VII
O DIREITO E A MORAL
-O cabo das tormentas da ciência jurídica. Conflito entre o homem e o cidadão. As leis escritas no coração dos homens. Teses sobre a distinção entre a moral e o direito.
-A tese dualista de Thomasius (o direito tem a ver com a acção humana depois de exteriorizada; a moral com o plano da consciência; a moral é liberdade interna e o direito é liberdade externa). Separatismo ou dualismo. Ciência positiva e ciência negativa.
-O desenvolvimento de Kant (a ascensão ao sujeito; a moral como razão-prática do imperativo categórico, com o cumprimento pelo dever-ser; a legalidade tem a ver com a obrigação, a moralidade com a virtude). A liberdade interna e a liberdade externa. O imperativo categórico. Legalidade e moralidade. A obrigação e a virtude.
-Hegel. Moralidade subjectiva e moralidade objectiva.
-O individualismo de Vicente Ferrer. A esfera de acção jurídica.
-A teoria do mínimo ético de Bentham e Jellinek (as leis como preceitos morais práticos; admissão de uma graduação da moral e da possibilidade da lei fazer moral; o direito como o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver). Ideia e círculos concêntricos. As leis como preceitos morais práticos. A graduação da moral e a possibilidade da lei fazer moral. Ligação ao contratualismo. -A perspectiva de Dias Ferreira.
-A terceira via. O direito como ordem dotada de heteronomia e coercibilidade e a moral como auto–vinculação. Zonas de coincidência e de indiferença. Pufendorf. Leibniz. Radbruch. Kelsen. Truyol y Serra. Tipos de relações (o direito tutela muita coisa que não é moral; há actos juridicamente ilicitos que não o são do ponto de vista moral – zonas i-morais e zonas a-morais do direito).
- A posição escolástica. Passagem do imperativo à norma. A decisão moral última de Karl Popper. A comunhão entre o direito e a moral. Coing. O direito natural congénito ao homem. Moncada. A moral social ou positiva.
Coincidência, indiferença e conflito
Desenvolvamos agora as relações que podem estabelecer-se entre o direito e outra importante ordem normativa da sociedade: a moral[1]. Umas vezes, relações de coincidência; outras, de indiferença e, não raras vezes, de conflito.
À distinção chamava Jhering o cabo Horn ou cabo das tormentas da ciência jurídica, ao que Croce replicava, qualificando a mesma questão como o cabo dos naufrágios[2]. Mas não deixa de haver outros, como Vilfredo Pareto (1848-1923), que até consideram a distinção desnecessária por não se ter encontrado um meio de separar esses dois mundos: um acto passa do direito à moral e vice-versa, segundo a vontade e o capricho do legislador[3].
Conflito entre o homem e o cidadão
Estamos, assim, numa dessas zonas de fronteira onde faz sentir-se a tradicional antinomia entre o homem e o cidadão, entre os comandos da lei enquanto razão pública e os comandos da consciência pessoal, conforme as palavras de Rousseau. Porque, conforme Aristóteles, se a moral tem a ver com os actos do homem enquanto indivíduo, já o direito, tal como a política, tem a ver com os actos do homem enquanto membro da polis, enquanto participante do espaço público, daquele espaço que vai além da casa, do doméstico. Uma contradição que o mesmo Rousseau tentou superar pela construção do conceito de vontade geral, conceito quase equivalente àquilo que virá a ser a moralidade objectiva ou Sittlichkeit de Hegel.
As leis escritas no coração dos homens
Trata-se de uma zona de fronteira que é particularmente nebulosa quando, em vez de uma moral individual, se pesquisa aquilo que alguns qualificam como uma moral social ou uma moral de costumes. A procura daquelas leis que só podem ser escritas no coração dos homens, como pretendia Licurgo. Esse sonho de poder traduzir-se em normas o facto do coração ter razões que a razão desconhece.
Teses sobre a distinção entre a moral e o direito
Utilizando uma sistematização clássica, podemos enunciar as seguintes teses sobre a distinção entre o direito e a moral:
– carácter interno das normas morais e carácter externo das normas jurídicas;
– carácter positivo das normas morais e carácter negativo das normas jurídicas;
– indeterminação das normas morais e determinação das normas jurídicas;
– carácter unilateral das relações morais e carácter bilateral das relações jurídicas;
– diversos grau de protectividade e de obrigatoriedade dos dois tipos de normas e a existência de coacção como especificidade das normas jurídicas[4].
Uma das clássicas teorias sobre as relações entre a moral e o direito é a do iluminista Christian Thomasius (1655-1728), para quem o direito tem a ver com a acção humana depois de exteriorizada e a moral diz apenas respeito àquilo que se processa no plano da consciência[5]. Daí as características de bilateralidade e coercibilidade do direito contra a unilateralidade e a incoercibilidade da moral. Por outras palavras, o direito é positivo, bilateral e coercivo, enquanto a moral é negativa, incoercível e unilateral, ou interna.
Ciência positiva e ciência negativa
Neste sentido, enquanto o preceito da moral proclama o faz ao outro aquilo que querias que te fizessem a ti, já o preceito do direito se reduz ao não faças ao outro aquilo que não querias que te fizessem a ti. Isto é, se a moral se assume principalmente como uma ciência positiva, já o direito é uma espécie de ciência negativa.
Segundo as próprias palavras de Thomasius, a moralidade guia as acções internas dos néscios; os usos sociais, as externas, a fim de conquistar a benevolência dos demais; o direito, as externas, a fim de não perturbar a paz ou de restaurá-la, uma vez perturbada[6]. A moral tem a ver com o honestum; os usos sociais, com o decorum; e o direito, com o iustum. O que o homem faz por obrigação interna e seguindo as regras da moralidade e dos usos sociais, é guiado, em geral, pela virtude e por isso, neste caso, se chama ao homem virtuoso e não justo; o que o homem faz de acordo com as regras do direito ou por obrigação externa, é guiado pela justiça, e por isso se chama, por razões destas acções, justo.
Esta perspectiva dualista ainda se mantém, por exemplo, num Léon Duguit que ainda considera que a regra do direito se não impõe ao homem interior; é a regra dos seus actos exteriores e não dos seus pensamentos e dos seus desejos, o que, pelo contrário, deve ser toda a regra de moral[7].
Mas, como assinala Radbruch, a conduta exterior só interessa à moral na medida em que exprime uma conduta interior; a conduta interior só interessa ao direito na medida em que anuncia ou deixa esperar uma conduta exterior. E tanto a conduta exterior é susceptível de ser objecto de valorações morais, como a interior de ser objecto de valorações jurídicas[8].
Kant parte desta perspectiva separatista ou dualista: a legislação ética (ainda que os deveres possam ser exteriores) é aquela que não pode ser externa. Contudo, em vez de perspectivar a diferença segundo o objecto, segundo a obrigação coactiva, à maneira de Thomasius, isto é, pelo conteúdo da obrigação ou pela forma de obrigar, ascende ao sujeito, referindo ambas as categorias à liberdade, deste modo, reconhecendo a conexão interna entre a moral e o direito.
A liberdade interna e a liberdade externa
Considera que a moral diz respeito à liberdade interna (o sujeito não se submete a outra norma senão àquela que a si mesmo ditou) e o direito à liberdade externa (a liberdade do sujeito relativamente a outros sujeitos). A liberdade regula a liberdade interior do homem sob a sanção da consciência; o direito apenas regula a liberdade externa.
O imperativo categórico
A lei moral ditada pela razão prática é o imperativo categórico: uma acção é conforme à lei moral se for ditada motivos susceptíveis de se tornarem lei universal. Enquanto a moral se ordena em torno do móbil da acção, já o direito se desinteressa das razões que fazem agir, impondo apenas uma certa atitude exterior – isto é, os actos ou as omissões susceptíveis de serem constatados por outrem.
Legalidade e moralidade
Assim, distingue a legalidade (concordância do acto externo com a lei sem ter em conta o seu móbil), da moralidade ou Sittlichkeit (cumprimento do acto por dever-ser). Nestes termos, proclama que o direito ocupa-se da legislação prática externa de uma pessoa a respeito de outra enquanto os seus actos possam, como factos, exercer influência ( directa ou indirecta) de uns sobre os outros.
A obrigação e a virtude
Também Hegel vai acentuar a dependência do direito e da moral relativamente a uma terceira categoria que as duas hierarquizaria, o ethos, lutando contra o dualismo kantiano.
E ao fazer passar a liberdade do estádio da Moralität, ou moralidade subjectiva, para o de Sittlichkeit, ou moralidade objectiva, acaba por consumar a união entre o direito e a moral, como adiante desenvolveremos.
O individualismo de Ferrer
Este separatismo vai manter-se no nosso Vicente Ferrer Neto Paiva (1798-1886): à moral pertence o domínio da interioridade e da intenção das acções humanas, enquanto o direito, porque visa regulamentar as relações puramente externas entre os homens, tem por objecto apenas garantir as condições indispensáveis para estes, em sociedade, poderem realizar os seus fins racionais, usando da sua liberdade.
A esfera de acção jurídica
Considera, assim, que o direito é o complexo de condições internas e externas, dependentes da liberdade humana, e necessárias para a realização do destino racional, individual e social do homem e da humanidade[10].
Ao direito cabe, pois, delimitar e garantir a esfera de acção jurídica de cada homem, dentro da qual cada um é livre de desenvolver como quiser a sua actividade.
Fervoroso individualista, salienta que é preciso dar o máximo de extensão a esta esfera, que apenas pode limitar-se pela conciliação com esferas idênticas de outros: omite todas as acções exteriores, pelas quais se possa ofender a esfera da justa actividade dos outros[11].
Individualismo
Assim, observa que o direito deve subministrar ao homem as condições necessárias para que este consiga o seu fim individual e garantir para isso a sua livre actividade; porém, importa que a liberdade dum seja limitada pela liberdade dos outros; e para que a esfera de liberdade de cada um seja a mais larga que é possível, é mister que todos os homens trabalhem não só pelo seu desenvolvimento individual, senão também pelo da vida social[12].
Outra é a teoria do mínimo ético, instituída por Jeremy Bentham (1748-1832) e desenvolvida por Georg Jellinek (1851-1911), o autor da expressão, para quem o direito é o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Isto é, que o direito e a moral têm o mesmo fundamento, porque tudo o que é direito é moral, embora o círculo da moral seja maior.
Círculos concêntricos
Esta ideia de círculos concêntricos proveniente de Bentham, que restringe o direito ao círculo àquele círculos onde se aplicam penas materiais, salientando que as mesmas só devem existir para os casos em que o bem resultante da aplicação das mesmas for maior que o mal que as mesmas provocam. Porque o mal produzido pelas penas é uma despesa que o Estado faz, tendo em vista um lucro, o desaparecimento dos crimes.
Numa perspectiva contrária, Fichte refere que as normas jurídicas e as normas morais são contraditórias, salientando que as normas morais exigem, categoricamente, o cumprimento dos deveres, enquanto as normas jurídicas permitem, mas não impõem, que se cumpra o próprio dever, acrescentando que se as leis morais proíbem o exercício de um direito, ele não deixará, por isso, de ser direito.
As leis como preceitos morais práticos
Na base do utilitarismo está aquela concepção que pensa atribuir ao legislador o poder de dominar a moral. Como referia Destutt de Tracy, um impiedoso crítico do conceito de virtude de Montesquieu, o legislador quer possuir todas as partes da moral, seguindo uma ordem metódica, através de deduções rigorosas, editando preceitos morais práticos, salientando que os mais poderosos de todos os meios morais e ao pé dos quais todos os outros são quase nulos, são as leis repressivas e a sua perfeita e inteira execução[13].
A graduação da moral e a possibilidade da lei fazer moral
Os autores desta cepa admitem assim uma graduação da moral, só possível numa moral hedonisticamente entendida. A tese está intimamente ligada ao contratualismo utilitarista, do modelo benthamiano (the greatest happiness to the greatest number is the foundation of morals and legislation), à ideia de que é possível a realização do máximo de utilidade com o mínimo de restrições pessoais, numa perspectiva que reduz o direito a uma simples moral do útil colectivo.
Ligação ao contratualismo
Em todas estas famílias está a redução do contrato social à mera composição de um conflito de interesses, do bellum omnium contra omnes, considerando-se que os indivíduos renunciam a uma parte das suas liberdades naturais para garantirem o mínimo de convivência social, dado que o homem não é naturalmente um animal social, mas um animal a-social, individualista, um lobo do homem.
Portanto, a sociedade não é uma coisa natural, mas antes algo de artificial, visando o finalismo de poderem gozar-se certas utilidades[14].
Dias Ferreira
Esta tese, no plano jurídico, foi vulgarizada em Portugal por José Dias Ferreira (1837-1907) em Noções Fundamentais de Filosofia do Direito, de 1864, onde proclama que há uma certa porção de bem cuja realização, como indispensável à realização da vida humana, não pode ficar dependente dos caprichos ou da vontade individual de cada homem. A conservação da vida social está de tal modo dependente da realização objectiva desta porção de bem, que não pode satisfazer-se nesta parte só com a garantia das boas intenções: tão impreterível é a necessidade da realização desta porção de bem.
Acontece apenas que, como diz Weil, pode haver oposição moral a uma moral que se tornou imoral, porque qualquer moral está submetida por uma referência a uma moral mais, e não menos moral do que ela[15].
A terceira teoria, neste domínio, considera que o direito é sempre heteronomia, porque admite a coercibilidade, ao passo que a moral é pela auto-vinculação de cada um aos ditames da sua consciência. Assim, um dever moral que passe a constituir um dever jurídico deixa de ser moral.
Nestes termos, considera-se que enquanto a regra moral é condicionada pela adesão de um indivíduo a certo ideal ou a certa religião – porque depende sempre de uma decisão pessoal –, já a regra jurídica é algo com que deparamos pelo facto de sermos membros de uma determinada comunidade que até podemos não ter escolhido – v. g. ninguém escolhe ser português, mas nem por isso deixa de ficar obrigado ao serviço militar obrigatório.
Logo, se há uma zona do direito que é coincidente com a moral – no direito privado, há normas que são apenas ditadas pela honestidade e, no direito penal, a maior parte dos delitos também são actos imorais-, há também direito que pode ser indiferente face à moral (a-moral) – as normas técnicas de actuação, como as que estabelecem regras sobre a prioridade do trânsito –, bem como, eventualmente, um direito conflituante com a moral (i-moral) – caso das leis sobre a criminalização do aborto[16].
Pufendorf
Esta tese, defendida, entre outros, por Miguel Reale, remonta a Samuel Pufendorf que considera o constrangimento social como a característica que separa o direito da moral, reagindo, assim, contra Hugo Grócio, para quem o direito se fundamentava na moral.
Leibniz
Também Leibniz advoga a ligação entre o direito e a moral bem como o carácter omnicompreensivo da justiça, admitindo a existência de vários graus do bem: num primeiro grau, equivalente ao honeste vivere, temos aquilo que ele considera como a justiça universal, em relação com Deus e correspondente à piedade, abarcando todas as virtudes e tendo por fim a salvação.
Num segundo grau, correspondente ao suum cuique tribuere, surge a justiça distributiva, em relação com a humanidade, correspondente à equitas e identificando-se com a caridade.
Num terceiro grau, correspondente ao neminem laedere, temos o direito em sentido estrito, a relação com a sociedade política.
Deus |
Piedade |
honeste vivere |
Humanidade |
Caridade |
suum cuique tribuere |
Sociedade política |
Direito |
neminem laedere |
Considera, assim, que a justiça inclui a caridade e a sabedoria, tendo o direito e a moral a sua origem num Deus que é acessível a todos os homens pela razão natural, pelo que os seus princípios devem inspirar o direito voluntário ou humano.
Radbruch
Neste século, Gustav Radbruch vem acrescentar que a moral tem por objecto o homem individual (a pessoa na sua dimensão individual), enquanto o direito tem por objecto a comunidade (e, logo, a pessoa na sua dimensão social), concluindo que o direito é o preceito heterónomo emanado de uma autoridade.
Kelsen
Já para Kelsen é na coercitividade que está a distinção entre o direito e a moral: uma distinção entre o direito e a moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas na forma como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. Assim, enquanto o direito é uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta aposta um acto de coerção socialmente organizado, já a moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física[17].
Por seu lado, Giorgio Del Vechio, numa linha neo-kantiana, considera que o juízo moral vem do interior para o exterior, ao passo que a valoração jurídica vai do exterior para o interior.
Cossio
Para Carlos Cossio, se o direito é conduta humana em interferência intersubjectiva, na interferência de vários sujeitos entre si, já a moral dá-se na interferência entre várias acções possíveis do mesmo sujeito, das quais uma só é lícita e as outras, ilícitas.
Truyol y Serra
Antonio Truyol y Serra, por seu lado, refere que tanto a moral como o direito ordenam e por fim valorizam a conduta humana; mas a moral ordena-a e valoriza-a, essencialmente do ponto de vista do indivíduo, como tal, enquanto chamado a uma perfeição condizente com a sua natureza e o seu fim; o direito ordena e valoriza a mesma conduta, fundamentalmente do ponto de vista da sociedade como tal, enquanto destinada a assegurar aos indivíduos uma convivência pacífica e honesta. Assim, o valor jurídico caracteriza as acções como boas para a vida em comum, ao passo que o valor moral as caracteriza simplesmente como boas em si mesmas. O valor jurídico é sempre valor que uma acção tem para os outros, ou para a colectividade de todos os outros, ao passo que o valor moral é o valor da própria acção. A escolástica costuma dizer a este respeito que a moral era “ab agendi”; o direito “ad alterum”[18].
Com efeito, para a posição escolástica tradicional, segundo a qual o direito deriva da moral, a norma jurídica é apenas uma especificação da lei moral, dado não poder dividir-se a chamada vida prática em compartimentos estanques (moral, direito, economia e política), pois existe uma unidade moral do homem e, consequentemente, uma necessária unicidade de valoração.
Passagem do imperativo à norma
Neste sentido, podemos dizer que o ideal do direito consiste em passar-se do imperativo (determinista e heterónomo) à norma, quando a consciência moral do sujeito faz seu o imperativo, aceitando-o (tarefa que compete à liberdade, à autonomia ética da pessoa).
Assim, Jacques Leclercq considera que o objectivo da moral é determinar as regras pelas quais o homem atingirá o seu perfeito desenvolvimento ou o seu fim. O objectivo do direito é dirigir as actividades dos homens na vida social de maneira a que esta os ajude a atingir o fim que lhes assinala a moral. Por outras palavras, se o problema da moral se coloca essencialmente do ponto de vista do indivíduo, o do direito põe-se do ponto de vista da ordem social, sendo o respectivo problema o de como organizar a sociedade de maneira que os homens possam atingir a sua perfeição[19].
Também Louis Le Fur (1870-1943) assinala que a moral comporta a obrigação para o sujeito, é ele que se sente obrigado, é o único que está efectivamente em causa. Neste sentido, o ponto de vista da moral é sempre individual; mesmo na moral social, a questão põe-se é sempre: devo ou não agir assim? O direito, por seu lado, comporta a ideia de obrigação para outro que não o sujeito; é a um outro que se pretende aplicar o princípio da obrigação de acção ou de omissão; isto é, o direito comporta necessariamente dois sujeitos, um activo e o outro, passivo[20].
René Capitant, do mesmo modo, considera que o imperativo jurídico põe-se tendo em vista a realização de uma ordem social... (esta ordem social ideal chama-se o justo). O imperativo moral põe-se tendo em vista a realização de uma ordem individual no plano do sujeito ( esta ordem individual chama-se o bem)[21].
Segundo as palavras de João XXIII, eis que o direito visa o ideal de mandar segundo a razão e a virtude de obrigar segundo a ordem moral, onde está sempre presente o dever que cada um tem de dar voluntariamente o seu contributo para o bem de todos.
Idêntica posição pode ser detectada nalguns neo-hegelianos. Gentile refere, a este respeito, que na história, onde toda a vida espiritual se actualiza o direito coloca-se entre a moral de onde surge e a moral para onde se dirige; e cada momento da história é um momento de moralidade que resolve uma situação jurídica para fazer nascer das suas cinzas outra nova. Mais ainda: como diz Eric Weil, a moral faz nascer a concepção de um direito universal, de um direito natural. Um direito natural entendido como aquele direito ao qual o próprio filósofo se submete, mesmo que o direito positivo o não obrigue[22].
A decisão moral última
Até o individualismo metodológico de Karl Popper, bem enraizado num liberalismo ético que tem a ilusão de não ser católico nem adepto de Hegel, coloca a decisão moral última, isto é, aquela que deve vir dela mesma sem ser ulteriormente fundamentada, como a efectiva medida da verdade.
Já para a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, no caso do direito, estaríamos numa zona de fronteira entre a razão (logos) e a experiência moral (ethos), entre a substancialidade do ser e a subjectividade da consciência[23].
A comunhão entre o direito e a moral
Diremos que uma visão tridimensional do direito, como aquela a que aderimos, pelo menos na zona do direito como valor, tende a propor uma efectiva comunhão ou comunicação entre o direito e a moral.
Com efeito, os fundamentos, ou o sentido, do direito vivem numa zona transcendente que respira de um ambiente moral. Acresce que uma perspectiva não maquiavélica, ao impor uma moralização da política para a realização do Estado de Direito, tanto considera que o Direito é um dos limites do Poder, como impõe que não possa abusar-se do direito.
Como assinalava Del Vechio, por ocasião do seu doutoramento honoris causa em Coimbra, o direito, embora distinto da moral, tem, com ela, um indissolúvel nexo e fundamental unidade[24]
Castanheira Neves salienta que o direito não é a moral, mas é uma ordem moral[25]. Identicamente, Eric Weil assinala que o direito existe para que os homens possam agir segundo a moral, mas não para se ocupar da consciência moral dos indivíduos. Saliente-se que a vontade moral no indivíduo é a acção do indivíduo racional sobre ele próprio enquanto condicionado[26]. E isto porque o indivíduo moral é aquele que procura estar de acordo consigo mesmo, ainda que esteja em desacordo com todos os outros, até porque a moral é a acção do indivíduo sobre si mesmo.
Na verdade, se ninguém comete um crime apenas por pensamentos, exigindo-se tanto pré-meditação (culpa ou dolo) como acção (palavras e obras), todos, no entanto, podemos pecar por pensamentos, palavras e obras[27].
Coing: uma direito natural congénito ao homem
Segundo as ideias de Helmut Coing, diremos que à ciência do direito cabe não só interpretar o direito positivo – através de um método típico das ciências causais – como também determinar em cada norma aquilo que é supra-temporal e eterno. Nestes termos, o direito tem de utilizar também um método filosófico já que não deixa de ser um problema de índole dogmática.
Porque há certos fins ou certos conteúdos de índole ética sem os quais o direito não pode ser pensado. Esses ingredientes éticos que habitam na ideia de direito e nos conduzem inevitavelmente aos grandes problemas contemporâneos da ordem, da paz social, da segurança, da justiça, da dignidade do homem e da liberdade.
Pode assim concluir-se que o sentido do direito (Rechtsgefuhl) gera a consciência jurídica (Rechtsbewusstein) e que só através da análise desta se atinge tanto à ideia do justo como aos valores morais que a coexistência humana exige (fidelidade à palavra, respeito da pessoa). Valores estes que constituem um direito natural congénito ao homem, o qual vai sendo descoberto, pouco a pouco, pela civilização, impondo-se, deste modo, ao legislador.
Moncada: a moral social ou positiva
O nosso Cabral de Moncada proclama, neste contexto, que todo o direito positivo dum povo, vive, necessariamente, dentro dum clima ou ambiente de moral positiva desse mesmo povo, como um embrião dentro da matriz. Esta envolve-o por todos os lados, sustenta-o e alimenta-o até ele se tornar independente. Não há direito positivo algum que não assente num conjunto de crenças e concepções morais também positivas, tão temporais e históricas como ele[28]. Salienta, além disso, que tudo aquilo que no direito constitui o fundamento e a origem da sua obrigatoriedade ... só lhe é comunicado através da sua filiação na moral. O direito é uma espécie de cidadão naturalizado, cujas dignidade e prestígio só lhe podem vir justamente da pátria em que se naturalizou e que adoptou[29].
[1]Sobre a matéria Cabral De Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, II, pp. 134 ss. e Gustav Radbruch, Introducción a la Filosofía del Derecho, pp. 53 ss. Digamos, desde já, que, no rigor dos conceitos, o direito está para a ciência jurídica, assim como a moral está para a ética.
[2] Apud Battaglia, op. cit., II, p. 327.
[3] Apud Jacques Leclerc, Leçons de Droit Naturel, I. Le Fondement du Droit et de la Societé, Namur/ Lovaina, 1933, p. 46.
[4] Utilizamos a distinção de Campos Lima, O Estado e a Evolução do Direito, Lisboa, 1914, pp. 39-60.
[5] Cfr. Battaglia, op. cit., II, p. 330.
[6] Christian Thomasius, Fundamenta iuris naturae et gentium, I, cap. IV, 90, apud Hans Welzel, Introduccion a la Filosofia del Derecho. Derecho Natural y Justicia Material [1962], trad. cast. de Felipe González Vicén, Madrid, Aguilar, 1971, pp. 171-172.
[7]Léon Duguit, Le Droit Social, le Droit Individuel et la Transformation de l'État, 1911, p. 9.
[8] Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, I, p. 116.
[9] Cfr. Hans Welzel, Introduccion a la Filosofia del Derecho. Derecho Natural y Justicia Material [1962], trad. cast. de Felipe González Vicén, Madrid, Aguilar, 1971, p. 173-175. Segundo Kant, no prefácio à Doutrina do Direito, de 1797, a legislação que, de uma acção, faz um dever e que, ao mesmo tempo, dá este dever por motivo , é a legislação moral. Mas a que não faz entrar o motivo na lei, que, por conseguinte, permite outro motivo que não a ideia do próprio dever, é a legislação jurídica.
[10] Vicente Ferrer Neto Paiva, Elementos de Direito Natural ou de Filosofia do Direito [1844], 6ª ed., p. 16
[11] Idem, p. 24.
[12] Idem, p. 19
[13]Destutt De Tracy, Élémentes d'Idéologie, tomo IV, pp 456-459.
[14]Opondo-se a este utilitarismo, o António Luís de Seabra já dizia: não conhecemos na sociedade interesse superior aos interesses da moralidade. In Apostila à Censura do Sr.Alberto Morais de Carvalho sobre a Primeira Parte do Projecto do Código Civil, Coimbra, Imprensa da Universidade, I (1858), p. 53.
[15] Eric Weil, Philosophie Politique, p. 371
[16]A este respeito Francisco Suarez (De Legibus, livro I, cap. 92) salienta que um acto não mau em si se faz mau por justa proibição do superior... um acto que em si não é bom nem mau converte-se em bom quando uma lei manda justamente.
[17] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, trad. port., I vol, p. 120.
[18]Antonio Truyol Y Serra, Fundamentos del Derecho Natural, 1949, apud Pires De Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Volume I, 6ª ed. revista e ampliada, Coimbra, Coimbra Editora, 1965, p. 14. Daquele autor, ver também Lo Mutable y lo Immutable en la Moral y el Derecho segun Francisco Suarez, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXVII, 1951, pp. 228-251.
[19] Jacques Leclercq, Leçons de Droit Naturel, I. Le Fondement du Droit et de la Societé, Namur/ Lovaina, 1933, p. 47.
[20]Louis le Fur, Essai de Définition Synthétique du Droit, apud Jacques Leclercq, op. cit., p. 47.
[21]René Capitant, L’Illicitude, apud Jacques Leclercq, op. cit., p. 49.
[22] Eric Weil, Philosophie Politique, cit., p. 34
[23]Idem, I, p. 222
[24] In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXXIV(1958), p. 268.
[25] Castanheira Neves, Curso…, cit., p. 260
[26] Eric Weil, Philosophie Politique, cit., p. 28
[27]Sobre a matéria ver Louis Le Fur, Droit, Morale, Politique, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XV, 1938-1939, pp. 241-265; Alfred Verdross, A Sistemática Articulação do Direito e da Moral, in Boletim do Ministério da Justiça, nº23; bem como Institut Internationale De Philosophie Et De La Sociologie Juridique, Droit, Morale, Moeurs, Paris, Sirey, 1936.
[28] Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, II, p. 138, adopta aqui um conceito de moral positiva, de moral de costumes, próxima do conceito hegeliano de Sittlichkeit, daquilo que os homens apreendem ou julgam apreender no seu esforço de realização dos valores éticos. Uma moral de costumes bem diversa de uma ética de valores absolutos que seria apenas parte de uma axiologia filosófica.
[29]Idem, II, p. 139.