SOBRE O SALAZARISMO E A TOLERÂNCIA
Artigo publicado em 1 de Maio de 1989
As nuvens cinzentas do tempo meteorológico, que têm toldado a nossa primavera, parecem ter acirrado particularmente o ambiente de memorialismo em que parece viver a política portuguesa. Pelo menos, entre 25 e 28 de Abril, as dezenas de testemunhos que vieram a lume sobre o salazarismo e o abrilismo produziram aqueles tiques restauracionistas, ainda há pouco, denunciados por Baudrillard :on sauve les meubles;on muséifie;on essaie de mettre au point une espèce de scène primitive correcte, bonne, à laquelle on puisse faire référence [...] il y a fossilisation des choses, profusions de monuments plus que d'événements".
Basta olharmos certas ruas de Lisboa, onde, gravitando sobre os papéis amarelos da pró-sindical da polícia, surgem cartazes vermelhos do 25 de Abril, apelos à libertação de Otelo e alguns "posters" a preto e branco com um Salazar dos "anos do fim". Basta ouvirmos atentamente as conversas do homem comum, nos transportes públicos ou nos restaurantes da pequena burguesia, onde, exaltadamanente, se clama, ora pela libertação de Otelo, ora pela glorificação de Salazar. Isto é, em pleno abrilismo, vermelho de cravos libertários, mas esquecido do cinzento do "terror" prequiano, pode florescer a memória de um avô distante, cujo cadáver já perdeu a respectiva cadaverosidade e se transformou em retrato de família que guardamos na galeria da história.
O salazarismo permanecente não passa , com efeito, desse respeito que, no fundo, todos queremos ter pelo nosso avozinho de outros tempos, esse "homem de génio e de génios" que usou a autoridade autoritária para manter certos valores que se opunham aos chamados "ventos da história".
É impossível dizer que esse avô, teimoso na sua coerência, não teve razão. Ele teve razão, mas teve-a fora do tempo. Com já há anos escrevi, "Salazar não é herdeiro do Marquês de Pombal, mas o Príncipe Perfeito, mais paternalista do que totalitarista. Não é o 'fuhrer' nem o 'duce', mas o presidento do ministério que faltou ao rei D. Carlos para fazer regressar a monarquia aos tempos de D. João III, promovendo uma nova Contra Reforma comandada por lentes de leis e com uma legião missionária de sargentos e bacharéis. Ele próprio confessou um dia a Manuel Múrias que 'gostaria de ser primeiro ministro de um rei absoluto'".
Salazar, com efeito, como todos os grandes professores, foi também "um avô de si mesmo", quando aplicou no governo as teorias que aprendeu e ensinou na universidade. A ele devemos a construção do nosso Estado Providência nos anos trinta, misturando as medidas de Napoleão III e Bismarck com algumas fórmulas do "New Deal" de Roosevelt.
Preferiu, contudo, manter-se sempre "orgulhosamente só", a nível do poder. Isto é, nunca deixou enredar-se pelas sereias do "demo" e da "demos", que o convidavam a submeter-se a qualquer tipo de sufrágio popular, coisa que deixou para os seus Presidentes da República e os seus deputados. Ele continuou "vigário de Deus" e "funcionário da comunidade", recebendo a "potestas" sem intermediários e relendo e praticando os catolicíssimos livros de ensinança de príncipes, de Frei Amador Arrais ao Padre Manuel Bernardes.
Mas se Salazar é esse nosso avozinho dos clássicos pré-iluministas, não há dúvida que o nosso actual Presidente Soares, se vai assumindo como o "bonus pater familias" da democracia vigente. A entrevista que concedeu à RTP na noite do passado 25 de Abril constitui um monumento de exercicio de tolerância, segundo os esquemas ideológicos de Karl Popper.
Eu que não sou socialista nem nunca fui comunista, quero agradecer, a esse ex-comunista e teimoso socialista, aquela suprema lição de tolerância que nos transmitiu nesse dia de todos os fantasmas absolutistas. Parafraseando o mesmo Popper, podemos também dizer que o que deve orgulhar o Portugal deste soarismo não é a unicidade de ideias, mas a sua multiplicidade, o facto de podermos acreditar em muitas e diversas coisas, em muitas coisas verdadeiras e em muitas coisas falsas, em coisas boas e em coisas más. Em podermos comemorar Salazar, pedir a libertação de Otelo ou saudar os cravos de Abril, esquecendo ou acentuando os "terrorismos" de cada um deles.
Apenas tenho pena que o tio mais novo da nossa democracia, o Senhor Professor Cavaco Silva, pareça misturar o discurso do avô com o do pai e não tenha tempo para, em silêncio e solidão, reler os clássicos antifundamentalistas desta tolerância ocidental. Talvez , então, percebesse que ter a maioria não é ter a verdade, que há diferenças entre a razão da força e a força da razão, que o coração tem razões que a razão desconhece e que todo o maioritarismo tende para o concentracionarismo, caso não reconheça, como diz o mesmo Popper, que o problema fundamental da teoria do Estado é o problema da moderação do poder político. . . através de instituições pelas quais o poder é distribuído e controlado porque toda a política consiste na escolha do mal menor.
De facto, eu que também não sou nem nunca fui cavaquista, bem desejaria que o cavaquismo, que democraticamante nos tem de continuar a governar, se iluminasse pela virtude da tolerância e percebesse que a política não tem que ser a continuação da guerra civil por outros meios.
Este nosso Portugal, de uma democracia que queremos pós-salazarista e pós-abrilista, só será efectivamente democrático se existir uma efectiva democracia de cidadãos e uma radicada institucionalização do poder. Ora, apesar dos louváveis esforços desses actuais reconstrutores do Estado Jurídico, que são os nossos revisores constituintes, não há dúvida que continuamos dependentes de pessoas e, consequentemente, susceptíveis de tombar nesse vazio de poder chamado complexo de orfandade.
Será que este equilíbrio democrático permaneceria, se, por exemplo, desaparecessem subitamente as pessoas de Mário Soares e Cavaco Silva? Não estaremos, indirectamente, a fazer um convite aos magnicidas, tão habituais neste país dito de brandos costumes?
Todo este memorialismo sobre o avô Salazar, que o país real fez crescer à revelia do país político, não será fomentado por essa propensão esquizofrénica que vamos cultivando quando continuamos a fazer depender a institucionalização democrática de pessoas concretas?
Como podemos criticar um regime, como o do Estado Novo, que nasceu , cresceu e situacionizou-se à imagem e semelhança de uma pessoa, se, nesta democracia integrada na NATO e na Comunidade Europeia, todo o nosso "puzzle" de Estado depende de um pai prégador da tolerância e de um tio mais novo que prefere os "dossiers" da tecnocracia aos clássicos da filosofia democrática?
Copyright © 1998 por José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados.
Página revista em: 02-01-1999.