesmas, através de um saber-compreender, olhando que sempre foi além do saber-fazer desses doentios consumidores do ópio dos intelectuais, porque procura olhar o mesmo mundo do ponto de vista do outro.

Importa, pois, ultrapassar a instrução e a hiper-informação dos que não sabem navegar no oceano do conhecimento e retomar a senda da verdadeira educação, aquela que vem de educere, extrair, tirar de dentro, e por dentro, das coisas, onde as coisas realmente são, a necessidade de crescermos para cima e para dentro, conforme as perspectivas do  livre e solidário desenvolvimento humano.

Julgamos que importa tratar do passado como passado presente, para que possamos continuar a ter saudades de futuro, sem as ilusões vanguardistas e esoteristas do futuro presente, mas com o ensimesmamento daquele que ousa especular, ao procurar conhecer-se a si mesmo, colectivamente, olhando no espelho (speculum) da sua mente colectiva e procurando assim espiar ou esquadrinhar (speculari), nesse conhecer as causas e os efeitos, mas através daquela via kantiana de um conhecimento cujo objecto não pode ser experimentado num laboratório, mas apenas pela imaginação da sociologia histórica.

Só assim podemos reaver a esperança, enquanto tendência para um bem futuro e possível, embora incerto, para continuarmos a seguir São Tomás de Aquino, para o desejo desse bem com confiança, de acordo com os ensinamentos de São Paulo, que, à spes, deu o símbolo da âncora, dado que esta permite, a quem ousa navegar, penetrar na eternidade da terra firme.