BREVES NOTAS
SOBRE A REGIONALIZAÇÃO
Intervenção na Jornadas de Gestão e Administração Pública do ISCSP, em 1990
Parafraseando Almada Negreiros, podemos dizer que, sobre a regionalização, já estão escritas todas as palavras, apesar de ainda não se ter instituído a regionalização administrativa do Continente, embora este modelo seja um dos imperativos do texto constitucional desde a versão primitiva, de 1976.
Importa, em primeiro lugar, assinalar que Portugal já é um Estado Regional, embora unitário, dada a experiência das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Acontece apenas que a instituição das regiões autónomas insulares não nasceu de cima para baixo, ou seja , da letra da lei constitucional para a realidade. Bem pelo contrário: as autonomias insulares foram conquistas sociológicas e políticas pré-constitucionais, enraizadamente estabelecidas pela história e pela vontade cultural e política das comunidades insulares portuguesas.
Não pode, portanto, confundir-se a regionalização administrativa do Continente com a regionalização política dos Açores e da Madeira. Do mesmo modo, não pode traduzir-se em calão tecnocrático uma qualquer regionalização estranha e estrangeira, muito principalmente a dos Grandes Estados da Europa, e tentar utilizar-se tal pronto-a-vestir de organizações estaduais multinacionais, para este rectângulo que vai do Minho ao Algarve e que tem, em termos estaduais, as fronteiras políticas mais antigas da Europa e uma inédita identificação entre a Nação cultural e a Nação política.
Com efeito, a palavra "região" constitui uma das mais equívocas expressões do vocabulário juridico-político. E nesta equivocidade, talvez esteja a causa da aparente unanimidade vocabular de apoio à regionalização que expressam todas as nossas forças partidárias portuguesas representadas no parlamento. Resta saber até que ponto essa unanimidade aparente não traduz uma hipocrisia latente.
A regionalização, mais do que uma simples questão técnica da regional science e do desenvolvimentismo, é uma questão de cultura política. Mas não é por isso que a regionalização tem de transformar-se numa dessas palavras mágicas que vai resolver alguns dos nossos impasses estruturais, muito principalmente o da chamada reforma administrativa que agora passou a ser baptizada como modernização administrativa.
Na essência da questão regional está o problema da reorganização do Estado a que chegámos. Deste Estado Moderno que, agora, é tão arcaico que até necessita de modernização. Deste Estado que quis ser de bem-estar e que agora é de mal-estar. Deste Estado que, conforme as palavras de Daniel Bell é, ao mesmo tempo, pequeno demais e grande demais.
E porque é pequeno demais tem de procurar integrar-se em espaços supra-estatais, nomeadamente para responder aos desafios da internacionalização da economia e da própria troca de informação. Do mesmo modo, porque é grande demais tem de estabelecer limites à natural tendência que tem o respectivo aparelho para a concentração e para a absolutização do poder.
A questão da regionalização, neste nosso tempo de aldeia global da comunicação, é, pois, uma questão pós-moderna, no sentido de traduzir a procura de um modelo de Estado diferente do dito Estado Moderno, do tal Estado Soberano e Independente, nascido com o barroco e o absolutismo e consolidado depois das Revoluções demo-liberais.
O Estado a que chegámos é, com efeito, um gigante com pouco esqueleto e muita adiposidade muscular que, algumas vezes, sofre do raquitismo típico das crises de crescimento. Trata-se, sobretudo, de um Estado que politicamente se dessangrou, já que a institucionalização do poder se tem vindo a desligar das ideias que o deviam conformar.
A problemática da regionalização em Portugal ainda continua no plano daquelas boas intenções de que o inferno está cheio; porque só pode regionalizar-se o Estado-que-está desde que se tenha uma ideia do Estado-que-se-deseja. Tecnocratizar uma questão que é essencialmente política, se não é pôr o carro à frente dos bois, é, pelo menos, pensar que uma qualquer máquina moral anda sem que haja alguém que saiba pilotar o futuro.
Urge, portanto, radicar a questão da regionalização naquilo que os portugueses foram, são e podem vir a ser. E os portugueses foram e são municipalistas. Foram-no quando começaram a construir o Estado português à imagem e semelhança do concelho, através de um consensualismo quase federativista, que Jaime Cortesão qualificou como os factores democráticos da formação de Portugal.
Foi, aliás, esse antiquíssimo municipalismo, assente na liberdade da terra dos concelhos rurais e na liberdade de comércio dos concelhos burgueses, que levou ao estabelecimento das nossas Cortes Gerais que, logo em 1385, deram corpo a um dos primeiros Estados pós-feudais da Europa e que, cerca de três séculos depois, permitiram o florescimento das teorias da soberania popular que restauraram a liberdade nacional em 1640.
Essas profundas raízes democráticas se, em certos períodos da nossa história, transformaram-se, contudo, em brasas adormecidas, vindo a ser recobertas pelas cinzas do absolutismo, do concentracionarismo ou do autoritarismo. Mas logo que os ventos da liberdade tratam de soprar as cinzas, eis que as brasas se transformam em fogueira crepitosa. Ainda recentemente isso aconteceu com a revolução municipalista posterior a 1974. Com efeito, face às tentações concentracionárias do Estado revolucionário e pós-revolucionário, ergueu-se o contra-poder autárquico que, bem enraizado naquilo que o Professor Adriano Moreira chama a democracia da nossa sociedade civil, tem podido transformar a paisagem social e política do Portugal contemporâneo.
A institucionalização da regionalização administrativa do Continente está dependente da existência de uma consciência regionalizante em Portugal. Depende menos das leis e dos discursos partidocráticos do que da autenticidade de um efectivo movimento da opinião pública.
Neste sentido, sou dos que acreditam na utopia portuguesa de uma regionalização assente na efectiva federação dos municípios portugueses. De uma regionalização que seja mais um dos saudáveis instrumentos da divisão dos poderes do Estado de Direito Democrático e não uma contrafacção da regionalização, volvida em instrumento do concentracionarismo.
Traduzirmos em calão a regionalização, mesmo que seja de forma eurocrática, é esquecermos que o nosso modelo de Estado Nação é dos poucos small is beautiful desta Europa onde ainda se chocam os herdeiros de Impérios que foram prisões de nações.
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.