O NEOFEUDALISMO E A ÉTICA REPUBLICANA

 

Depois de ver, ler e ouvir, mui atenta e pouco reverencialmente, o subliminar discurso do Presidente Sampaio, emitido no passado 5 de Outubro, fiquei sem saber seleccionar o tema deste meu comentário quinzenal sobre aquilo que D. Pedro V chegou a qualificar como “canalhocracia”. Se apetecia dissertar sobre a “bushiminização” do mundo e sobre como a Europa assina de Cruz as patetices de uma “Realpolitik”, muito mais gostaria de ter ungidas ligações com o transcendente, para dar conteúdo ao vago conceito de ética republicana, tendo em vista um futuro casino, as próximas presidenciais, e intensos sabores a oriente, cortiça, velas de cera, marfim, diamantes ou peixe congelado.

 

Menos místico seria dar umas farpadas na continuidade do predatório regime dos “boys for the jobs”, agora assumido, sem qualquer tique de vergonha, pelo PP e pelo PSD; recordar a patética falta de memória de Francisco Pinto Balsemão nas suas relações com Kissinger e Camarate; ou glosar o nascente caso da Cofac, depois das muitas amostras, cheias de boas festas e de palminhas no programa do Big Herman dos famosos, sem elos mais fracos. Somos definitivamente um país de bananas, governado por homílias e coros de criancinhas instrumentalizadas pelos beneficiários dos Buíças, sempre em nome da tal confusa ética que roubou o nome república a uma comunidade que já era republicana há sete séculos.

 

Prefiro reconhecer a verdade: o Portugal que resta é, definitivamente, um regime de anarquia bem organizada por neofeudalismos, por falta de autenticidade e pelo apagamento deliberado de memórias. Por outras palavras, o zé povinho continua a ter que pagar impostos, enquanto os que partem e repartem o bolo roubado ao lombo dos que trabalham vão ralhando sem razão, não apresentam as contas dos respectivos partidos e ocultam os financiamentos que os podem comprometer com os “lóbis que não uivam”.

 

Se não temos protagonistas políticos que sejam homossexuais assumidos, como é o esfaqueado “maire” de Paris, ou como o foi o ministro Carlotinha Lobo d’Ávila, de há um século atrás, abundam muitos invertebrados, situados entre o batráquio que coaxa e o cefalópode que lança nuvens de tinta negra, os quais, em tempos de crise, tratam de acolher-se à sombra de grupos com imagem moral forte, a fim de garantirem formais certificados de bom comportamento cívico e excelente acesso à mesa porca do orçamento, mesmo que chamem polvo a quem os nomeia.

 

Assim, depois de meditar sobre o discurso do presidente, acabei por concluir que a montanha de Belém pariu mais um ratinho politicamente correcto, apesar dos frémitos ingentes que o anunciavam durão, contra as portas e as postas. Deste modo, lá temos que sebastianizar as futuras e eventuais declarações de Braga Gonçalves, bem como as potenciais investigações da Polícia Judiciária sobre as cooperativas fundadoras de muitas universitárias “Lusas Apenas” (sic). Especialmente, quando há o inevitável picante da lista dos respectivos professores coincidir com ilustres maçons, eméritos membros da comitiva nacional que assistiu à canonização do fundador do Opus Dei, e mui altíssimos dignitários da suprema ética da republiqueta, bem acolitados por catedráticos e aposentadíssimos ministros do Estado Novo, todos ocultando os honorários de venda do nome, para enganar ingénuos e papalvos.

 

Confesso que, por dever de ofício, nada sei daquilo que investigou a Drª Maria José Morgado e outros que, por calarem, poderão ser acusados de o consentirem. Também não tenho relações com os meandros da parecerística e da consultadoria, que leva ao silêncio conveniente de grande parte de figuras professorais da nossa praça.

 

Contudo, por dever profissional, sou capaz de teorizar a partir da prática e de dizer, com as letras todas, que muitos grupos pretensamente santificados, ou geradores da tal ética republicana, estão cheios de gentes que apenas deles se servem sem os servirem. Esses que vão acumulando tráfico de influências, com o nome de advocacia, docência ao fim da tarde, para uso no cartão de visitas, dirigência partidária à hora do almoço e consultadoria espiritual, paga minuto a minuto, mesmo sem qualquer prestação de serviços.

 

Se concordo com a necessidade de reforço de uma ética política sem adjectivações ideologicamente divisionistas, também gosto de salientar que o mal de Portugal está nos colectivismos morais dos grupos e seitas que, ao aceitarem no seu seio, meros vigaristas e fraldiqueiros, acabam por comprometer o todo e gerar estas águas turvas que transformarão os anunciados processamentos judiciais em águas de bacalhau, sem que o azeite venha ao de cima.

 

Todos sabem das universidades geradas pela aliança de devotíssimos papistas com aventalíssimos gestores de redes financeiras. Por isso, ninguém espera que o Dr. Ferro levante o seu discurso, na denúncia das Universidades públicas e privadas dominadas pelo PS, ou que actuais ministros denunciem a ligação de cargos autárquicos ao poder absoluto que correlegionários desempenharam em entidades do mesmo género caótico. E muitas outras confusões poderiam ser evitadas, se, à semelhança de outros países, houvesse mesmo uma universidade maçónica, como a Université Libre de Bruxelas, uma universidade São Escrivá, como a de Navarra, ou outras dos partidos A, B ou C, como a London School of Economics and Political Science, que foi fundada pelos fabianos e futuros trabalhistas, apesar de nela sempre terem ensinado conservadores, de acordo com a ética de uma monarquia efectivamente republicana.

 

Qualquer comissão de inquérito, não dependente da partidocracia, dos clérigos e de outras corporações, poderia elencar, de uma vez por todas, as causas da propositada confusão e até projectar uma série de amnistias, à semelhança das que se utilizaram para as redes bombistas e o terrorismo das FP25, ou dos perdões praticados para os partidos com contas irregulares, que são quase todos. De outra maneira, cereja a cereja, a árvore da inteligência pátria ficará sem fruta para se ornar e alguns ministros e outros activistas da oposição terão de ser demitidos, mesmo que não se saiba quando.

 

A tal necessidade de reforma do sistema político implica reconhecermos que ninguém hoje pode candidatar-se a um cargo político sem ter fortuna própria, capacidade de mobilização da fortuna de interesseiros outros, ou cedência às redes de influência, mesmo que, muito aereamente, estas possam meter cunhas no Gabão.

 

Se o Dr. Durão Barroso nos lesse a lista dos convidados que recusaram pastas ministeriais e nos contasse aquilo que sabe das relações dos respectivos membros do governo com escritórios de ministros do guterrismo, todos compreenderíamos os silêncios de Cavaco Silva ou António Guterrese a razão que leva o PS a não ser liderado por Jaime Gama ou Vítor Constâncio.