Defender a ideia de Europa no contexto de um processo de intervenção radical, nesta véspera do século XXI, implica reconhecer, na senda de Daniel Bell que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização.
Implica também assinalar que acabou certa era das ideologias da guerra fria quando se transformaram questões concretas em questões ideológicas, colorindo-as com uma tensão ética e uma linguagem emocional. Porque, aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, marcados tanto pelas tradições do humanismo laico como do humanismo cristão, estamos cansados das artificiais divisões entre a direita e a esquerda e dos consequentes combates entre reaccionários e progressistas ou entre liberais e socialistas, e talvez tenhamos de aceitar que só podemos superar as encruzilhadas da história se admitirmos o essencial da perspectiva da pluralidade de pertenças e da consequente disjuntion of realms, da existência de princípios axiais diferentes nos campos da economia, da política e dos valores culturais. Já Emmanuel Mounier, nos anos trinta e quarenta se dizia, ao mesmo tempo, radical nos objectivos económico-sociais, reformista nas metodologias políticas e conservador no tocante aos valores. Como recentemente, o citado Daniel Bell, admitiu uma aproximação ao socialismo nos domínios da economia, mas com uma profissão de fé liberal em política e uma atitude conservadora quanto ao valores culturais. Talvez seja esta pluralidade de pertenças, contrária aos reaccionários preconceitos de esquerda e de direita que nos leve de volta a certa memória liberdadeira e radical, em nome dos princípios, necessariamente reformista no tocante às atitudes políticas e defensora dos grandes princípios do regresso à política. Esse horizonte, onde necessariamente se insere a ideia de Europa que sufragamos.
O regresso à política, a retomada da res publica, a reinvenção da cidadania, são a única forma de superarmos as actuais doenças dos sistemas políticos, sitiados pela corrupção e pelo clientelismo. As causas que têm gerado as actuais vagas populistas, xenófobas e racistas que ameaçam a Europa. Sintomas que só podem ser removidos se à terapêutica acrescer a profiláctica de uma educação cívica, capaz de retomar uma perspectiva liberdadeira de pessoa, uma perspectiva comunitária de sociedade e uma visão do Estado como um Estado-Razão e um Estado de Justiça.
Tópicos:
1. A Europa connosco
3.O acquis de um pronto-a-vestir
15. O pragmatismo da Realpolitik salazarista
20.O complexo alves dos reis
26.Portugal na balança da Europa
34.A ideia de Europa de Monnet
67. 1992: Maastricht
70.Os efeitos do fim da guerra fria
95.O sim através do não
96.Retomar o sonho dos pais-fundadores
101.Pela res publica dos portugueses
102.Contra a Europa das duas velocidades
103.Um tempo de interregno
113. O fim do fim da história
114. O fim do fim do comunismo
129.Algumas propostas de reforma
136.Por uma política-antipolítica
152. Um novo modelo de Justiça
153. Um Estado de Liberdades
154. A Sociedade no Estado e o Estado com a Sociedade
155. Democracia
156. Repúdio do imperialismo
157. Europa dos povos e Europa dos cidadãos
158. Reinterpretar o princípio da subsidiariedade
159. Um humanismo activista
160. Um grande espaço de liberdade
163. Misturar a hegemonia dos mais fortes com o consentimento real dos menos fortes
1.A Europa connosco
Foi em 12 de Junho de 1985, nos claustros dos simbólicos Jerónimos, que os gestores do aparelho de poder português subscreveram o tratado de adesão às comunidades europeias - a CECA, a CEE e a CEEA que já então se assumiam como Comunidade Europeia -, algumas horas antes de idêntica atitude ser assumida, em Madrid, pelo Estado espanhol. Para alguns observadores de mais estreitas vistas, a atrelagem dos dois Estados ibéricos ao carro europeu não passava de mero prémio pela conquista da democracia por duas entidades que tinham tido das mais longas ditaduras do Ocidente no pós-guerra. Para outros, algo de mais: a abertura da Europa àquele pedaço de si mesma que se desencontrara do ritmo das grandes questões europeias nos anos trinta deste século, não faltando até quem proclamasse, com alguma justeza, que não éramos nós a aderir à Europa, mas, pelo contrário, a Europa a aderir a si mesma.
A adesão vai concretizar-se no dia 1 de Janeiro de 1986, depois de, uma década antes a havermos formalmente solicitado. Não tarda que os nossos governantes qualifiquem a Europa das Comunidades como a prioridade das prioridades e que a nossa classe política pós-revolucionária trate de invocar uma Europa connosco, transformada no elemento mítico de uma ideologia europeísta à portuguesa que nos prometia amanhãs que cantam, bacalhau a pataco, peixe à vista de costa e supremas produtividades por hectare.
3.O acquis de um pronto-a-vestir
Acontece que a nossa integração foi mesmo um típico contrato de adesão, com cláusulas préfixadas pelo acquis communautaire e com um pronto-a-vestir doutrinário. Um pega ou larga, inelástico, especialmente marcado pela recém subida à presidência da Comissão de Jacques Delors, para quem a máxima expectativa era podermos ser bons alunos. Assim, estávamos condenados a marchar correctamente segundo o conceito de desenvolvimento que outros pensaram para nós.
Tudo acontecia quando a Europa vivia a ambivalência da desintegração de um mundo bipolar e se difundia aquela inversão de valores marcada pelo primado da economia sobre a política, pelo que a nossa entrada se fez, sobretudo, pela porta da despensa e com uma redutora mentalidade de intendência, passando a imperar aqueles tecnocratas especialistas na mercearia macro-económica. Isto é, quase meio século depois, chegavam-nos os ventos do meter as ideologias na gaveta e a ilusão de que se abriam as portas da era dos organizadores.
Na altura, não havia discurso oficial que se prezasse que não invocasse a adesão às Comunidades Europeias como a nova Idade do Ouro da nossa história colectiva, a qual até serviria para encerrar o negregado ciclo do império. Certa leitura das teses do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, bem como algumas glosas às lamúrias do Velho do Restelo transformavam-se assim numa espécie de sucedâneo sebastianista, mas retoricamente anti-sebastianista, onde o mito da integração aparecia como a milagrosa panaceia que nos viria trazer a reforma e a modernização.
Poucos tinham consciência que a integração portuguesa num espaço político-económico de mais de trezentos milhões de pessoas, porque nos transformava numa gota de água no oceano, iria obrigar ao redimensionamento estrutural do Estado-aparelho de poder, bem como à viragem psicológica do próprio Estado-comunidade. Com efeito, estávamos condenados a estabelecer uma nova agilidade estadual e a viver nos quadros de uma sociedade aberta e de uma internacionalização da economia, pelo que se iam colocando novos desafios quanto aos processos de defesa da nossa independência nacional e de redefinição das nossas fronteiras. A nação portuguesa, sem a rectaguarda do Império, para poder sobreviver face ao novo ritmo da balança da Europa, tinha não apenas de reafirmar a coesão dos factores internos, como também de assumir, face a terceiros, a respectiva personalidade. Se, até então, os portugueses sempre haviam conseguido manter laços de solidariedade falando uns com os outros, dentro da mesma família nacional, bem como pelo recurso, em momentos de crise, ao isolacionismo e ao proteccionismo, eis que, por efeito dos ventos eurocráticos, passávamos a ser obrigados a afirmar a nossa personalidade perante os outros e a afirmá-la, como se diz em linguagem empresarial, de forma agressivamente concorrencial. Desaparecia, em definitivo, aquela visão quase paroquial da identificação nacional feita em nome da ameaça de um vizinho meio-irmão, esse jogo do Freund e do Feind que, apesar de provado pela história, já não constituía um futuro presente.
E aqui talvez importe recordar que o segredo da nossa secular resistência nacional, se assentou em factores internos, também se deveu à forma como conseguimos situar-nos internacionalmente. O ser com outros na comunidade internacional sempre potenciou o nosso eu; sempre soubemos gerir interdependências para garantirmos a independência nacional; por outras palavras, sempre soubemos submeter-nos para sobreviver, ao mesmo tempo que procurávamos lutar para continuar a viver. Com efeito, o jogo das alianças externas sempre potenciou a nossa vontade interna. A independência afonsina, por exemplo, afirmou-se tanto na luta contra o Islão, em aliança com os cruzados do norte da Europa, como também na resistência ao projecto de Imperium então assumido pelos reis de Leão e Castela, ao mesmo tempo que se procurava o reconhecimento internacional da Santa Sé. Isto é, Portugal surgiu no contexto de um espaço supra-estatal e não apenas como resultado de um diálogo bilateral. Também em posteriores crises de independência nacional recorremos a aliados da balança da Europa, com especial destaque para a Inglaterra, particularmente nos finais do século XIV, e para a França, no século XVII. Do mesmo modo, para utilizarmos as palavras do Infante D. João, citadas por Gomes Eanes de Zurara, sempre procurámos ganhar o d’além para não perdermos o d’aquém. Assim, conscientes do facto de estarmos contidos pelo muro de Castela, tratámos de obter, na conquista e na expansão para além do mar, a garantia da autonomia da rectaguarda. Assim, conquistámos Ceuta cerca de um século antes da consolidação do Estado espanhol e aquando das invasões francesas, até chegámos a mudar a capital para outro continente. Este velho instinto de sobrevivência levou também a que, depois do traumatismo da perda do Brasil e quando nos embrenhávamos internamente numa espiral decadentista, procurássemos a construção do derradeiro império português, a partir das quase abandonadas feitorias da costa africana. De tal maneira que, em menos de um século, o primeiro império ultramarino europeu passou a viver a aventura do último império colonial, através de um notável esforço de ocupação militar, de mobilização científica e de organização política.
A nova dimensão internacional do Estado português levou assim a que, a partir de 1986, o processo de defesa da nossa independência nacional tivesse de efectivar-se no quadro de dois espaços supranacionais, em grande parte coincidentes: o da Aliança Atlântica e o das Comunidades Europeias. A ilusão de um nacionalismo autárcico, temperalmente isolacionista e tendencialmente auto-suficiente, foi, deste modo, claramente substituída pela realidade da soberania autocondicionada de Portugal, a partir de então, integrado em dois ordenamentos supra-estaduais. Voltámos, de certa maneira, às nossas origens medievais, quando conquistámos a independência e construímos o político no seio da respublica christiana, jogando com a tensão entre dois pólos hegemónicos desse espaço: o imperium e o papado. A independência nacional passou assim a ter de afirmar-se num quadro multinacional através de uma adequada gestão das interdependências, pelo que a afirmação da nossa personalidade nacional teve de desdobrar-se nos vários diálogos intra-europeus, intra-ocidentais e face ao resto do mundo, muito especialmente face ao mundo que o português criou.
9.O hibridismo do Estado Novo e o europeísmo dos anos sessenta
Importa também reconhecer que a fase crepuscular do regime português derrubado em 1974 foi marcada por um hibridismo estratégico no plano da política internacional, onde era marcante a contradição entre a aposta ultramarinista e a condescendência europeísta. No mesmo ano de 1960, depois do Estado português subscrevia a Convenção de Estocolmo instituidora da EFTA, que participava na fundação da OCDE e em que aderia ao FMI e ao BIRD, promovia também o processo das comemorações henriquinas que, de certo modo, procuravam justificar miticamente a defesa do Império. No ano seguinte começava a guerra em Angola, ao mesmo tempo que o regime se abria ao investimento estrangeiro e redobrava a aposta na industrialização. Isto é, o crescente empenhamento militar nas campanhas de África foi paralelo ao desenvolvimento de uma aproximação económica à Europa, tanto da EFTA como da própria CEE, estabelecendo-se ritmos de agricultura de exportação (v.g. a produção de tomate) e de indústrias de nível europeu (v.g. o incremento dos têxteis, da construção naval, da metalurgia e do material eléctrico). A política económica do antigo regime, com efeito, sempre procurou uma espécie de resguardo europeísta, levando ao incremento de uma nova classe de gestores e quadros técnicos que vão destacar-se durante o consulado marcelista sob a designação de tecnocratas. Alguns vão ocupar importantes funções nas pastas económicas do novo governo pós-salazarista, com destaque para Rogério Martins, Xavier Pintado e João Salgueiro, ao mesmo tempo que nas eleições de 1969 emergia a chamada ala liberal da Assembleia Nacional, liderada pelo malogrado José Pedro Pinto Leite que, curiosamente, era o presidente da Câmara de Comércio Luso-Germânica.
A aposta ultramarinista, que teve o seu clímax no integracionismo político-económico do espaço português euro-africano, passou a ser preterida pela duplicidade tecnocrático-europeísta da chamada autonomia progressiva, ainda sem a coragem de ser federalista, que, no fundo, admitia o abandono a prazo. Os ultramarinistas, mais natistas que a própria NATO e mais ocidentalistas que os próprios Estados Unidos da América, cederam lugar à dúvida metódica de um regime que jogava num pé cá, um pé lá e que, de hesitação em hesitação, acabou por levar à descolonização, onde o mais rapidamente foi directamente proporcional à nova força. No entanto, Portugal europeu, que ainda continuava um país essencialmente agrícola, vai aderir aos vícios e às virtudes das sociedades de consumo e das sociedades em vias de industrialização o que, contudo, criou algumas condições para podermos dialogar com a maior parte dos parceiros europeus, maioritariamente dominados por sociedades industriais avançadas, estando algumas delas prestes a enfileirar nas sociedades pós-industriais, como os Estados Unidos, o Japão e a Suécia.
11. O ceeísmo pós-revolucionário
As contradições da nossa primeira aproximação europeísta da década de sessenta, continuaram na pós-revolução da Europa connosco. Emergiu, entretanto, uma espécie de de ceeísmo, marcada por um certo provincianismo caricaturalmente estrangeirado, para quem o ser europeu parecia equivaler à média geral dos valores da pequena Europa Continental. Foi assim que certo europeísmo à portuguesa dos anos sessenta não entendeu que o nosso lusotropicalismo era essencialmente ocidentalista, constituindo uma das últimas emanações do espírito de fronteira do chamado Euromundo que, não tendo sofrido o directo impacto do complexo de derrota do pós-guerra, ainda tinha a ilusão de poder aguentar os ventos da história (não nos esqueçamos que entre os quinze actuais Estados membros da CEE se encontram quase todas as potências coloniais europeias). Tal caricatura não reparou que a Europa do último quartel do século XX, depois de vencer a tentação neutralista, que a guerra fria podia ter acirrado, sofria, para além do desafio americano e da concorrência japonesa, um claro desafio mundial. Levando a que o processo de construção da unidade europeia, ultrapassada a fase inicial de garantia da paz, constituísse uma necessária legítima defesa de quem, tendo gerado um mundo à sua imagem e semelhança, tinha deixado de ser protagonista nos principais conflitos extra-europeus, a partir da crise do Suez de 1956.
Com efeito, o projecto europeu não teve para nós, portugueses a que chegámos, ou portugueses que restamos, a dimensão heróica do europeísmo da resistência, típico dos países participantes na Segunda Guerra Mundial, nem o mínimo de radicação popular. Todo ele parecia caber num qualquer relatório tecnocrático de um gabinete de estudos de um banco ou num memorando de um dos muitos gabinetes de planeamento dos anos setenta, aceitando aquelas bases teoréticas que tratam das pessoas como meros factores de produção e reduzem as pátrias a unidades estatísticas, ambas marcadas pela fungibilidade e pelo abstraccionismo geométrico. Este primitivo ceeísmo reduzia a Europa a uma das muitas formas possíveis de integração económica internacional, de um simples mercado comum com algum parentesco com uma zona de comércio livre, considerados como meros pontos de aplicação das teorias desenvolvimentistas que os teóricos do planeamento e da macro-economia glosavam com a higiene científica dos manuais de economia internacional. Aliás, os mesmos tópicos da integração económica tanto serviam para tratar da unidade económica nacional que ia Minho a Timor, como da integração europeia.
Era uma espécie de Europa de engenheiros sem sonho, tão higienicamente assexuada que o mesmo técnico de integração depressa poderia reconverter-se em mais um dos executores de um plano quinquenal de qualquer big brother, programado que estava para aceitar o inevitável fim das pátrias. O próprio salazarismo não teve pejo em subscrever o acto fundador da EFTA, em finais de 1959, e, durante sucessivos conselhos de ministros, o regime do Estado Novo chegou a pôr a hipótese de, em vez disso, pedir, desde logo, a própria adesão ao mercado comum, como era a posição do Ministro da Economia Ferreira Dias, apoiado por certas forças vivas, o qual, muito friamente, considerava que os grandes investimentos e a grande teconologia viriam mais da CEE que da EFTA. Vejam-se, por exemplo, os pareceres dados pela Câmara Corporativa a propósito tanto da fundação da EFTA, em 1960, como do acordo de associação com a CEE, em 1972. O primeiro, Parecer nº 30/VII, de 12 de Abril de 1960, teve, aliás, como relator, o professor de economia Pereira de Moura, onde se criticava a CEE por ter nascido sob o signo da profunda integração política, mas com uma enganadora aparência de arranjo de política económica e comercial. Isto é, o salazarismo fazia suas as palavras de quem virá a ser um dos mais irrequietos responsáveis pela leveza das ideias do PREC, quanto à pesada herança económica do regime do Estado Novo.
E é partir de então que o europeísmo dos anos sessenta se transforma numa espécie de alternativa à questão ultramarina. Coisa que, aliás, contraditava a posição inicial dos pais fundadores da CECA, como pode ler-se numas notas de reflexão de Jean Monnet, de 1943, onde expressamente se previa que a Europa poderá, com meios acrescidos, prosseguir a realizar de uma das suas tarefas essenciais: o desenvolvimento do continente africano. A opção europeia de alguns portugueses dos anos sessenta não surgia assim por vontade reflectida de um pensamento estratégico, mas por exclusão de partes, onde o modelo para que se tendia se assumia como mero fatalismo de uma sebenta de economia, qualificando-se o projecto como mera integração ou cooperação económica, sem alma, sem esperança e sem política. Do mesmo teor veio, aliás, a ser o Parecer da mesma Câmara Corporativa de 4 de Dezembro de 1972, onde foi relator o embaixador Henrique Martins de Carvalho, onde se aceitava a perspectiva de Portugal como um povo geograficamente periférico e se falava na contraposição entre europeus e tradicionais, entre as aspirações revolucionárias e as tendências conservadoras da manutenção, insistindo-se que a vocação histórica do país tradicionalmente nos mantém afastados dos problemas do continente, pelo que voltá-lo para a Europa significa inverter-lhe as linhas normais de convívio, com benefícios dificilmente previsíveis nos esquemas clássicos da economia. Acrescentava-se que pôr o problema em torno de uma opção entre a Europa e o ultramar seria sempre "um equívoco susceptível de criar um falso dilema" como disse o Sr. Presidente do Conselho na alocução de 14 de Novembro último, nem algo foi estabelecido ou solicitado nesse sentido, em virtude das negociações com o Mercado Comum. Neste sentido, o IV Plano de Fomento para 1974-1979, cuja responsabilidade coube ao ministro João Mota de Campos, falava na adaptação da economia metropolitana aos condicionalismos decorrentes do processo de integração económica europeia é imperativo que decorre da ligação, decidida e negociada pelo Governo, da nossa economia à dos mais evoluídos países europeus, no seguimento de uma política de aproximação que deu abundantes frutos no seio da EFTA. Tal ligação exprime uma decisão política - e de política económica - do maior alcance, consagradora de uma clara intenção de conviver cada vez mais estreitamente com países a que nos ligam fortes laços do ponto de vista geográfico, cultural e económico - reforçados pela presença, em alguns deles, de fortes contingentes de trabalhadores portugueses.
15. O pragmatismo da Realpolitik salazarista
No fundo, mantinha-se o pragmatismo da política externa salazarista do pós-guerra, onde o chamado orgulhosamente sós do salazarismo estava bastante próximo de algumas posições do governo britânico. Também Winston Churchill, no começo dos anos trinta, em resposta ao desafio de Aristide Briand, proclamava que mesmo sem o Império Britânico e a Rússia, a massa europeia, uma vez unida, uma vez federada ou parcialmente federada, uma vez consciente do seu continentalismo, constituirá um organismo sem igual. No que diz respeito à Inglaterra, nós estamos com a Europa, mas não somos da Europa. Estamos ligados, mas não estamos incluídos. Mesmo quando passou a apelar à unidade do Continente, Churchill continuou a ver a Europa de fora, dado considerar o Reino Unido como o centro de uma série de círculos, onde o mais íntimo seria o da Commonwealth, o segundo, o da ligação anglo-americana, vindo a unidade europeia apenas em terceiro lugar. Posição que, depois, vai ser repetida pelo governo conservador do mesmo Churchill, regressado ao poder depois da vitória nas eleições de 25 de Outubro de 1951, através do ministro dos estrangeiros, Anthony Eden, que, num discurso proferido nos Estados Unidos, em 12 de Fevereiro de 1952, considerava que a Grã-Bretanha nunca poderia aderir a uma federação europeia: trata-se de algo que nós sentimos não poder aceitar até à medula dos ossos. Se o fizéssemos, prejudicaríamos a força da nossa acção em prol da paz e da união atlântica que é a expressão dessa causa. É que a Grã-Bretanha e os seus interesses estendem-se para além do Continente europeu. O nosso pensamento vai para além dos mares. Sem isto, que é a essência da nossa vida, não seríamos mais do que alguns milhões de pessoas vivendo numa ilha da costa europeia.
Diga-se, aliás, que em Portugal, nos primeiros textos doutrinários elaborados pelos principais partidos políticos, logo após 25 de Abril de 1974, ainda se mantinha o mesmo tipo de linguagem tecnocrática sobre a opção europeia, que continuava a ser qualificada com o neutral qualificativo de Mercado Comum. No programa do PPD, aprovado em Novembro de 1974, referia-se a adesão progressiva de Portugal aos movimentos de cooperação e de integração europeia, de forma a poder negociar de mercados mais vastos, tecnologias modernas e disponibilidades financeiras. Do mesmo modo, na Declaração de Princípios do CDS, de 1974, defendia-se que Portugal se organize de forma acelerada com vista à integração no Mercado Comum.
Um qualquer estudioso português de matérias de relações internacionais que, daqui a cinquenta anos - se ainda houver portugueses e se ainda houver relações internacionais no tempo dos meus netos …. -, um curioso destas matérias que, dentro de meio século, tentar investigar as causas que levaram à adesão de Portugal à CEE em 1985, pesquisando a literatura portuguesa sobre as matérias da integração europeia, ficará certamente intrigado pelo facto de, nos anos setenta e oitenta, encontrar apenas duas ou três monografias, meia dúzia de artigos e outras tantas obras de vulgarização sobre o tema. Com efeito, a Europa à portuguesa dos homens da pré-revolução começou por ser uma simples sebenta de economia que, depois, se volveu numas lições jurídicas de direito comunitário, curricularmente consideradas como mero anexo ao direito internacional. Mesmo no começo da década de oitenta, a Europa continuava a ser apenas um dos possíveis sítios para onde poderíamos ir, alguma coisa que estava fora de nós mesmos e com a qual iam negociando os restritos gabinetes de integração europeia, herdeiros dos gabinetes de planeamento, que recrutavam de forma avulsa alguns elementos das auditorias jurídicas. A Europa não passava de uma série de dossiers feitos com muitas resmas de papel fotocopiado por tecnocratas estaduais e por quadros de algumas associações económicas que visitavam esporadicamente Bruxelas.
Enquanto isto, os nossos jovens e democráticos partidos, subsidiados pelas fundações alemãs, faziam excursões pela província, promovendo seminários sobre a integração europeia, onde o mesmo formador tanto anunciava os benefícios da política agrícola comum, como perorava sobre a estratégia da guerra fria, a união económica e monetária e a defesa do consumidor. E em nome das estatísticas e dos gráficos coloridos dos outros, lá se ia pregando a boa nova de uma caminhada rápida e irreversível para um desenvolvimento capaz de tornear o atraso do orgulhosamente sós, em nome de uma Europa connosco, capaz de fechar num ápice o ciclo do Império. Todos os grandes partidos teciam loas ao sistema, à excepção evidentemente do PCP. Todos se ilusionavam com as irmandades de uma Europa que teria remoído o salazarismo e que acreditava nos cravos da revolução de abril que, em paz, haviam liquidado a mais antiga ditadura da Europa e aberto saldos no mais antigo dos impérios coloniais europeus.
Foi todo este ambiente de vazio de sonho europeu que marcou os primeiros anos da adesão, quando os governos invocavam de forma utilitarista a bandeira dos milhões da CEE, num tempo de filosofia dos homens de sucesso e de dominância do utilitarismo. Aliás, esses tais milhões de contos dos pacotes comunitários chegavam a um Portugal que vivia estremunhado pelo chamado escândalo de Dona Branca. E entre os dois fenómenos, se havia alguns zeros de diferença, notavam-se também muitos fundos perdidos de coincidências. No primeiro caso, aquela mentalidade portuguesa que considerava a CEE como a nova árvore das patacas que servia de sucedâneo às índias e aos brasis perdidos, de onde outrora afluíam especiarias, ouro e pedras preciosas.
20.O complexo alves dos reis
Nos finais dos anos vinte deste século, o mesmo tipo de mentalidade chamou-se alves dos reis que, ludibriando ilustres banqueiros, iluminados catedráticos e circunspectos financeiros, antecipou, na prática, muitas das teses da escola monetarista. Só que, com o salazarismo, voltámos ao viver habitualmente, do produzir e poupar, redescobrimos o pé-de-meia e instaurámos o regime de caderneta da Caixa, da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, antiga secção de um dos serviços do ministério da fazenda que até o prego controlava. Os que não eram pobrezinhos nem honrados ficaram-se pelo literal conto do vigário e a maioria da população, antes de rir com os parodiantes de Lisboa, ouvia as transmissões em directo pela Emissora, então Nacional, dos sorteios da Lotaria, também Nacional, que continua a ser um dos principais serviços da Santa Casa da Misericórdia. Aliás, comprar uma cautela passou a fazer parte da rotina de todos os alves dos reis frustrados deste país. Nos anos sessenta, chegou o Totobola, onde, à velha sorte dos jogos de fortuna e azar, se fez acrescer a ilusão da futebolítica. Vieram também as slotmachines que democratizaram as zonas de jogo, até então reservadas aos turistas e a certas classes sociais. Com o marcelismo, foi o tempo das vacas gordas da sociedade de consumo, surgiram em força os patos bravos e viveu-se a grande euforia do jogo da Bolsa.
Depois, veio a revolução que começou por ser um simples socialismo de consumo, uma vingança populista contra as vacas magras do crepúsculo marcelista. Ainda se pensava que, congelando os preços dos bens essenciais e aumentando os salários, através de meios administrativos, se conseguia que a dona inflação se submetesse às ordens do senhor Estado. Os primeiros tempos pós-revolucionários foram a era dos depósitos a prazo e dos juros bonificados que, durante uns tempos, nos deram a ilusão de que a banca nacionalizada era mesmo nossa. Só que havia o reverso da medalha, desde os cada vez mais estreitos cabazes de compra aos cada vez mais fundos buracos orçamentais, sempre com os espectros da bancarrota e do racionamento a ameaçarem.
Entretanto, surgiu o totoloto e o próprio futebolismo também se envolveu na tentação do bingo. O país, a certa altura parecia, todo ele, um casino clandestino, com alguma coisa de manicómio em autogestão.. Depois, com a primeira fase da governação de Cavaco Silva, renasceu a febre bolsista, antes do krach de Outubro 1987, que constituiu nova pedrada no charco do nosso reincidente sonhar é fácil. E lá tivemos que regressar aos clássicos jogos da Santa Casa e a um sem número de rifas clandestinas.
A era dos milhões da CEE começou efectivamente por confundir-se com mais um novo jogo da mesma sociedade de casino, onde se misturava o risco com a batota e o ganho justo com a especulação fraudulenta. Com efeito, depois dos frades do regime anterior a 1820, dos barões do liberalismo, do senhor dr. da República e do Estado Novo, dos patos bravos do marcelismo e do intermediário especulador da pós-revolução, parecia implantar-se uma nomenclatura atípica de novos ricos. Eram mais barões do que frades, mais senhores drs. do que patos bravos e preferiam o cosmopolitismo de alves dos reis ao alfacinhismo de Dona Branca. Tinham a ciência dos fundos estruturais, o sentido de risco dos jogadores na Bolsa e a persistência dos formigueiros. Eram eles os principais responsáveis pelo efectivo aumento do investimento na agricultura, com a chegada de nova gente a um pretenso empresariado agrícola com jipes consumindo gasolina verde no asfalto das discotecas da linha de Cascais. Coube-lhes a principal quota-parte na explosão de uma falsa formação profissional que se reproduziu como cogumelos intoxicantes e causou inveja ao ministério de uma educação que já não se qualificava como nacional. Não tardaria que enveredassem pela moda da terceira vaga e inundassem a indústria de novas tecnologias de duvidosa eficácia. Eles descobriram que o sistema regulamentarista vigente, misturando as circulares da jurisprudência burocrática dos mangas de alpaca portugueses com a avalanche das iluminadas directivas bruxelenses, tinha mais buracos do que o crivo de um regador.
O novo rico nascente não era contudo um franco-atirador. Grupusculizava-se numa constelação de empresas, mais ou menos fictícias, especializadas em assuntos gerais, mas que tinha apenas como objecto a cinegética do subsídio e a maximalização do proteccionismo dos amigos influentes. O respectivo modelo empresarial estava simplificado: alguns militantes dos partidos governamentais, de preferência, experimentados em gabinetes ministeriais, um técnico de marketing reformado, com boas ligações a almoços com gerentes bancários, um informático e alguns técnicos do Estado ligados a dossiers de fundos estruturais, em regime de part-time. Depois, visitavam-se as fidelidades partidárias, cobravam-se contrapartidas sobre antigas cunhas, fugia-se ao imposto e fazia-se de tudo, à sombra da designação de consultadoria. Para aguentar a rotina, bastavam duas ou três avenças fixas. Podia ser montar o departamento informático do instituto nacional dos alhos ou formar chefes de repartição na direcção geral dos bugalhos e afins. De caminho, promovia-se a cultura nos buracos da rua do progresso e executava-se um projecto sobre energia das ondas no mar da palha. Este novo-rico tinha aversão aos grandes lobbies e não andava nas bocas do mundo. Tinha percebido que a nossa economia estava insanavelmente viciada pelo negocismo e que quem não arriscava não petiscava. Ele sabia que a reconstrução do capitalismo em Portugal pouco tinha a ver com a moral do burguês histórico, que sempre detestara a de casino. A principal regra do novo jogo era não haver fair play. Daí que se rissem de Dona Branca, a última representante do furavidismo de um Portugal Velho que não sabia o que eram os pedidpes, pedapes, federes, feogas, fses e muitas outras regras, regulamentos, despachos, circulares, favores e tantas outras coisas mais que continuam a garantir que todos somos iguais, mas que há alguns que sempre são mais iguais do que outros.
Sobre a matéria, apenas direi que quem percorrer as histórias da ideia de Europa com mais autoridade, não detecta personalidades portuguesas, na habitual lista que vai de Pierre Dubois a Jean Monnet e que passa por franceses como Sully, Crucé, Abade de Saint-Pierre, Saint-Simon, Victor Hugo, Herriot e Briand, por alemães como Leibniz e Kant, por ingleses como Penn, Bentham e Churchill ou por checos, como Podiebrad ou Comenius. Aliás, nesse mesmo conjunto, também não se vislumbra rasto de espanhóis e de outros sulistas ou mediterrânicos, à excepção de um outro poeta e de alguns intelectuais do exílio, interno ou externo. Nenhum português também aparece no originário movimento pan-europeu, na resistência europeísta anti-hitleriana, ou nos congressos federalistas ou unionistas do pós-guerra, sementes donde brotaram os chamados pioneiros da Europa comunitária. Mas, se formos um pouco mais longe, também poucas vezes encontraremos portugueses como actores, mesmo que secundários, nos esforços de estabelecimento do equilíbrio europeu, paralelos às guerras iluministas, a não ser nos bastidores dos congressos de Vestefália e de Utreque. Apenas no Congresso de Viena de 1815 e nas negociações da Paz de Versalhes, posteriores a 1918, detectamos uma tímida participação portuguesa, pouco proporcional às invasões de Godoy e Napoleão ou ao nosso esforço no atoleiro da Flandres, durante a Grande Guerra.
26.Portugal na balança da Europa
Se, em termos de participação criativa, como protagonistas ou actores secundários, não estivemos no centro das modernidades da Europa, eis que os efeitos expansivos das mesmas sempre se fizeram sentir cá dentro, tanto no plano das coisas materiais, desde a tutela económica à invasão militar, como no plano das realidades espirituais, com os estrangeirados, progressistas ou contra-revolucionários, maçónicos ou antimaçónicos, todos eles prenhes de um maniqueísmo decretador do bem e do mal, conforme as luzes exógenas provenientes dos sítios considerados polidos, civilizados, desenvolvidos, modernizados ou progressistas. Foi assim nalgumas vagas do século XVIII, num crescendo que culminou no drama das invasões francesas; não deixou de o ser entre 1820 e 1834, quando nos transformámos em mero reflexo da longa manus da Santa Aliança ou dos que se lhe opunham. E voltou-se ao mesmo ritmo, quando a generosidade justiceira da Maria da Fonte e da Patuleia foi jugulada pela intervenção estrangeira imposta na Convenção do Gramido e continuada ao longo de todo o nosso Portugal Contemporâneo, ao estilo da questão do mapa cor de rosa.
Com efeito, um dos esforços mais consequentes do nosso tempo para a procura de uma entidade política maior que os Estados Modernos, desencadeou-se a partir de 9 de Maio de 1950, quando a plurissecular a ideia de Europa passou do círculo mais ou menos esotérico dos projectistas da paz e se transformou num ideal histórico concreto, entrando na zona da realpolitik, tanto a nível das relações internacionais como das políticas domésticas. Só a partir de então é que se procurou a efectiva constituição de uma entidade europeia, através de concretas medidas políticas. Só a partir de então é que a Europa tentou passar da unidade negativa à unidade positiva, procurando transformar-se numa espécie de organismo vivo. Só a partir de então é que começámos a superar o traumatismo das guerras iluministas onde, perante a emergência de uma potência hegemónica, sempre se formaram grandes coligações unitárias visando impedir os objectivos daquela. Só a partir de então é que tentou passar-se da efemeridade à estabilidade de uma coligação permanente, unindo vencidos e vencedores, em nome da paz pelo direito, sem reduzir-se a paz à continuação da guerra por outros meios. A Europa deixou assim de ser mera abstracção, como o ainda era no discurso dos projectistas da paz, ou como ainda o continua a ser naqueles saudosismos historicistas, geradores da frustração ou da catástrofe, que persistem em louvar um modelo fictício que não parece assentar na realidade do aqui e agora.
Talvez importe recordar que se o nazi-fascismo invocou o europeísmo, eis que os movimentos de resistência não deixaram também de manifestar uma forte corrente de unidade europeia de cariz federalista, principalmente na França, na Bélgica e na Holanda. Os precursores do movimento foram os antifascistas italianos Altiero Spinelli (1907-1986) e Ernesto Rossi, que, presos em Ventotene, nas ilhas Lipari, haviam fundado clandestinamente, em Junho de 1941, um movimento europeísta, autor do chamado Manifesto de Ventotene que reclamava uma constituição europeia elaborada por uma assembleia europeia a ser ratificada pelos parlamentos nacionais. Este grupo, já depois da queda de Mussolini, vai criar em Milão, em Agosto de 1943, o Movimento Federalista Europeo, cujo programa propõe a criação de uma Federação europeia para a qual sejam transferidos poderes soberanos que digam respeito aos interesses comuns de todos os Europeus, salientando também que os habitantes dos diferentes Estados devem possuir a cidadania europeia, devem, portanto, ter o direito de escolher e de controlar os governantes federais e de controlar os governos federais e de ser submetidos directamente às leis federais.
A resistência francesa advogava também o europeísmo, chegando mesmo a reclamar uns Estados Unidos da Europa, ideia que era partilhada por vários jornais, dos quaisa se destaca Combat, fundado em 1941, onde vão colaborar vários europeístas, como Henri Frenay, Georges Bidault, Albert Camus, Pierre-Henri Teitgen, Edmond Michelet e François de Menthon. É este jornal que vem proclamar que os Estados Unidos da Europa serão em breve uma realidade viva, pela qual combatemos (Setembro de 1942), considerando a resistência, como a esperança da Europa, o cimento das uniões de amanhã (editorial de Dezembro de 1943). Depois de várias reuniões de resistentes ocorridas desde Março de 1944, eis que em Julho desse mesmo ano surgia, a partir de Genebra, a Declaração das Resistências Europeias, sob o título A Europa de Amanhã, subscrita por delegados vindos da França, da Itália, da Alemanha, da Holanda, da Dinamarca, da Noruega, da Polónia e da Checoslováquia, onde se adoptavam os princípios da Carta do Atlântico. Aí se observava que os fins morais, sociais, económicos e políticos que os uniam na resistência ao nazismo não podem ser atingidos salvo se os diversos países do mundo aceitarem ultrapassar o dogma da soberania absoluta dos Estados integrando-se numa única organização federal. A paz europeia é a pedra angular da paz do mundo. Com efeito, no espaço de uma só geração, a Europa foi o epicentro de dois conflitos mundiais que tiveram, antes de mais, por origem a existência sobre este Continente de trinta Estados soberanos. É necessário remediar esta anarquia pela criação de uma União Federal entre os povos europeus. Os signatários acrescentavam que a vida dos povos que representam deve ser fundada no respeito pela pessoa, a segurança, a justiça social, a utilização integral dos recursos económicos em benefício da colectividade globalmente considerada e no desabrochar autónomo da vida nacional. Estes fins não podem ser atingidos a não cerque os diversos países do mundo aceitem ultrapassar o dogma da soberania absoluta dos Estados, integrando-se numa única organização federal.
Dentro da própria Alemanha, a resistência ao nazismo também se alimentava do europeísmo. Carl Friedrich Gördeler, numa memória secreta, de Março de 1943, considerava: Unificação da Europa com base em Estados europeus independentes; esta unificação efectuar-se-á por etapas! Uma união económica europeia, com um conselho económico com sede permanente, será imediatamente criada. A unificação política não precederá, mas seguir-se-á à união económica. Também na universidade de Munique, sob o impulso do Professor Huber, surgia o movimento Rosa Branca, que propunha a estruturação federal da Alemanha e da Europa. Em Fevereiro de 1943 este movimento chegou a promover uma manifestação de estudantes. Serão executados os líderes desse movimento, os irmãos Hans e Sophie Scholl
31. A procura da integração política
Mas é só depois da segunda guerra mundial, só depois do holocausto e da liquidação do nazi-fascismo, que surgiu um projecto europeu consequente, visando a integração política da Europa. Um projecto alicerçado na integração económica, tendo como horizonte uma comunhão cultural, um projecto que sempre disse renunciar aos anteriores métodos de unificação pela hegemonia. Só depois da era do nada, só depois dos homens concretos terem sofrido o mal absoluto, aquele choque existencial que ataca os próprios corpos pela tortura. pela guerra, pela peste e pela fome, é que se reconstruiu a alma e a esperança na sua pureza. Do existencialismo veio a esperança dos desesperados, no auge da força é que emerge a não violência. Um projecto que, desde então, procurou construir uma nova entidade política, dotada de instituições e de um novo centro político. Uma nova entidade, em processo de integração política e, portanto, dotada de um centro para o qual se vão transferindo lealdades, expectativas e interesses, embora mantendo-se em simultâneo, os velhos centros estaduais de poder político. Um novo centro que bem pode acumular-se ou acrescentar-se aos anteriores, sem os substituir, desde que se pratique o princípio da subsidariedade e que se elimine o princípio da indivisibilidade da soberania. Até porque a transferência é aleatória, dado ter como autores e destinatários todos e cada um dos cidadãos europeus. Um projecto que, aliás, não pode reduzir-se àqueles anteriores impérios europeus que, conforme Almada Negreiros, estabeleceram de facto na Europa uma unidade política, mas não precisamente a unidade política da Europa.
Já não é uma união da Europa pela força nem apenas pelo equilíbrio. É mais a unidade segundo um princípio e segundo o consentimento das partes que o compõem. Uma unidade que precisa de identidade. Porque a história da balança da Europa sempre foi marcada pela vontade de poder de Impérios que tiveram como principal força de atracção fazer o pleno da própria Europa, sempre poderíamos dizer, como Fernando Pessoa, que, neste sentido, A Europa está farta de não existir ainda! Está farta de ser um arrabalde de si própria. Ideia que, depois, Jean Monnet vai repetir quando salientava que a Europa nunca existiu. Não é a acumulação de soberanias nacionais num conclave que a cria uma entidade. A Europa deve ser genuinamente criada.
É esta nova maneira de fazer a Europa que tem vindo a desabrochar. Utilizando palavras-chaves de alguns dos títulos das obras europeístas da nossa contemporaneidade, poderemos dizer que a ideia de Europa converteu-se na Europa em formação, que o espírito europeu volveu-se na Europe en devenir, que o mito passou a realidade, que a Europa depois de despertar, com os seus pioneiros, passou a ter pais fundadores, passou à fase de obras, à construção, onde há um projecto, um desafio. Deixou de ser uma utopia, transformou-se numa realidade, passou a ter um futuro, apesar de viver uma metamorfose inacabada. Nada de repetição de velhos esquemas, como os da federação ou da confederação, que geraram aquilo que hoje são alguns Estados Nações. A Europa como realidade nova, agora sem Papa nem Imperador, dotada de uma ordem que não é imperial nem totalitária, fundando-se antes numa mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes, para utilizarmos palavras de Raymond Aron. A nova Europa persiste porque ousou consagrar o realismo da desigualdade natural, onde o predomínio dos mais forte recebe o consentimento real dos menos fortes. Um equilíbrio naturalmente instável, um risco permanente, dado que a tentação da pentarquia continua a ameaçar e com o consequente regresso aos Estados Directores é permanente. O projecto europeu é esse quid, esse qualquer coisa que, por vezes, só esotericamente consegue traduzir-se. Como a imagem utilizada pelo antigo presidente da Comissão Europeia, o belga Jean Rey, para quem a Europa se ia construindo como uma catedral gótica, onde a primeira geração dos construtores até sabe que não viverá para ver a sua obra acabada, mas que, mesmo assim, continua a trabalhar. Ou então, como referia se um antecessor, Walter Hallstein, os tratados são como um quadro dos velhos mestres holandeses, onde há porções pintadas com grande pormenor e outras apenas esboçadas.
34.A ideia de Europa de Monnet
Seguindo as palavras do próprio Jean Monnet, importa sublinhar que o projecto de 9 de Maio de 1950, não era uma mera escolha técnica, mas antes um processo de inventar formas políticas novas, pelo que inserir a perspectiva num modelo de soluções tacanhamente tecnocráticas talvez padeça de algum erro de análise. Basta recordar um pequeno escrito de Jean Monnet, intitulado Note de Refléxion, maturado em Argel, no dia 5 de Agosto de 1943, onde, bem antes da euforia federalista, considerava: Não haverá paz na Europa se os Estados se reconstruírem na base da soberania nacional, com o que ela traz de política de prestígio e de protecção económica. Se os países da Europa se protegerem de novo uns contra os outros, a constituição de vastas forças armadas será de novo necessária. Certos países, de par o tratado de paz futuro, o poderão; a outros isso será interdito. Fizemos a experiência deste método em 1919 e conhecemo-lhe as consequências. Alianças europeias serão concluídas; conhecem-lhe o valor. As reformas sociais serão impedidas ou retardadas pelo peso dos orçamentos militares. A Europa não se recriará uma vez mais no receio. Os países da Europa são muito estreitos para assegurar aos seus povos a prosperidade que as condições modernas tornaram possível e por conseguinte necessário. Faltam-lhe mercados mais extensos. Também é possível que eles não utilizem uma parte importante dos respectivos recursos para a manutenção de indústrias ditas chave necessárias para a defesa nacional, tornadas necessárias pela forma dos Estados "com soberania nacional" e proteccionistas, tal como os conhecemos antes de 1939. A sua prosperidade e os desenvolvimentos sociais são impossíveis, a menos que os Estados da Europa não se formem numa Federação ou numa "entidade europeia" que disso faça uma unidade económica comum. E é da solução do problema europeu que se trata. Os outros, ingleses, americanos, russos, têm mundos para eles para os quais podem retirar-se temporariamente. Da solução do problema europeu depende a vida da França - porque nenhum acordo para o qual a França pode ser arrastada com a Inglaterra, a América ou a Rússia não poderá dissociá-la da Europa com a qual está ligada intelectualmente, materialmente, militarmente. Como ele mesmo vem, depois a referir nas suas memórias, a minha preocupação era fazer menos uma escolha técnica e mais inventar formas políticas novas e encontrar o momento útil para mudar o curso dos espíritos.
35.A União Europeia dos Federalistas
A ideia de Europa que está na base do discurso de 9 de Maio de 1950 é a que fora manifestada pela vaga de fundo federalista que, a partir de 1946, levou à União Europeia dos Federalistas, mobilizadora das reuniões de Amsterdão e Montreux, de 1947. Foi em Dezembro de 1946 que, em Paris, se constituiu a União Europeia dos Federalistas que adoptava o lema Europa una num mundo único. O novo grupo congregava cerca de meia centena de movimentos ocidentais de carácter nacional e, indirectamente, cerca de 100 000 membros individuais, entre os quais se moviam vários emigrados políticos do leste. Entre os mais entusiastas da ideia, destacavam-se nomes como de Henri Frenay, Alexandre Marc, Altiero Spinelli e Henry Brugmans. Surgia assim a primeira semente de um partido europeu que transcendia as fronteiras existentes. Em 12 de Abril de 1947, reuniam em Amsterdão, delegados dos vários movimentos federalistas europeus, já existentes ou em formação, preparando o Congresso da União Europeia dos Federalistas que terá lugar em Montreux, entre 27 e 31 de Agosto de 1947, e que teve como principal animador o polaco Joseph Retinger. Na moção política aqui aprovada, proclamava-se: pela primeira vez na história, todos os movimentos federalistas europeus agruparam-se numa só associação, para fazer ouvir a sua voz, a voz da própria Europa ... Apenas existe uma solução: a união dos povos em torno de um poder federal eficaz. Estava lançada a ideia de uns Estados Gerais da Europa.... Visava-se sobretudo a constituição de um governo europeu responsável perante os indivíduos e os grupos e não perante os Estados federados, com a consequente transferência de soberania dos Estados para um organismo superior. O discurso inaugural é de Churchill e começa evidentemente pela questão alemã: a Europa necessita de todos estes franceses, de todos estes alemães, de tudo o que cada um de nós pode prestar. Por isso, saúdo aqui a delegação alemã que convidamos para que tome assente entre nós. Para nós, a questão alemã consiste em restaurar a vida económica da Alemanha e fazer honrar de novo a antiga boa reputação do povo alemão, sem que os vizinhos da Alemanha e nós mesmos fiquemos expostos mais uma vez o novo fortalecimento do seu poder militar. Ele queria acentuar a tarefa orgulhosa das potências vitoriosas, de pegar pela mão os alemães e de reconduzi-los à família europeia . Já Albert Camus, nos começos de 1947, em artigo publicado em Combat, reconhecia que qualquer que seja a nossa paixão interior e a memória das nossas revoltas, sabemos bem que a paz do mundo tem necessidade de uma Alemanha pacífica, e que um país não pode ser pacificado quando é excluído para sempre do concerto das nações. Se o diálogo com a Alemanha ainda é possível, a razão obriga que o aceitemos.
Neste congresso são apresentados dois importantes relatórios, o de Denis Rougemont, L'Attitude Fédéraliste e o do futuro prémio Nobel da economia, Maurice Allais, Aspects Économiques du Fédéralisme. Rougemont propõe então uma nova tese federalista, que visava uma construção europeia feita, menos pelos Estados e mais pelas regiões: -renúncia a qualquer ideia de hegemonia e a qualquer espírito de sistema, isto é, a consideração de que a federação, como arrange ensemble, teria de compor as realidades concretas e heteróclitas, que são as nações, as regiões económicas e as tradições políticas); - a superação do problema das minorias (considerava-se que o federalismo seria capaz de resolver o problema dos pequenos Estados, como os suíços haviam resolvido o problema dos suíços italianos que, apesar de restritos, tinham lugar no Conselho de Estado); - a ideia de que o federalismo deveria salvaguardar as qualidades próprias de cada grupo, não pretendendo apagar as diversidades, antes exigindo o amor pela complexidade, dado partir de baixo para cima, e não a partir do vértice de um centro político, mas sim a partir das pessoas e dos grupos.
Ao mesmo tempo, a Europa unida era invocada por toda a uma série de outros movimentos políticos, desde os de cariz conservador e unionista, aos de marca democrata-cristã ou socialista. Na mesma vaga, inseriam-se os movimentos sindicais e patronais, sem excluirmos o próprio renascimento do próprio movimento pan-europeu. Em 14 de Maio de 1947 era criado em Londres, no Albert Hall, o United Europe Comittee, sob a presidência de Winston Churchill, marcado por uma perspectiva unionista da Europa, que defendia o modelo confederacionista de commonwealth. De cariz também confederativo era criado em França, em Junho desse mesmo ano de 1947, o Comité Français pour l'Europe Unie, com Édouard Herriot, André Siegfried, Paul Bastid, Paul Ramadier, Paul Reynaud e René Courtin. Também na Alemanha ocidental surgia o Deutsch Rat der Europaeischen Bewegung
Em Junho de 1947, democratas-cristãos de dez países da Europa lançavam em Chaudfontaine as Novas Equipas Internacionais (NEI) que, em 1965, se transformam na União Europeia dos Democratas-Cristãos (UEDC). As NEI baseavam-se em equipas nacionais, constituindo uma rede de comunicação e de influência, onde participavam vários governantes da altura. Não nos esqueçamos que três dos mais importantes pais-fundadores da Europa, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Alcide de Gasperi, fazia parte da então chamada Europa carolíngia, Europa católica ou Europa vaticana
Mas o repto dos conservadores constituía um desafio a que não ficavam alheios os próprios socialistas. No início mesmo ano, também em Londres, vários políticos e sindicalistas de cariz socialista e social-democrata, sob o impulso de Bob Edwards, criavam um Comité Internacional de Estudos e de Acção para os Estados Unidos Socialistas da Europa que, em Junho de 1947, num congresso ocorrido em Montrouge, lançavam as bases daquilo que, em Novembro de 1948, passaria a ser o Movimento Socialista para os Estados Unidos da Europa (MSEUE), dirigido por Paul-Henri Spaak, movimento que mais tarde, em 1959, passa a ser designado por Esquerda Socialista, já sob a direcção de André Philip. Entre os movimentos sindicalistas internacionais surgiam grupos europeus, como na Confederação Internacional dos Sindicatos Livres e na Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos.
Os empresários e homens de negócios não ficavam alheios ao processo e em 1947 fundava-se uma Ligue Indépendante de Cooperation Économique, dirigida pelo antigo primeiro-ministro belga Paul van Zeeland e com a participação do liberal francês Jacques Rueff. Em 1945 já tinha surgido a Confederação Europeia da Agricultura. Em 1949 Georges Villiers criava a o Conselho das Federações Industriais da Europa. Também em 1947, os restos da União Pan-Europeia, sob o impulso de Coudenhove-Kalergi, voltavam a fazer renascer a ideia da unidade, a partir dos vários parlamentos, reorganizando-se a União Parlamentar Europeia que convoca um 1º Congresso Parlamentar Europeu, que teve lugar em Gstaadt, Interlaken, entre 2 e 6 de Setembro de 1948. O V Congresso decorre em Nova Iorque, no ano de 1943. Aí é lida uma mensagem de Churchill propondo a criação de um Conselho da Europa. Coudenhove-Kalergi é então professor na New York University, onde dirige um seminário sobre A Europa Federal Depois da Guerra. Anima a instituição de um Comité Americano para uma Europa Unida e Livre.
Face a toda esta espontânea dispersão, eis que em Dezembro de 1947, a União Europeia dos Feeralistas desencadeava a constituição de um Comité Internacional de Coordenação dos Movimentos para a Unidade Europeia. É este comité que promove a realização em Haia, entre 7 e 10 de Maio de 1948, o Congresso para a Europa Unida, onde oitocentas personalidades de várias tendências se reúnem sob a presidência de Winston Churchill. O próprio papa Pio XII lá envia um representante pessoal especial, demonstrando a solicitude da Santa Sé pela união dos povos, como Roma, mais tarde reconhecerá . Entre as 800 personalidades, há 200 parlamentares, 60 ministros e 12 antigos primeiros-ministros, surgindo uma espécie de manifestação de massas das elites europeias, como lhe vai chamar Dusan Sidjanski. Se a comissão política do Congresso, presidida pelo socialista francês Paul Ramadier, apenas propôs a constituição de uma assembleia parlamentar europeia composta por representantes dos vários parlamentos nacionais, já os federalistas, como Paul Raynaud, assumiam a necessidade de um parlamento europeu a ser eleito por sufrágio directo e universal, parlamento que se assumiria como assembleia constituinte europeia, à razão de um deputado por um milhão de habitantes. Moderada foi também a proposta do comité económico e social, que teve como relator o antigo primeiro-ministro belga Paul van Zeeland, de cariz liberal.
Finalmente, o comité cultural era presidido pelo espanhol Salvador Madariaga, tendo como relator o suíço Denis de Rougemont. Com este último sintetiza, o congresso apresentou três grandes objectivos: no plano político, a necessidade da paz pela ultrapassagem da anarquia dos Estados soberanos; no plano económico, a necessidade de uma prosperidade; no plano cultural, a ultrapassagem do nacionalismo, pelo apelo a uma comunidade espiritual.
No plano político, segundo os termos da resolução adoptada, a Europa unida não deveria ser um sistema de gravitação onde os Estados europeus seriam chamados a agrupar-se como satélites em torno de um qualquer entre eles. Contudo, sobre a natureza do laço jurídico a adoptar pela unidade europeia, eis que no texto final, também redigido por Rougemont, se procurou prudentemente conciliar o unionismo com o federalismo, isto é, não marginalizar os britânicos, apenas se pedindo que os diversos parlamentos nacionais elegessem uma assembleia europeia capaz de examinar os problemas jurídicos e constitucionais postos pela criação de uma União ou de uma Federação, bem como as consequências económicas e sociais. Deste modo também não se ofendiam os federalistas integrais que, tal como os unionistas, não concordavam com a eleição por sufrágio directo de uma assembleia europeia, dado que o processo revestiria um carácter individualista que não atribuía importância aos grupos naturais.
No plano das propostas concretas, foi dessa reunião que resultou a proposta de instituição de um Conselho da Europa, dotado de um tribunal dos direitos do homem e de uma assembleia europeia. No plano económico, as propostas foram mais vagas, dado que apenas falaram na necessidade de instituições comuns para a fusão de interesses ligados à produção industria, à legislação social, às taxas aduaneiras e à liberdade de trocas. Recomendou-se a abolição progressiva dos contingentes e das restrições à importação e à exportação, a abolição dos direitos alfandegários, a estabilização das moedas, o estabelecimentos de clearings multilaterais, de programas concertados de mobilização dos recursos agrícolas e de desenvolvimento das indústrias de base, a racionalização das políticas de emigração de mão de obra. No plano cultural propôs-se um Centro Europeu da Cultura, que começou a funcionar em Genebra logo em 1949, sob a direcção de Rougemont.
Segundo Aron, não éramos mandatados por ninguém; mesmo aqueles que eram delegados de um movimento ou de um partido, não representavam senão eles próprios. maioria e minoria, nas comissões não significava nada. A Conferência assumia-se inteiramente como propaganda, no sentido nobre do termo, como a arte da persuasão não clandestina. Era o tempo da Primavera da Europa unida, sonhada e bem próxima, os menos dados à utopia entregavam-se a gloriosas esperanças... Mesmo um gaullista como Michel Debré elaborava uma brochura favorável a uma república federativa europeia, contendo artigos de uma futura constituição. Outros falavam epicamente. Salvador Madariaga proclamava: esta Europa tem de nascer. E nascerá quando os espanhóis disserem "a nossa Chartres", os ingleses "a nossa Cracóvia", os italianos "a nossa Copenhaga"; quando os alemães disserem "a nossa Bruges" e recuarem horrorizados, perante a ideia de alguma vez levantarem a mão agressora contra ela. Então, a Europa viverá, porque será então que o Espírito que conduz a História terá pronunciado as palavras criadoras: Fiat Europa. Por seu lado, Churchill proclamava: devemos proclamar a missão e concepção de uma Europa unida, cujo conceito moral granjeará o respeito e a gratidão da humanidade e cujo poder físico será tal que ninguém ousará molestar o seu tranquilo percurso ... Espero ver uma Europa em que homens e mulheres de todos os países darão a mesma importância ao facto de serem europeus como ao facto de pertencerem ao seu torrão natal e em que para toda a parte que forem neste vasto domínio possam pensar verdadeiramente: "Aqui, estou em minha casa".
Não tarda que, em 25 de Outubro o comité de coordenação dos movimentos europeus, animado, sobretudo, por Duncan Sandys, se reuna em Bruxelas, passando a chamar-se Movimento Europeu. Assumia-se sobretudo como um poderoso grupo de pressão internacional que, em nome das conclusões do Congresso de Haia procurou fazê-las programa dos diversos governos europeus. Costuma dizer-se, na senda de Sidjanski, que nesse Congresso se esboçaram duas tendências europeístas. De um lado, os unionistas, um pouco à maneira britânica; do outro, os federalistas. Costuma também acrescentar-se que os federalistas terão ganho a médio e a longo prazo, dado que a matriz de toda a reflexão foi marcada por uma ideia de Europa que eles dinamizavam. Contudo, no plano das propostas concretas, foram os unionistas que venceram. Impõe-se, contudo, assinalar que tanto unionistas como federalistas estavam de acordo na circunstância de ser ultrapassado o dogma do Estado soberano ou da soberania nacional. Como o próprio Winston Churchill expressara, no discurso aí proferido, no dia 7 de Maio, a Europa unida implicava um certo sacrifício ou uma fusão das soberanias nacionais.
Voltando ao discurso de Schuman de 1950, diremos que o mesmo procura uma síntese entre a integração internacional de tipo federalista e a integração internacional de tipo funcionalista. Se, do federalismo, retira a ideia, o objectivo, já ao funcionalismo gradualista vai buscar o método, assumindo essa mistura de revolucionarismo nos objectivos e o reformismo nos métodos. Em vez de um novo contrato social imediatista que decretaria a eliminação do estado de natureza das soberanias, opta-se pelo gradualismo da integração num novo centro supra-estadual de sucessivas funções das soberanias anteriores, conciliando-se deste modo os modelos de integração política propriamente dita com os de cooperação política. Era, com efeito, um programa suficientemente poliédrico para mobilizar contraditórios movimentos, de socialistas a liberais, de nacionalistas a internacionalistas, de intelectuais a homens de acção. Apostava-se assim numa técnica de uma terceira via, onde a palavra integração tentava superar a oposição federação-união, tentando dizer-se que a nova unidade política seria compatível com a manutenção da soberania nacional, ao mesmo tempo que se apostava na emergência de algo mais forte que o mero cosmopolitismo de um núcleo meramente inter-estadual, à maneira das organizações internacionais. Procura-se assim uma autoridade supranacional, um processo de integração supranacional, como uma alta autoridade, nascida das soberanias nacionais, mas provocando o aparecimento de um novo conjunto que giraria autonomamente, isto é, independente da possibilidade de veto de cada um dos membros do conjunto. A nova unidade política assumia assim um recorte trans-estadual ou transnacional, dado que, para o novo centro político, eram transferidas parcelas das anteriores soberanias estaduais. Isto é, o novo centro político, dentro da área das respectivas funções, passava a ter uma plenitude de poderes, passava a ser soberano. Desta forma surgia uma nova entidade, bem diversa das anteriores organizações interestaduais. Surgia assim uma autoridade política europeia, com funções limitadas, mas poderes reais, conforme as palavras emitidas pela primeira assembleia consultiva do Conselho da Europa. Era esta a maneira nova de fazer a Europa. O funcionalismo em larga escala, se divergia do unionismo, não alinhava com qualquer espécie de integrismo federalista. Era federalista nos objectivos e funcionalista nos métodos. Tinha como fim, no longo prazo, a federação, mas apenas praticava um federalismo sem dor ou sem lágrimas. No fundo, era o primado do método que se refugiava numa preponderância dos técnicos. Tinha contudo o defeito de fazer acirrar a desconfiança popular perante o processo. E, ao não prever esta participação das massas, acabou por gerar a própria desconfiança dos políticos que, para crescerem popularmente, acabaram por enveredar pelo populismo anti-europeu.
Monnet, nas suas Memórias, reconhece que a ideia de unificação europeia que nesses finais dos anos quarenta, começos dos anos cinquenta, andava no ar: o problema era formulado de maneira lúcida, mas faltava o método para resolvê-lo. Ora, se não houvesse método, o problema não progrediria. Tinha aprendido que não se pode agir em termos gerais, partindo de um conceito vago, mas que tudo se torna possível se nos soubermos concentrar num ponto preciso que provoca o restante ... era preciso partir da dificuldade, apoiar-se nela para criar o início de uma solução geral. A união seria provocada progressivamente pela dinâmica de uma primeira realização. Porque, quando há um firme propósito sobre o objectivo que se quer atingir, é preciso agir sem pôr hipóteses sobre os riscos de não alcançar o resultado final. Enquanto não tiver tentado, você não pode dizer que uma coisa é impossível
49.O europeísmo em português
Entre as duas guerras deste século, também houve alguns portugueses que tentaram a senda europeísta. Na geração do Orfeu, para além da teoria de Fernando Pessoa sobre os fundamentos da civilização europeia, destaca-se a visão do Sudoeste de Almada Negreiros, enquanto no grupo do humanismo laico, surgem as vozes de Santana Dionísio e de Abel Salazar em A Crise da Europa, de 1942.
Foi durante a Grande Guerra que Fernando Pessoa, insurgindo-se contra o Kriegsstaat alemão, procurou determinar a génese daquilo que designava por civilização europeia, enumerando em sucessivos textos vários princípios, bases ou fundamentos. A civilização a que todos pertencemos assenta em quatro fundamentos: a Cultura Grega, a Ordem Romana,na, e a Moral Cristã, a Universalidade Moderna, esta última criada pela Itália, quanto à formação de nacionalidades distintas, que nela primeiro emergiram em semelhança dos estados-cidades dos gregos e romanos; por Portugal, pelos descobrimentos, quanto à conversão da simples civilização europeia em civilização mundial; pela Inglaterra (...) A civilização a que todos pertencemos - entendendo por "todos" todo o mundo - assenta em três fundamentos, que a precederam. Esses fundamentos são a Cultura Grega, a Ordem Romana, e a Moral Cristã. Da Grécia nos vem o espírito e a forma da nossa cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da nossa política. Da religião de Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa vida interior.
A estes três fundamentos originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem. Da Grécia nos vem o espírito e a forma da nossa cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da nossa política. Da religião de Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa vida interior.
A estes três fundamentos originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem.
O primeiro movimento começou na Itália e constituiu, através da renovação do espírito grego, na destruição da fraternidade humana, quer pela formação de nacionalidades, quer pelo movimento anti-romano que, por um lado progressivamente destituiu a língua latina de língua da humanidade civilizada, e, por outro lado, preparou a reforma, que haveria de destruir a fraternidade católica da Europa. Assim a Europa se libertou do excesso de Roma e da Humanidade. É contra a humanidade que se faz todo o progresso; por isso é reaccionário todo o movimento, como o bolchevista, em que se pretenda introduzir a ideia fruste de humanidade.
O segundo movimento começou em Portugal, e foi o dos Descobrimentos. Pouco importa discutir se tal ou outro ponto da terra era ou não conhecido antes de o descobrirem os Portugueses. Os descobrimentos dos Portugueses não valem como descoberta, mas como sistema. Foi Portugal que primeiro sistematizou a descoberta e revelação do mundo. Sociologicamente, pois, os descobrimentos (sejam os se espanhóis, de franceses, de ingleses, ou de quem quer que seja) são todos portugueses. Historicamente, serão o que forem; a história porém não é nada, senão (não é mais que) o armazém de factos ou pseudofactos sobre os quais trabalhe a sociologia.
Já para Almada Negreiros, terminado o Império Romano e emancipados os povos, formam-se depois as várias nacionalidades e substitui-se a unidade política da Europa da Roma dos Césares pela unidade política da Europa legítima.
Entregues os povos aos seus próprios governos, a unidade da Europa está na ligação de todos pela mesma fé geográfica e telúrica.
Trata-se de formar as várias civilizações particulares da civilização geral europeia. trata-se de guardar no todo da Europa o perfil de cada um dos seus particulares.
Na Europa de hoje reproduz-se parecidamente o mesmo que na da Roma dos Césares. Não existe um poder central, como então, impondo com as suas legiões armadas a obediência ao César romano, mas há uma força que ultrapassa o poderio das nacionalidades europeias, uma força que não é localizadamente temporal em nenhuma parte da Europa, mas que existe, a mais forte de quantos impérios aqui se sucederam: É a própria força da Europa mais una afinal hoje do que nunca, entregue pela primeira vez à sua própria responsabilidade total, sem nenhum chefe único da Europa mas nas mãos de todos os chefes de todas as nacionalidades europeias. É a força espiritual da Europa que entra em sua própria consciência. É esta consciência da unidade espiritual da Europa que faz exigir de cada nacionalidade o superlativo da sua evidencia telúrica, que faz ir cada povo até às profundezas místicas dos seu próprio barbarismo d'origem, como se o mais estranho poder e o mais sobrenatural intimasse cada nacionalidade a esclarecer toda a essência do seu próprio mistério, como se tratasse de uma questão a prazo, de vida ou de morte para cada nacionalidade.
A unidade espiritual da Europa entra hoje na sua maioridade. Os povos já não terão por inimigos o estrangeiro que lhes justifique as lutas pela independência. Hoje a independência dos povos assenta sobre si-mesmos, adentro das fronteiras, corre mais perigos e tem menos inimigos estranhos.
A unidade espiritual da Europa ao mesmo tempo que ilumina melhor também ameaça mais a independência de cada nacionalidade do que o estrangeiro à porta. Cada povo europeu actual há-de fazer ressuscitar do barbarismo da sua origem a mística colectiva da sua própria integração na terra-berço. Cada povo europeu actual há-de mergulhar-se de novo nos absurdos milagres que o fizeram na lenda melhor do que na historia. Cada povo europeu actual há-de crer novamente naqueles milagres que servem só para si e nos quais ele sabe acreditar.
Afinal, na Europa, não há senão casos particulares de europeus: o caso russo, o caso alemão, o caso inglês, o caso francês, o caso português, o caso espanhol, etc. Os diversos e determinados casos da Europa. Os diversos, determinados e legítimos casos da Europa.
Por seu lado, Santana Dionísio, em 1938, referia: verdadeiramente, a Europa nunca constituiu um conjunto fraterno, uma aliança moral. A sua história, pode dizer-se, só nos fala de mal-entendidos, de propósitos, de destruição, de brutalidades. E no entanto, na sua mais íntima estrutura espiritual, nos povos que ela abrange (mas não abraça), há, indubitavelmente, alguma coisa de comum, alguma coisa com um lusco-fusco de consciência (análogo ao das cidades gregas que se digladiaram até se perderem) de que o destino de cada um depende do destino de todos.
Esse alguma coisa de comum não provém, parece-nos, pelo menos essencialmente, nem da verificação, tantas vezes feita, nas guerras políticas e aduaneiras, de que a economia europeia é solidária, nem do instinto gregário que o choque com outros continentes poderia suscitar. A proveniência, parece-nos, dever ser procurada algures, sem ser nas vísceras empenhadas no sustento e na ânsia de domínio. Queremos dizer: o que nos permite ainda usar a palavra Europa como exprimindo alguma coisa de efectivamente concreto, real, é o sentimento obscuro, mas entranhado, em todos os povos do velho continente, de que eles criaram uma civilização espiritual sui generis, que eles têm uma maneira sua, metafísica, de encarar a vida, a pessoa humana, as relações sociais, e dum modo geral todos os problemas fundamentais que constituem o que hoje se diz por uma só palavra: cultura. Só isso (e nenhuma razão poderia ser mais forte) não consente que se diga que a "ideia" de Europa é um simples "flatus vocis".
Finalmente, para Abel Salazar, a Europa actual ... como a Grécia de outrora, é um conjunto em que a Nação substituiu a "cité". Este conjunto de nações possui uma unidade de civilização, a civilização europeia.
Este conjunto, estruturado com o conceito orgânico que a Europa historicamente elaborou, tende a ultrapassar este conceito. A unidade de civilização procura a unidade política; simplesmente o novo conceito não está definido: só a elaboração histórica do futuro o poderá definir. Este conceito é, evidentemente, antagónico com o de Nação, como outrora, na velha Grécia, o conceito de nação, em potência, era antagónico com o de "cité".
Como a Grécia e Roma, igualmente a actual Europa está enclausurada num dilema; porque ultrapassar o conceito de Nação, seu conceito orgânico, é destruir o actual Sistema Histórico. Por outro lado, manter o conceito de nação é petrificar a história e acentuar o contraste com a unidade de civilização. Nesta unidade está em germe, potencialmente contido, um novo conceito e, portanto, um novo Sistema Histórico. A Europa oscila assim, constantemente e por forma cada vez mais aguda, entre o conceito definido historicamente elaborado, e o conceito futuro, indefinido. Actualmente 'tende' para ele como para qualquer coisa que se desenhe nas brumas do horizonte, sem, no entanto, se poder precisar o que seja.
Por mim, prefiro tentar ser fiel a um saudável patriotismo que está tão longe das ridicularias patriotorrecas quanto daqueles nihilismos que continuam a denegrir este país. Por isso, aqui e agora, tenho medo e esperança ao mesmo tempo. Temo que a entidade politicamente independente a que se dá o nome de Portugal possa passar às brumas da memória se continuarmos a seguir as cábulas de alguns tecnocratas que persistem em confundir a governação com a engenheiral noção de gestão de meios sem discussão dos fins, o que nos pode levar àquela tradição do bom aluno que já foi praticada por alguns comissários da era filipina. Temo que, em nome da Europa e contra a Europa, se insinue este dessangramento bancoburocrático que vai minguando não só a autonomia criativa da vontade de sermos independentes, segundo a expressão de Alexandre Herculano, como aquela necessidade de um esforço viril e persistente para sermos de facto independentes, conforme a últimas palavras de intervenção cívica de Antero de Quental. Mas tenho esperança. Se temos de nos submeter para sobrevivermos, isto é, se temos de gerir dependências e de nos equilibrarmos nas ondas da interdependência, eis que, para podermos manter a autonomia, temos, além disso, de lutar para continuarmos a viver, de lutar sobretudo contra alguma falta de criatividade de nós mesmos, resistindo numa autonomia capaz de impedir a colonização, aprofundando a originalidade, a diversidade e a liberdade, contra o uniformismo.
De facto, seguindo a lição de Hannah Arendt, também estamos conscientes de que, para além das clássicas formas de domínio do homem sobre o homem - domínio de um ou dos poucos na monarquia e oligarquia e do melhor ou de muitos na aristocracia e na democracia talvez estejamos cada vez mais enredados na degenerescência de uma última forma de tal domínio, e talvez a mais terrível: a burocracia ou o domínio de um intrincado sistema de departamentos no qual nenhum homem, nem o único nem o melhor, nem poucos nem muitos, pode ser considerado responsável, e que poderia perfeitamente ser chamado de domínio de Ninguém. Temo que a Europa seja dominada por esta lógica de certo comunismo burocrático, conforme a expressão de Oliveira Martins. Esse Ninguém que critica a soberania do Estado, para soberanizar e estadualizar ainda mais, usurpando os nobres ideais da paz pelo direito e chegando ao despudor de se recobrir com o generoso nome de federação, quando parece negar o fundamental alento do pactum unionis, da reciprocidade, do poder que nasce do consensualismo e da horizontalidade, o qual, afinal, nos parece continuar a ser o único método possível para a realização da política, da cidadania e da democracia.
É com base nestes motes que talvez importe enfrentar a questão do desafio dos modelos da União Europeia face às liberdades nacionais. Não por causa das especulativas abstraccionices que, de forma etérea, procuram detectar as essências conceituais, mas, bem pelo contrário, tentando teorizar a partir dos factos, entre os quais está, sem dúvida, a nossa existencialidade como portugueses. Eu, pelo menos, tenho a paixão de ser português e, em nome dessa exigência, procuro cultivar a liberdade reflectida de querer ser europeu. Já o Professor Martim de Albuquerque demonstrou que a ideia de Europa articula-se na nossa história com a ideia de Nação e é apta a dar-lhe um significado que talvez agora esteja faltando a esta. Cita mesmo Feliks Gross, para quem a união europeia implicaria a existência de um novo tipo de cidadão, que juntasse ao patriotismo tradicional uma nova lealdade para com a comunidade europeia, dado que patriotismo e europeísmo não seriam contraditórios, mas complementares, que acordando-se na medida do possível um self-government e uma autonomia larga nos Estados nacionais e na União europeia, chegar-se-á a reconciliar estes dois conceitos, que a Europa do futuro deve ser a da diversidade, do respeito dos particularismos locais, regionais e nacionais e da sua protecção, porque de um prisma pluralista, a lealdade para com a comunidade europeia, longe de estar em conflito com o patriotismo, é o prolongamento lógico dele. No interior desta comunidade os escalões local, regional e nacional seriam como que andares de um conjunto arquitectónico. De facto, concordamos com Denis de Rougemont quando este proclama que a nação oculta a Europa como a árvore oculta a floresta, pelo que um europeu que ficou nacionalista pelo coração parece-se com uma árvore que continua a duvidar da existência da floresta. Mas não nos parece bom conselho, cairmos no vício oposto, daqueles que, clamando pela floresta, esquecem que esta é feita de árvores.
Por mim, confesso que estou farto daqueles europeístas post-facto que carregam toneladas de bibliografia estranha e que aqui continuam a traduzi-la em mau calão. Só posso pensar a Europa, pensando em português, porque só posso atingir o universal europeu através da minha diferença, enraizada na história. A não ser que se tente um revisionismo de repúdio da história portuguesa, negando a memória e o projecto do abraço armilar que, aliás, constitui o cerne do nosso símbolo nacional.
Alguns continuam a falar na Europa em verso épico numa espécie de sublimação do Império que já não há e como uma espécie de exorcismo para a nossa pequenez. Falam em Portugal no centro da Europa tentando responder àquilo que Raymond Aron observou que Portugal, reduzido ao seu território, não mantém nem projecto, nem ilusão. A Comunidade Europeia oferece-lhe uma via de retirada mais do que um novo começo. Outos insistem no mar. Lembram-se, como dizia Eça de Queirós, em 1867, que estamos apertados nos braços da Espanha, longe da Europa, sem um refúgio, sem podermos ser ouvidos se gritarmos, sem podermos ser socorridos e tendo só por vizinho o mar!. Acontece apenas que, por vezes, o velho mar está descrente da política da Europa, e já não acode às Nações. E continuando na senda de Eça, eis que outros dizem: se é necessário apoio, tomemos o braço à Espanha, e vamos como dois inválidos amigos por essa Europa pedir esmola e agasalho para ambos. E ainda, cuidado, que no caminho o inválido-Espanha não roube ou não mate o inválido-Portugal.
Não é pois de estranhar que aceite algumas das linhas de esperança assumidas por todos aqueles que assumem o lema de um tudo pela Europa, nada contra a nação. Também eu quero seguir a esperança de Hannah Arendt no sentido de se mudar o presente conceito de Estado e os únicos rudimentos que vejo para um novo conceito de Estado podem ser encontrados num sistema onde o poder não venha nem de cima para baixo nem de baixo para cima mas que seja dirigido horizontalmente de modo que as unidades integrantes do mesmo ponham freios e controlem mutuamente os poderes. Um conceito que, no plano das relações externas levaria a uma autoridade não supranacional, mas sim internacional, dado que uma autoridade supranacional seria ou ineficaz ou monopolizada pela nação que fosse por acaso a mais forte, e assim levaria a um governo mundial, que facilmente se tornaria a mais assustadora tirania concebível, já que não haveria escapatória para a sua força policial global - até que ela por fim se despedaçasse. Que no plano interno, exigiria uma nova forma de governo, marcado pela criação de uma série de espaços públicos de lugares de trocas de opinião onde seja possível um processo auto-selectivo que agruparia a elite política verdadeira de um país, mas uma elite aberta, onde poderiam entrar todos os que se interessassem pelos assuntos públicos, esse sonho organizacional que tem vindo a ser destruído directamente pela burocracia dos estados ou pelas máquinas dos partidos.
Tal como Hannah Arendt, também não advogo a noção de governo mundial nem a de cidadania mundial, como as defenderam certos idealismos liberais. O que se propõe é tão só um horizontalismo que implique uma dupla cidadania: a das pertenças locais, regionais e nacionais e a pertença à oikoumene, as quais seriam complementares.
Nesta base, julgo que é possível conciliar as liberdades nacionais com o grande espaço que o projecto europeu pretende entificar, se assumirmos o modelo de ideal histórico concreto, que, segundo Jacques Maritain, constitui, não uma utopia, mas uma simples imagem prospectiva, um tipo de civilização capaz de mobilizar a realidade. Aquela essência de ideal realizável, aquela essência capaz de existência e chamando à existência, não como obra feita, mas como obra a fazer-se, implicando uma ordem efectiva para a existência concreta e dialogando com as circunstâncias.
Os exactos princípios epistemológicos que estiveram na base do relativismo aristotélico e que o casuísmo moral do tomismo e da neo-escolástica peninsular fizeram difundir no humanismo europeu e ocidental, nesse que acredita e ousa praticar o fundamentalismo, resistente e persistente, da dignidade da pessoa humana, mesmo que seja contra as forças que dizem servir a utopia da humanidade. As utopias acabam sempre por se assumir como uma forma de fuga ao real, reflectindo uma atitude de desespero. Elas são estáticas relativamente à dinâmica da história e constituem mero exercício mental de alguma coisa que se pensa, mas não se vive. São, no fundo, uma negação do mundo e uma negação da esperança, pela cedência a um dever-ser que nunca pode-ser.
Eu, pelo menos, acredito que o conceito português de nação, ao contrário de outras perspectivas, assumidas e decretadas por certas potências europeias, não é incompatível com a ideia de Europa que interessa aos europeus de hoje e de amanhã. Daquela Europa mosaico, que só pode consensualmente unir-se, se, antes disso, não temer dividir as uniões que lhe foram impostas pela razão da força.
Com efeito, na senda de Rougemont, também quero defender a Europa como a pátria da discórdia criativa e o homem europeu como aquele que procura a singularidade, a diferença, a ideia de variar, de diferir ou de inovar, esta maneira de opor o indivíduo ao todo, e de atribuir o absurdo não ao eu que a sente, mas ao mundo ou à sociedade, eis o que é propriamente ocidental. Isto dá o revoltado, o objector de consciência, o revolucionário ou o reformador; isto dá, nas ciências, o investigador, e o inovador nas artes. Também quero definir a Europa como esta parcela do planeta onde o homem se põe constantemente em causa e quer mudar o mundo, de tal maneira que é aí que ganha sentido a sua vida pessoal. A Europa como uma espécie de revolução permanente, revolução conduzida pela consciência humana contra todas as potências que oprimem ou que negem um eu responsável e distinto. Essa Europa onde a liberdade é o bem mais precioso. Pois a ideia mais exaltante de facto para os Europeus de qualquer nação e de qualquer classe, de qualquer crença e de qualquer descrença. O apelo à liberdade, a reivindicação da liberdade (qualquer que seja o sentido que se dá à palavra), é sem dúvida nenhuma o tema afectivo mais generalizadamente europeu, o mais comum a todos os homens do nosso continente, e pode ver-se nele o mais próximo equivalente, na nossa civilização profana, da invocação do sagrado.
Mas não posso deixar de reconhecer, como salientava Albert Camus, que a Europa tem vivido sempre nesta luta entre o meio-dia e a meia-noite, uma confrontação entre o equilíbrio e o desequilíbrio, as lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrânico, traduzindo-se em a comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade reflectida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas.
Os efeitos do ano 1989 vão, entretanto, fazer sentir-se de forma existencial no quotidiano dos europeus. Primeiro, a reunificação alemã, concretizada em 3 de Outubro. Depois, a tentativa de estabelecimento da casa comum europeia, principalmente com a reunião em Paris do CSCE, onde foi assinada a esperançosa Carta de Paris para uma Nova Europa (19 a 21 de Novembro). Isto é, quarenta anos depois do discurso do Salon de l'Horloge, modificava-se radicalmente o terreno em que assentara o projecto europeu. A Europa dos Seis da Mitteleuropa, que apenas visava um duradouro tratado de paz entre os tradicionais rivais das margens do Reno e os países que naturalmente sofriam com essas aventuras bélicas, depois dos sucessivos alargamentos, primeiro, ao Reino Unido, à Irlanda e à Dinamarca, e depois, à Grécia, a Portugal e à Espanha, reparava agora que apenas era parcela da Europa. O gradualismo anterior marcado pela firme intenção de recusa da política de hegemonia, deparava-se agora com o fulgor de uma Alemanha renascida que contratava directamente com Moscovo a retirada das forças soviéticas e que até tratava de reconhecer unilateralmente a Eslovénia e a Croácia, como sucedeu em 23 de Dezembro de 1991, dois dias antes da bandeira soviética ser arreada no Kremlin. Bem tentava François Mitterrand proclamar a necessidade de uma confederação europeia com Moscovo, conforme ocorreu numa reunião em Praga com intelectuais europeus, em Junho de 1991. Mas era o próprio Vaclav Havel que logo lhe respondia, salientando que esse tipo de salto nunca pode ser concretizado sem a participação dos Estados-Unidos da América e do Canadá.
67. 1992: Maastricht
O modelo de construtivismo europeu leva assim a que em 7 de Fevereiro de 1992, os então 12 Estados Membros da Comunidade Europeia subscrevam em Maastricht o novo Tratado da União Europeia, quando corria o segundo mês da primeira presidência portuguesa da Comunidade Europeia e a República Portuguesa vivia o clímax da era de Cavaco Silva, bem entrosada com ritmo de social engineering da Europa delorsiana e orgulhosa na qualificação de bom aluno desse desafio europeu. O texto do tratado assumia-se como uma intrincada floresta de um barroquismo legiferante marcado mais pelo ecletismo do que pela síntese ou pela emergência: 300 artigos, 17 protocolos e 33 declarações anexas. Um edifício feito de pedras desconexas e de contraditórios espíritos legisladores, insusceptível de unificação pela via doutrinal ou jurisprudencial e tão só passível de congregação por uma espécie de jurisprudência burocrática, através de muitos pacotes de circulares e despachos interpretativos, típicos de um modelo de governo administrativizante. Por outras palavras, um sistema mais propício ao reforço do papel dos comissários e seus dependentes, do que ao gradualismo da jurisprudência dos tribunais europeus.
Maastricht, depois da CECA, do mercado comum e do Acto Único, onde, em vez da harmonia da árvore, preferiu a arquitectura pós-moderna de um templo, transformando a entidade que dava corpo ao projecto europeu num objecto político não identificado, conforme a caricatura de Jacques Delors. Num corpo estranho, feito de restos de modelos, onde se foi misturando o gradualismo com o ímpeto construtivista, bem como os objectivos federais da integração com os objectivos confederacionistas da cooperação política. Os juristas bem tentaram encontrar o conceito para o caso concreto e quase todos ficaram numa zona de fronteira entre a federação e a confederação, não faltando os que apelaram à parceria, ao condomínio ou à própria cooperativa. Na prática, acabou por preponderar um outro modelo, mais voltado para o hibridismo da conciliação entre o princípio da integração política e o princípio da cooperação política intergovernamental que utiliza a imagem do templo, conforme a proposta de Pierre Boissieu, segundo a qual a união assentaria em três colunas ou três pilares: o primeiro seria o da Comunidade, alargada a novas áreas; o segundo, seria a política externa e de segurança comum; o terceiro, a segurança interna e os assuntos de justiça.
A redacção do projecto de tratado foi preparada durante o ano de 1991, entre um primeiro semestre, de presidência luxemburguesa, e um segundo semestre, de presidência holandesa. A filosofia luxemburguesa, expressão directa do eixo franco-alemão, chegou a incluir o princípio da consideração da construção europeia como um processo gradual conducente a uma União de vocação federal. Já a presidência holandesa, tentou não só a conciliação com o unionismo, mas também com uma perspectiva simultaneamente mais atlantista e mais liberal. No texto final reflectiu-se esse hibridismo, desaparecendo, sobretudo, a invocação federal. E na letra do tratado ficou apenas a boa intenção de uma União cada vez mais estreita entre os povos da Europa que respeita a identidade nacional dos Estados membros.
70.Os efeitos do fim da guerra fria
Os novos desafios de 1989-1990. podem não ter derrotado o projecto europeu, mas mudaram as circunstâncias que o corporizavam, principalmente pelo desaparecimento do federador passivo, com a implosão da URSS. Com efeito, é depois de 1989 que se concretizam as mais drásticas mudanças do mundo ocorridas depois da Segunda Guerra Mundial, nomeadamente pelo fim da guerra fria. Mas, em vez da casa comum, parecia estar a acontecer um regresso a muitas das feridas anteriores aos tratados de paz das duas guerras mundiais deste século. Depois da reunificação alemã, renasceu a balcanização. Depois do fim do comunismo, voltaram as questões político-religiosas e o clássico confronto de civilizações e quase regressamos ao ambiente da Guerra da Crimeia, para não falarmos em 1848 e nas inacabadas situações das minorias que aspiram a uma primavera dos povos, desses povos sem história que sempre circularam nas bordas dos impérios centrais, por entre os cinturões de populações mistas. E lá voltámos a ter que reler a literatura do tempo da Santa Aliança e do sistema Metternich, recuperando manuais de relações internacionais e de direito internacional de há cinquenta e cem anos. Porque as ententes, as triplas alianças e as próprias pentarquias ameaçam, com o seu cortejo de Estados directores e de Estados secundários, de acordo com a regra da hierarquia das potências.
A literatura épica do fim do comunismo cedeu, aliás, lugar a um certo desespero. Foi a derrapagem da Guerra do Golfo, com a questão não resolvida pelos tratados de paz posteriores a 1914-1918, bem como a grande decepção da Jugoslávia, onde a nova Alemanha democrática, esquecendo-se da dimensão europeia, retomou, pela via diplomática, o que o Reich tinha feito pela violência. Regressou-se àquela literatura que procura limitar a Europa a Leste... Otto Molden afastava da Europa a Ucrânia, a Bielo-rússia e Rússia, mas incluindo a Polónia e os países bálticos. Krzystof Pomian falava num limite que passaria a Leste da Finlândia, dos países bálticos, da Polónia, que atravessaria a Ucrânia, contornaria a Hungria e cortaria a Jugoslávia em duas, a Sérvia de um lado, a Croácia de outro, isto é, que remeteria para o outro lado, a igreja ortodoxa. Mas os mesmos que assim pensam, em nome da conveniência, apelam à integração da Turquia e à associação do Magrebe....
O redesenho da Europa não passava pela cultura nem pela política, mas mais pelos banqueiros e pelos macro-economistas. Em vez de uma Europa a recomeçar pela cultura e repolitizar-se, eis que a casa e o mercado procuravam ocupar o lugar da polis.
O controverso texto do Tratado de Maastricht, tão minuciosamente preparado pelos mais altos peritos, apoiantes das burocracias polidas e civilizadas do nosso tempo, e tão cuidadosamente retocado e aprovado pelos supremos representantes e dignitários dos nossos governos, que apenas estacionava nos meandros da diplomacia, da tecnocracia e da vida académica, foi, contudo, condenado a descer ao nível dos comentários do homem da rua, perdendo a ganga quase sagrada em que estava emoldurado e passando a ficar dependente dos caprichos de uma multidão, constituída por uma esmagadora de pessoas que, mesmo quando o liam, o não entendiam. Aliás, em política, podemos saber o que certos textos querem, mesmo que vocabularmente os não entendamos, da mesma maneira como podemos não saber o que querem e para onde vão os autores de certos discursos, apesar de podermos dominar gramaticalmente todo o respectivo conteúdo. Quanto ao texto de Maastricht, mesmo aqueles que estavam tecnicamente preparados para o ler e entender, chegaram à conclusão que o dito, para poder ser consensualizado pelas diversas potências políticas, económicas e sociais, teve de encher-se de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, autênticos buracos negros, que os respectivos executores, os políticos e os tecnocratas, podiam concretizar de formas contraditórias. Mas o que, sobre Maastricht, esteve em causa nos debates políticos que antecederam os referendos de 1992, não foi tanto o texto do tratado, mas antes o pretexto e o contexto do mesmo, onde foi menos contestada a letra e mais o espírito, ou ausência de espírito, que lhe deu corpo. Sobretudo, a questão de saber se tais buracos negros seriam executados pelos euroburocratas e pelos europarlamentocratas ou, pelo contrário, pelos representantes directos do eleitorado dos vários povos europeus. Porque Maastricht, em vez de um catálogo de herméticas juridicices e de clássicos princípios gerais, escolasticamente susceptíveis de desenvolvimento pelas consabidas técnicas da hermenêutica jurídica, era algo que estava condenado a depender do acaso e da necessidade das circunstâncias. E aquilo que os povos da Europa decidiram foi da impossibilidade dos eurocratas poderem invocar a passagem de um cheque em branco em torno da construção europeia.
Com efeito, a apaixonada discussão pública sobre a matéria obrigou a que a Europa Confidencial que havia elaborado o referido Tratado de Maastricht tivesse sido surpreendida nas intimidades e concupiscências das suas antecâmaras. Até então, a Senhora Dona Europa, mais conhecida por CEE, enroupada que estava pelo barroquismo conceitual dos macropolitiqueiros, dos macro-economistas e dos macro-monetaristas, parecia algo de inacessível a quem não pudesse controlar o dicionário dos manuais de planeamento económico. Tal Europa estava cercada pelo smog de um saber hermético, a que, por comodidade, chamaremos europês, algo que os pretensos iniciados guardavam a sete chaves, para conservarem o regime de mandarinato. Tratava-se, contudo, de um saber que nada tinha de esotérico, dado que qualquer homem comum, dotado de um dicionário de siglas conceituais, se tivesse a paciência de consultar a letra miúda de uma série de dossiers, sempre podia aceder à essência das questões em causa. Mas, depois dos referendos sobre o Tratado de Maastricht ocorridos na Dinamarca e em França, a Europa talvez tenha começado a perceber que o europês da Europa confidencial quase nos conduzira ao desastre. Afinal a Europa da superburocracia dos comissários, adjuntos e dependentes, bem como da superparlamentocracia de Estrasburgo, ambas com os seus euromarajás e respectivas eurocastas, não conseguiu aguentar o embate dos populismos.
A história da construção da unidade europeia da segunda metade do século XX pode, aliás, ser contada em meia dúzia de linhas, sem recorrermos às gastas citações que aparecem nos folhetos de divulgação e propaganda emitidos por Bruxelas, a essa perspectiva oficiosa da eurocracia sobre o nascimento do projecto europeu, onde certo revisionismo histórico estabelece uma espécie de linha justa da construção do modelo. Essas vulgatas falam, por exemplo, na proposta de criação de uns Estados Unidos da Europa apresentada por Winston Churchill, no discurso de Zurique, de 19 de Setembro de 1946, mas não inserem a mesma na linha política tradicional britânica que apenas queria federar a pequena Europa - mantendo-se de fora - , privilegiar o atlantismo e manter a Commonwealth. Refere-se também a criação da OECE em 1948, tendo em vista a gestão do Plano Marshall, lançado no ano anterior, mas acentua-se o aspecto da integração económica internacional, desdenhando-se do confronto entre Moscovo e Washington, no processo da guerra fria e até se cita desgarradamente a instituição do Conselho da Europa pela Convenção de Londres de 1949.
Convém insistir que a antiquíssima ideia de reconstrução de uma unidade política da Europa, de certa maneira, concretizada no plano político pelo Império Romano e no plano político-religioso, pela Igreja Católica Apostólica Romana durante a Idade Média, sempre esteve na base dos grandes projectos de Império desencadeados pelas grandes potências europeias da Idade Moderna e Contemporânea. Foi este sonho que animou a Espanha de Carlos V e Filipe II, a França de Napoleão Bonaparte e as várias Grandes Alemanhas, lideradas pelos Habsburgos, pela Prússia ou por Adolfo Hitler, já que os ingleses, conscientes das respectivas vulnerabilidades no plano continental, sempre preferiram conter uma das outras potências no teatro europeu, para poderem continuar a expandir-se noutros continentes. Acontece apenas que este choque de Impérios conduziu a mortíferas guerras na Mitteleuropa que, neste século, produziram aos grandes desastres humanos que constituíram as duas guerras mundiais.
Compreende-se como depois de 1945 se procurou um efectivo tratado de paz entre as duas principais potências da Mitteleuropa, a França e a Alemanha, a fim de se destruírem as causas dos potenciais conflitos. Assim, surgiu, em plena guerra fria, a ideia de um mercado comum do carvão e do aço que, em 1951, com o Tratado de Paris, vai conduzir à criação da primeira das Comunidades Europeias, a CECA. A geração que concretizou este modelo, se vivia a euforia do planeamentismo económico, se tinha consciência que os problemas económicos só se resolviam com soluções económicas, não se podia, contudo, integrar na categoria dos meros tecnocratas. Os pioneiros da Europa comunitária eram essencialmente animais políticos, isto é, sabiam que os problemas económicos não eram apenas problemas económicos, adoptando o método de curar o económico através do económico, mas não apenas através do económico, para parafrasearmos Emmanuel Mounier. Eles sabiam que a economia tinha de ser conduzido pela política, que a política tinha de ser norteada por ideias e que a superação das questões sociais da Europa de então tinha de ser comandada por um sonho. Só que ensaiaram realizá-lo, não pelos métodos da guerra, mas através da persuasão política, da negociação diplomática, do planeamento, da tecnocracia e da burocracia. E passaram do plano das boas intenções, desencadeando o processo de uma realidade nova: a Europa Comunitária. Em 1957, depois dos fracassos da CED e do projecto da Comunidade Política Europeia, já não bastava a restrita integração sectorial do carvão e o aço. Era preciso um mercado comum, com livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais e uma unificada política agrícola, bem como uma conciliação no plano da energia atómica. E assim surgiu a CEE e a EURATOM, com o Tratado de Roma. O modelo atingia o ponto de não regresso e estava suficientemente maduro para alargar-se, dos seis Estados iniciais, a todos os vizinhos europeus que se identificassem com o núcleo duro no plano político, económico e social. Assim, algumas décadas volvidas, além da França, da Alemanha/RFA, os pilares do processo, da Itália, e dos três parceiros do Benelux - Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo -, eis que vão chegando, depois de muitos percalços, o Reino Unido, a Irlanda, a Dinamarca, a Grécia, o nosso Portugal e a Espanha, sem esquecer o alargamento à própria Alemanha/RDA, depois da queda do Império Soviético.
Deste modo, estávamos, nas vésperas de 1993, com um mercado comum prestes a transformar-se no mercado único e a discutir a ratificação do Maastricht, que, além do mercado único, visava criar uma união política efectiva. Só que nos bastidores do projecto europeu já não estavam as nobres figuras dos pais-fundadores, mas os eurocratas. Toda uma fauna de pretensos filhos de algo pela via da contiguidade burocrática e partidocrática. Todos eles exímios na metodologia, mas parcos no sonho, que, pouco a pouco, foram usurpando as decisões fundamentais, tanto através dos euroburocratas de Bruxelas, como dos europarlamentocratas de Estrasburgo. Uns viciados nas burocratices e outros na politiqueirice e todos com vencimentos de luxo, ambos se enredaram nos ares condicionados das respectivas torres de marfim supranacionais, perdendo-se nos corredores dos grupos de pressão e das partidocracias. Assim, o grande sonho europeu dessangrou-se. E a eurocracia burocrática e parlamentocrática, afastando a Comunidade do homem comum, deixou de entender a função de governar e de representar. Felizmente, o debate em torno de Maastricht, protagonizado pelos referendos da Dinamarca e da França, onde as campanhas pelo não foram assumidas pelos párias do sistema político estabelecido, fizeram despertar os envelhecidos políticos da Europa que tiveram de arregaçar as mangas e combater no terreno face to face. Talvez a Europa de Monnet, Schuman, Adenauer e De Gasperi tenha sido salva in extremis, num momento em que o sonho de unidade política da Europa, depois do fim do Império Soviético, tinha a possibilidade única de se estabelecer naquela casa comum que vai do Atlântico e para além dos Urales, talvez até Vladivostoque, juntando os herdeiros do Império Romano do Ocidente com os também europeus herdeiros do Império Romano do Oriente, desde sempre liderados pelos russos. O desafio que os europeus enfrentam, nesta última década do século XX, talvez constitua um dos mais importantes reptos políticos da história da humanidade. Seria trágico que essa grandiosa missão ruísse por questiúnculas politiqueiras. Seria ridículo que o europeísmo se reduzisse ao discurso europês.
A Europa é uma democracia de muitas democracias. Não é uma super-estrutura comissária, directamente irresponsável perante os povos - uma espécie de sacro-império burocrático em regime de despotismo iluminado, mesmo que com boas intenções construtivistas -, nem um super-congresso multitudinário sem respeito pelas democracias vivas e directas dos vários cantões nacionais.
Os avisos da Dinamarca e da França, demonstravam que a democracia, para além dos democratas, precisava dos povos e que os povos só confiavam em políticos. A Europa não pode nascer de cima para baixo, com émulos de Bonaparte, Metternich ou Bismarck. A Europa que temos, bem pelo contrário, foi criada pela multiplicidade unitária do dividir para unificar. Além disso, por melhores que sejam os euroburocratas e os europarlamentocratas, nenhum deles, por mais genial que seja, ou todos eles juntos, por muitos e bons que sejam, conseguem pôr os homens concretos e as realidades dos povos ao serviço daquilo que eles decretam como processo histórico.
Diremos que, com o debate em torno de Maastricht, quem ganhou foi a Europa, que assim teve a oportunidade de perceber que o europês não serve, porque a Europa só pode realizar-se através dos homens comuns. Aliás, a democracia é precisamente a decisão dos povos, através da voz autêntica dos homens concretos que os integram, nos momentos excepcionais. Só nos intervalos é que os governantes e os representantes podem falar em nome deles, mas dentro do mandato global que lhes foi atribuído. Ai dos políticos que julgam que em vez de um pacto de associação com os governos e os parlamentos, os povos constituíram pactos de sujeição, susceptíveis de levarem à edificação de Leviatãs, sempre desejosos de homens novos e de povos novos. Quem manda, devem ser os são os que cá estão.
Aliás, os interesses portugueses beneficiaram com o sim, mas dos europeus face a Maastricht. Primeiro, porque um explícito não, se não acabava com a Europa - o Mercado Único de 1993 tem a ver com o Acto do Luxemburgo e não com Maastricht -, iria produzir um imediato choque entre os egoísmos das principais potências do actual contexto europeu, a Alemanha, a França e o Reino Unido, secundarizando os pequenos e médios Estados. Voltaríamos à clássica distinção entre Estados Directores e Estados Secundários, numa balbúrdia, donde, a prazo, apenas beneficiariam as médias potências capazes de liderança no pelotão da divisão de honra, como agora, muito eufemisticamente, chamamos à tradicional segunda divisão do nosso futebol. Com este sim, mas, deu-se uma politização do processo e desvendaram-se muitos dos mistérios da antecâmara, muito especialmente os reais conflitos internos da euroburocracia e da europarlamentocracia, contribuindo-se para a superação do equilíbrio instável, com a consequente procura de uma nova ordem europeia.
Como cidadão de uma polis que, por acaso é a mais permanecente de todas as unidades políticas da Europa a que chegámos, aceito participar nas oscilações da balança da Europa porque o modelo de organização política dos textos fundamentais da União Europeia me garante a conservação daquelas liberdades nacionais que nos deram direito a república através da concretização do reino, no século XII. A Europa em que eu acredito, a Europa que leio nas entrelinhas dos pais- fundadores, é uma Europa que foi feita contra os erros políticos que levaram ao permanente confronto de impérios europeus. Daqueles impérios europeus que sempre foram uma degenerescência das poleis, daqueles impérios que, com o absolutismo, em nome da soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível e do leviatânico Estado Moderno expropriaram os tais reinos, os únicos legítimos herdeiros da civitas da República Romana e da polis ateniense.
A minha república, herdeira do regresso à política que ocorreu nos séculos XII e XIII, inspirada em Aristóteles e Cícero, se revoltou contra a dominância do Papado e do Imperium e proclamou que rex est Imperator in regno suo. O reino de São Tomás e do nosso Infante D. Pedro, o reino dos comuns, feito de um príncipe com toda a comunidade da sua terra. O tal reino que o mesmo Duque de Coimbra visionava indutivamente, como um concelho em ponto grande. Este reino tinha um Príncipe, tinha um poder supremo, uma vontade de independência. Mas o poder supremo era da mesma natureza dos poderes que lhe estavam abaixo, onde o vértice era apenas uma parte da pirâmide do poder da polis, uma parte que, sendo parcela do todo, era, não obstante, representante do próprio todo. Acontece que este reino foi, a partir do absolutismo teocrático, expropriado pelo renascimento do império, num processo que passou da república teocrática dos luteranos, calvinistas ou cromwellianos, os primeiros ensaios do terrorismo totalitário do estadualismo, ao L'État c'est moi dos despotismos esclarecidos, continuando a mesma natureza despótica, quando se substituiu o rei absoluto pelo povo absoluto, da Revolução francesa à Revolução soviética.
Os Estados a que chegámos na Europa das potências e dos Estados em movimento, ainda continuam inconscientemente feudalizados por projectos imperiais frustrados. Da Espanha de Carlos V, à França de Napoleão. Da Alemanha de Hitler à Inglaterra de outras procuras de Império no além mar. Da Rússia sonhando-se polícia da Europa a outros impérios espirituais ou económicos. Estes modelos talvez contrariem aquilo que a Europa do pós-guerra tentou ser. Essa outra coisa que ousou procurar a esquecida unidade da respublica christiana na diversidade dos reinos, dos povos e das nações. Essa tentativa de escrituração de um novo capítulo para além da dinâmica da vontade de poder dos Estados Directores em confronto, instrumentalizando uma multidão de Estados secundários. Esse sonho que tentou refazer os Estados à maneira do chamado regresso da política, do dividir para unificar. Promovendo uma descolonização interna da Europa, para reconstruir a casa comum, em torno do que era efectivamente comum.
Como português, fiel às Cortes de Coimbra de 1385, às promessas traídas das Cortes de Tomar e à solução de autodeterminação pela vontade nacional concretizada no dia 1 de Dezembro de 1640, acredito na Europa como a república universal a que temos direito. Acredito na Europa da respublica christiana - como o defendeu o humanismo cristão - acredito na Europa dos ius gentium - como o defenderam os estóicos e o humanismo laico dos projectistas da paz. Acredito na Europa que os democratas-cristãos, os sociais-democratas, os conservadores reformistas e os liberais éticos começaram a reconstruir face às últimas tragédias do Leviatã e do Behemot, como as conhecemos na Segunda Guerra Mundial. Não tenho, portanto, medo da Europa. Não tenho o receio atávico de certo conservadorismo britânico, com medo da Invencível Armada. Não tenho complexos do cordão sanitário luterano, como certos nórdicos da Europa enriquecida continuam a alimentar, para não falar nalguns descendentes dos huguenotes franceses que por aí circulam com outros nomes.
Se os tratados de Maastricht e Amsterdão foram coisas péssimas, talvez tenham sidos coisas menos péssimas que outras mais péssimas alternativas que, nessas encruzilhadas, se nos apresentavam. Com efeito, seria bastante mais péssima aquela alternativa que nos conduziria a um qualquer regresso ao confronto dos três impérios vencedores da história recente - o Reino Unido, a Alemanha e a França.
Haveria a tragédia de uma verdadeira Europa de muitas velocidades, onde os que menos poderiam correr regressariam à condição de Estados Secundários, feudalizados ou satelitizados pelas potências directoras, onde o chamado sistema Metternich retomaria lugar de comando. E aí basta recordar a terrível consequência de tal modelo em Portugal - a guerra civil de 1828-1834.
Julgo que o principal objectivo estratégico pelo qual os portugueses devem lutar é o da descolonização interna da Europa. Que todos façam, sem defenestrações, através da revolução do poder dos sem poder, o que nós praticámos em 1640. Mas sempre através de um conceito de casa comum europeia. Não me repugna, portanto, sacrificar o conceito absolutista de soberania ou a perspectiva geométrica de Estado moderno. Desde que se garantam os reinos, os povos e as nações; desde que se pratiquem as antiquíssimas virtudes da defensão e conservação das comunidades históricas.
A União Europeia pode não tornar-se inimiga dos nacionalismos libertacionistas, como alguns europeístas herdeiros do iluminismo geométrico e construtivista andam por aí a proclamar de forma politiqueira. Julgo, pelo contrário, que nem sequer poderá haver autenticidade na construção europeia se a Europa não se assumir como nação das nações, com a consequente autodeterminação das nações proibidas por impérios e pan-nacionalismos europeus. O nacionalismo português, por exemplo, não é irmão gémeo do nacionalismo germânico ou francês. Nós que somos resistência a partir de uma separação, como podemos comparar-nos a nacionalismos que ainda são expansão de certos núcleos étnicos dominantes, através da supressão de certos direitos à secessão ou à diferença, num processo chamado de unificação? Comparar os lombardos com os franceses, os irlandeses com os defensores da Anschluss e os que queriam uma España una, grande y libre, de mar a mar, sin Portugal ni Gibraltar com os que sempre disseram que de Espanha, nem bom vento nem bom casamento, é o mesmo que colocar os nossos sebastianistas como emissários de Olivares ou continuar a dizer, muito estalianiamente, que o nacionalismo ucraniano era agente do nazismo.
O reino e a república são deste mundo, onde o homem deve voltar a ser a medida de todas as coisas e onde nada do que é humano pode ser alheio ao político. O Império é que é do outro. É daquilo que só Deus tem. Por isso, importa proclamar que devemos expurgar do Estado a que chegámos tudo o que não é do homem, todas aquelas religiões seculares dos Impérios e Leviatãs que, em nome de essências e nominalismos, tanto desumanizam o Estado como ofendem o divino, quando transformam as ideologias em sucedâneos do transcendente. Temos de ter os pés assentes na terra e o coração no mais além. Não podemos ficar a meio caminho, servindo coisas etéreas que são o produto dos nossos fantasmas. Assim foram os impérios que ofenderam aquele verdadeiro Império que só Deus tem. Assim continuam a ser certas concepções de Estado moderno, filhas do despotismo esclarecido e das teocráticas razões de Estado.
Pretendo apenas sublinhar que andam para aí, muitas concepções de uma certa Europa desumana que, em nome de um sacro-império tecnoburocrático, muito iluminista e desejoso de despotismo, pretende continuar na senda dos senhores da guerra, a destruir as poleis, as civitates e os reinos, imitando as formas do Estado moderno primitivo. Contra essa degenerescência estatolátrica, mesmo que revestida com as peles do cordeiro federativo, têm que estar contra os autênticos europeístas. Mas não confundamos a nuvem com Juno, não caiamos no engodo do Leviatã; não balbuciemos, sob o nome de nacionalismo, as teses dos irmãos inimigos imperialistas, desses que pretendem restaurar sistemas Metternich, embrulhando o cacete do czar entre o pietismo de falsas Santas Alianças e de falsas teologias de mercado.
Julgo que o modelo tecnoburocrático já perdeu o elan vital. O pós-Maastricht e o pós-Amsterdão da Europa que há-de ser talvez volte a depender de cada um de nós. E depois de tudo o que se passou, desde o não da Dinamarca ao sim dos irlandeses, desde o sim, mas dos franceses, ao deixa ver no que isto dá dos britânicos, há muitos sim que à Europa podem ser não e certos não que à mesma Europa podem dizer sim.
Certo europeísmo pós-maastrichtiano acabou, com efeito, por enredar-se nalguns fantasmas hegelianos, onde uma pretensa ideia de Europa se volveu, qual Weltgeist, no advento de Deus à terra, num devir, num vir a ser tão indiscutível quanto a divina providência. Herdando do progressismo, a técnica do construtivismo, o processo aceita a existência de um destino manifesto, onde, em nome da construção, parece bastar a invocação do sempre mais Europa. Um típico gnosticismo que logo nos tratou de dividir entre os bons e os maus europeus, onde os bons eram todos os que aceitavam sem discussão a mística do conceito criador, enquanto a legião dos maus era constituída pelos que, mesmo sendo europeístas, não circulavam pelos encomiásticos argumentos oficiosos. Só os bons poderiam, aliás, participar nos desígnio secreto dos pontífices despoticamente considerados como os únicos intérpretes autorizados do texto e das próprias ideias dos pais-fundadores. O sonhos destes vai assim dessangrando-se por entre as glosas autorizadas dos discípulos funcionários, apenas eleitos pela iniciação. Eis o sacro império burocrático, feito daqueles detentores de um posto de vencimento e que, a si mesmos, se consideram como os únicos iluminados pela justa ideia da construção europeia. Ei-los feitos missionários, auto-investidos pela mandarinal missão da conquista da felicidade para todos.
O exacto contrário destas degenerescências europeístas está nas contracorrentes eurocépticas e no anti-europeísmo populista. Correntes que nascem tanto à direita como à esquerda, tanto entre socialistas como entre liberais, e que levaram Altiero Spinelli a considerar que daqui em diante, a linha de separação entre as forças do progresso e do conservadorismo não será mais a linha tradicional entre a direita e a esquerda, mas entre os que utilizam o poder de que dispõem para promover a unificação europeia e os que o empregam com o fim de provocar a restauração da soberania nacional. Entre esses manipuladores do descontentamento, importa sublinhar a legião dos que consideram que os Estados a que chegámos constituem uma espécie de fim da história na construção do político. Saliente-se que todos os estudiosos da política sabem que há sempre uma falta de autenticidade em qualquer proclamação soberanista. Contudo, os políticos também sabem os efeitos populistas que tem invocação federalista, sobretudo quando se manipulam os egoísmos nacionais.
95.O sim através do não
Foi bom que alguns povos da Europa tenham dito não àquilo que o establishment, o status in statu de uma grande aliança dos principais partidos, das confederações patronais e dos sindicatos institucionalizados lhe sugeriam. Talvez neste dia tenha recomeçado a Europa: a Europa dos povos, a Europa dos cidadãos, a Europa das nações. Daqueles povos, daqueles cidadãos e daquelas nações que não querem ser incluídos na segunda velocidade dos Estados secundários, nem condenados a andar a reboque de uma qualquer pentarquia de potências, sempre tentada pela ideia da locomotiva dos Estados directores. É evidente que, como português e como europeu, me congratulei com alguns desses não. Precisávamos que a funda de um qualquer David derrubasse a arrogância do Golias da tecnoburocracia.
96.Retomar o sonho dos pais-fundadores
Importa, contudo, reconhecer que esta Europa institucional que vamos tendo, se é formal continuadora do projecto dos Tratados de Paris e de Roma da década de cinquenta, talvez não continue integralmente fiel ao espírito dos fundadores desse formidável movimento de paz pelo direito que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial. Talvez tenha perdido muitos sentidos do gesto inicial. Os sonhos só se realizam através das circunstâncias. Os sonhos de quem pensou em plena guerra fria têm de voltar a ser sonhados depois do fim do comunismo. A Europa não está apenas nas margens do Reno nem acaba com o alargamento a certas zonas ribeirinhas do Atlântico e do Mediterrâneo. A Europa, neste fim de século, pode voltar a ser a ideia da Europa, pode ir da Ilha do Corvo a Vladivostoque. Pode juntar as Três Romas e todos os respectivos projectos de Renascimento. Pode e deve ser mais do que um mero processo de ultrapassagem dos contenciosos franco-alemão, britânico-continental ou hispano-central. Quem me dera poder vir a dizer ser a vez uma República Portuguesa, num qualquer dos anos que restam do século XX. Tem de ser uma vez a vez de um das nações-Estados mais permanecentes da Europa. Quando tivermos a liberdade de poder por dizer sim à autêntica liberdade europeia, mesmo dizendo não a anteprojectos de gabinetes eurocráticos. Quando deixarmos de nos sentir uma periferia a caminho da integração e voltarmos a assumir-nos como o próprio centro, tão europeus como qualquer outra parte da Europa. Quem me dera poder dizer ser a vez duma Europa mais livre que, abandonando a tentação dos Estados Directores, proclame que a unidade não exclui a diversidade e, muito menos, o orgulho das seculares franquias nacionais.
Uma nova espécie de organização política de um grande espaço inter-estadual e inter-nacional. Uma realidade nova capaz de quebrar as estafadas classificações das federações e das confederações, ultrapassando o ius intercivitates procedente do modelo da Paz de Vestefália, esse cuius regio eius religio destruidor da unidade da respublica christiana, e do regime da hierarquia das potências consagrado na Conferência de Viena. Porque, na democracia, o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido. Porque na democracia não há reis-sóis, individuais ou gabinetais que possam dizer L'État c'est moi. Na democracia, L'État c'est tout le monde, L'État c'est nous.A Europa somos nós. Os dinamarqueses, os portugueses, os irlandeses, os gregos e os muitos outros povos das Franças, das Alemanhas, das Espanhas, das Britânias, das Itálias e dos Benelux. A Europa não são apenas eles, os eurocratas, os parlamentocratas, e todos os cratas que temem as vozes irreverentes dos que não são moldáveis pelos unidimensionais partidos, sindicatos e patronatos, cada vez mais neocorporativamente enquistados no statu quo, esses estados que condicionam os Estados. Quem me der poder dizer que chegou a hora de uma Europa mais livre e mais unida, enraizada no direito à pátria e já descolonizada de algumas tentações imperiais, capaz de dizer a todas as nações sem Estado deste nosso tempo que a exigência dos grandes espaços não tem que ofender os princípios da autodeterminação nacional.
Neste sentido, importa salientar que a própria generosidade da ideia federal, conforme a linha associativista do small is beautiful, que vai de Proudhon a Rougemont e deu asas ao Congresso de Haia de 1948, acabou por ser expropriada pelo modelo de uma espécie de super-Estado, uniformista e centralista, que trata de utilizar a metodologia do legalismo e do regulamentarismo. Com efeito, sob o nome de federalismo europeu e de Estados Unidos da Europa tem-se criado uma ideia que o pai do próprio federalismo contemporâneo, Proudhon, considerava como o principal inimigo do federalismo: a Europa como uma confederação única, como uma nova Santa Aliança que sempre degenera ... numa potência única , qualificada como uma autêntica cilada, dado não ser precedida pela descentralização dos grandes Estados, impedindo que a nacionalidade volte à liberdade. Ora, segundo o próprio Proudhon, importaria assegurar as nacionalidades dado que o sentimento de pátria deveria ser assumido como um elemento indestrutível da consciência dos povos. Da mesma forma Rougemont, já no Congresso de Montreux de 1946, considerava que a união federalista da Europa nunca poderia ser concretizada pelos Estados, dado que importaria renunciar a qualquer ideia de hegemonia bem como a qualquer forma de arrange ensemble, dado que a federalização implicava a junção das realidades concretas e heteróclitas das nações e das regiões económicas, bem como a própria superação do problema das minorias. E isto porque seria essencial no federalismo a salvaguarda das qualidades próprias de cada grupo, nunca podendo apagar-se as diversidades, antes se exigindo o amor pela complexidade e uma construção política feita de baixo para cima, a partir dos grupos e das pessoas e não a partir do vértice de um centro político. Se com Coudenhove-Kalergi se atingiu o funcionalismo; se com Schuman e Monnet se passou para um federalismo gradualista, para uma realidade nova que exigiria uma nova invenção na história da humanidade que não correspondia nem à cooperação bilateral, nem ao modelo multilateral nem a qualquer dos modelos federais existentes, para utilizarmos palavras de Adriano Moreira, eis que, muito principalmente depois de Maastricht, a ideia federalista tem vindo a ser instrumentalizada por algo que recorda a hierarquia dos Estados.
Desta forma, eis como certo europeísmo bancoburocrático corre o risco de juntar o mais gnóstico do idealismo alemão como o mais unidimensionalista do jacobinismo francês, gerando um pan-nacionalismo soberanista à escala europeia. Se se foi desdenhando daquela soberania que propiciava uma reserva em prol das liberdades nacionais, regionais e locais, eis que tratou de propiciar-se uma hipostasiada soberania de uma espécie de Europa-fortaleza. Ao europeísmo hegeliano nem sequer falta uma importante dose de maquiavelismo, onde o interesse comunitário aparece como uma nova forma de razão de Estado, na qual até é admitida aquela forma de mentira piedosa, em que o glorioso fim da construção europeia justifica todos os meios do despotismo regulamentarista, tão ávido de uniformismo que tanto impõe regras ao leitão da Bairrada como aos cigarros Gitanes, para não falarmos no tamanho dos preservativos, na calibragem das maçãs ou na maneira de procedermos à datação de um ofício. Por isso é que nesta Europa leviatânica o homem comum sente que pensar a política europeia pode, muitas vezes, não valer a pena. Com efeito, está a gerar-se uma consciência de indiferentismo entre as massas europeias, dada predominância da minoria tecnocrática nas altas esferas de decisão. A Europa que temos parece pouco dada a qualquer europeísmo militante que venha de baixo para cima, daquele que se mobiliza em termos de vontade comum, de vontade geral, onde cada cidadão se assuma como se ele próprio fosse o soberano.
Faço parte daquele grupo de europeus, certamente minoritário, que considera não poder haver projecto europeu sem visionários, desses que em vez do primauté de la politique, onde o que parece é, advogam uma moralização da política, ou, pelo menos, o estabelecimento de um meio de comunicação entre a política e a moral, de acordo com o clássico princípio da justiça. Por isso me prendo a todos aqueles para quem a Europa só pode viver o plebiscito de todos os dias de um nascer de novo se voltarmos ao tempo do sonho e da sociologia da esperança, mesmo que lhe chamemos cepticismo entusiasta. Insista-se, muito churchillianamente que o Tratado de Maastricht foi uma coisa péssima, mas a menos péssima de todas as alternativas que então se apresentavam aos europeus. Permitiu, pelo menos, que a ideia básica da geração dos pais-fundadores pudesse resistir face à tentação de reduzir-se a Europa a um concerto de potências que inevitavelmente conduziria ao restabelecimento de uma Europa com Estados-Directores satelitizando Estados-Secundários. O principal perigo do projecto europeu em desenvolvimento continua a ser a tentação de o regresso ao sistema da Europa das potências e dos Estados em movimento, onde Estados que são herdeiros de projectos imperiais frustrados, tentem reassumir-se como Estados Directores ou Estados Locomotivas, feudalizando todo o processo de construção europeia. Foi esse o erro da Europa de Metternich e Talleyrand. Foi essa a tentação do pós-Grande Guerra e a causa da Segunda Guerra Mundial. É contra este modelo de federação dos impérios frustrados da Europa que a República Portuguesa tem de resistir, invocando a possibilidade do grande espaço europeu continuar uma hipótese de conciliação das liberdades dos povos contra as perspectivas absolutistas do estadualismo e do soberanismo. E que reagir, não apenas em nome da liberdade de Portugal, mas também em nome da liberdade da Europa, da liberdade de todos aqueles povos da Europa que continuam a ser nações frustradas e a que, muito eufemisticamente, se dá a consolação do nomen de Europa das regiões.
101.Pela res publica dos portugueses
A República Portuguesa, a res publica, a coisa pública dos portugueses, não pode pois deixar de reclamar-se como co-autora do processo da construção europeia. Seria errado colocarmo-nos numa qualquer periferia de marginalidade, transformando-nos em simples actores de uma peça escrita por outros, ou em meros auditores-bons alunos de manuais escritos por exógenos, mesmo invocando o não desenvolvimento que, muitas vezes, não passa de certa pedinchice típica dos que querem ser colonizados. Seria dramático pensarmos um nacionalismo português que traduzisse em calão nacionalismos estranhos à nossa índole, eventualmente mais estrangeiros que os próprios estrangeirados. Depois de Maastricht continuamos sem saber como conciliar a tríade acabamento, aprofundamento, alargamento. Continuamos a balbuciar os modelos da Europe à la carte, da Europa de geometria variável, da Europa de círculos concêntricos. Por outras palavras, recorrendo ao napoleónico reculez pour mieux sauter que os leninismos foram traduzindo no sentido de um passo à rectaguarda, para um grande salto em frente, eis que as potências dominantes da actual dinâmica da integração europeia parecem pretender firmar-se num núcleo duro de poder marcado pelos reflexos condicionados da hegemonia dos Estados Directores, para melhor poderem saltar em frente nos pilares da política externa, da política de defesa e da política de segurança interna, afinal, os elementos básicos de qualquer unidade política autodeterminada.
102.Contra a Europa das duas velocidades
Com efeito, não parece haver dúvidas que as forças vivas políticas do eixo franco-alemão advogam o princípio de uma Europa a duas velocidades, onde haveria um núcleo duro. Assim o defendeu o documento Lamers do Grupo parlamentar CDU/CSU em 1994, para quem se imporia a intensificação qualitativa das relações franco-alemãs, o reforço da capacidade da União actuar em matéria de política externa e de segurança, bem como o próprio alargamento a leste. Para este grupo, a única maneira da União europeia ordenar os seus fundamentos democráticos e federais e de evitar a tentação de uma Europa à la carte, limitada a uma cooperação intergovernamental passaria por tal objectivo. Mas idêntica perspectiva têm assumido os socialistas franceses, na linha do que foi defendido por Élisabeth Guigou no seu livro Pour les Européens, de 1994. Qualquer um deles invoca a tensão existente entre os países da coesão e os contribuintes liquidos, entre os ricos e os pobres, entre os membros europeus do G7 e os restantes. No fundo, interpreta-se restritivamente a chamada revolução global, porque apesar de reconhecer-se a superação do soberanismo dos Estados-nações, eis que, em vez da procura de uma conciliação entre a autodeterminação das nações a a generosidade das teses de uma comunidade internacional baseada no ius gentium, se cai no desespero de uma solução imperial. Isto é, aceita-se a manutenção do soberanismo das novas potências, de novas fortalezas, de novos centros da Weltpolitik. sempre forças vivas em movimento à procura de um governo da globalidade.
103.Um tempo de interregno
Vivemos um tempo de interregno, onde alguns profetas da desgraça, marcados pelo pessimismo, tratam de anunciar o fim da democracia e a entrada na era imperial. Já não dos impérios visíveis, pela dominação política e militar de uma ou várias superpotências, mas antes pelas dominações invisíveis do poder anónimo de superpotências multinacionais, financeiras, industriais ou mediáticas que através de redes incontroláveis constituiriam a rede de um governo mundial. Quem assim alinha nas teses da velha sinarquia e trata de reler as velhas teorias da conspiração, não tarda em enredar-se na análise dos poderes ocultos e bem pode interpretar o G7-G8 de acordo com o protocolo dos sábios do Sião. Até pode falar desses novos poderes erráticos, desde o terrorismo de alguns pequenos e médios Estados a formas de degenerescência inspiradas pela mafia que tratam de ascender às culminâncias da bandocracia russa ou dos cartéis da droga sul-americanos. Outros, marcados pelo optimismo dos amanhãs que cantam, preferem apresentar o dilema da utopia ou morte, da construção imediata de um mundialismo, sob pequena de ficarmos sujeitos à dominação imperial de uma superpotência, capaz de se assumir, através de novas políticas de canhoneira ou de cacete, como os polícias do universo.
Julgamos que importa entender este tempo de crise, não tanto quanto às pequenas turbulências e às guerrazinhas de homenzinhos que marcam a conjuntura da mentalidade de quintal de um certo Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas, mas antes da crise global deste fim de século, da crise subsequente ao fim da velha ordem mundial, pactuada em Yalta. Desta crise mais cultural de política, que faz com que estejamos condenados a utilizar conceitos e categorias de outras realidades para as actuais circunstâncias do mundo. Queremos falar da viscosidade da chamada revolução global, expressão que começou a ganhar foros de cidadania nos finais da década de oitenta, entre os especialistas da ciência política e da teoria das relações internacionais, e que foi consagrada num relatório para o Clube de Roma, em 1991, da autoria de Alexander King e Bertrand Schneider. Estes autores falavam que vivíamos The First Global Revolution, na primeira revolução global da história da humanidade, onde o primeiro estímulo para a identificação e a sobrevivência das comunidades políticas já não seriam os tradicionais amigos/inimigos da velha pretensa essência do político, mas antes os inimigos globais de todas as comunidades humanas, da aldeia global. Isto é, partindo do clássico princípio que nos diz que o nós precede o eu, que cada um só ganha consciência de si mesmo quando consegue estabelecer uma fronteira com o outro - o que tem levado à sobrevalorização da ameaça vinda de força, como principal elemento de desintegração -, King e Schneider consideram que só no nosso tempo surge uma ameaça global e, consequentemente, só agora que os homens todos começam a ganhar consciência existencial da globalidade humana. De facto, tem sido o risco maior, o elemento mais acelerador da mundialização
O que King e Schneider qualificam como revolução global, era, aliás, teorizado, há mais de duas décadas em Portugal, pelo Professor Adriano Moreira que, na senda de Teilhard de Chardin, falava numa lei da complexidade crescente nas relações internacionais, na multiplicação das dependências e interdependências que é acompanhada por uma também multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão, movimento de contrários que geraria novas formas políticas, os grandes espaços, bem como órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão. Numa convergência acompanhada por uma divergência que exigiria uma nova unidade. Isto é, que se assistia, tanto a uma planetização dos fenómenos políticos, com a consequente marcha para a unidade do mundo, como a uma dispersão, a uma fragmentação, a uma multiplicação quantitativa e qualitiva dos centros de decisão, nomeadamente com a progressão quase geométrica do número dos Estados e dos organismos internacionais. Essa aparente contradição (por um lado, as exigências de uma crescente mundialização, e por outro, as exigências opostas da diversificação), constitui, aliás, o mais evidente sinal do complexo. E é complexo tudo o que é mistura de contrários. E do complexo só saímos, não pela vitória de um pólo sobre o outro, através da antítese vitoriosa sobre a tese, através da síntese, mas sim pela harmonia.
O primeiro desses sinais é sem dúvida a grande revolução técnicocientífica. Ora não há dúvida que o poder internacional passou a ser medido pelo poder científico, tanto o poder da investigação como o poder tecnológico. Não há dúvida que o sovietismo, leninista e estalinista, permitiu que a URSS se tornasse numa superpotência quando se deu a boa síntese entre o comunismo e a electricidade. E até podemos dizer que a URSS entrou em decadência quando se esqueceu da máquina de fotocópia e do transistor. Ou melhor, quando não percebeu que se entrava na alvorada da terceira vaga, da revolução das tecnologias da informação, que a revolução científica não era apenas a mera continuidade da Revolução Industrial, incrementada a partir do século passado, isto é, a mera exploração da massa pela energia ou a exploração da natureza pelo homem. A URSS não cuidou de meditar sobre a lei da entropia, descoberta por Rudolf Clausius nos finais do século XIX, não percebeu a existência de uma nova grandeza variável da energia (...) a quantidade de energia que, sendo gasta numa mudança, é irrecuperável pelo sistema e fica para sempre na zona do desperdício no balanço da energia do Universo. A URSS não percebeu, e certa sociedade de consumo também não continua a perceber, que a mera exploração da massa pela energia gera uma geração de desperdício.
Também o poder económico também alterou a tradicionais medidas do poder internacional. Porque outra das revoluções globais da humanidade chamou-se revolução dos mercados. Aquela revolução que obriga ao reconhecimento do homem como um animal de trocas. Hoje podem já não existir superpotências, mas existe o Grupo dos Sete/ Grupo dos Oito. Hoje, das cem maiores entidades económicas mundiais, misturando Estados, em termos de PIB, e empresas, em termos de volume de facturação, verificaremos que mais de metade são as chamadas multinacionais. Hoje, das cem maiores entidades económicas mundiais, misturando Estados, em termos de PIB, e empresas, em termos de volume de facturação, verificaremos que mais de metade são as chamadas multinacionais. E todos sabem que estão neste momento recenseadas cerca de 37 000 firmas multinacionais com cerca de 206 000 filiais. Contudo, a revolução dos mercados, assume hoje novo sentido com a emergência da chamada geofinança, dessa network structure dos fluxos financeiros diários que passam pelas bolsas de valores de todo o mundo, e onde, minuto a minuto, podem pôr-se em causa empresas, moedas, países ou grandes espaços. Um esotérico sector, onde apenas parecem saber operar dez grandes holdings de peritos capazes de dominar os segredos desse processo. Nesse sentido, importa recordar que Butros Butros-Ghali tem vindo a chamar a atenção para a circunstância desta globalização ter feito emergir novos poderes que transcendem as estruturas estaduais, de ter surgido um poder mundial que escapa aos Estados. Basta salientar que os três primeiros fundos de pensões norte-americanos a Fidelity Investments, o Vanguard Group e o Capital & Research & Management controlam dez vezes mais dólares que os conseguidos em Dezembro de 1994 pelo tesouro norte-americano, o Banco Mundial e o FMI para ajudarem a moeda mexicana. O mais importante dos novos poderes passa, assim, pelo fluxo financeiro da geofinança que tem as características do imediatismo, da desmaterialização, da permanência e do planetário, bem como o revivalismo dos rumores, dos receios e da pópria fé das bruxarias, típica das sociedades de casino, dessa nova religião dos mercados que tem como missionários militantes os descendentes dos yuppies. Aliás, podem reunir-se os sete mais ricos do mundo ou os membros da NATO, mas não se conhece o rosto dos mestres do mercado, desses novos predadores, para quem sentidos como o da justiça e da honra parecem não contar. A este respeito, importa sublinhar que revolução dos mercados foi sobretudo o processo de livre circulação dos capitais, precedido pelo processo da desregulamentação e das privatizações. A economia desmaterializou-se.
O poder deixou de residir nos elementos materiais, nos factores de produção da teoria marxista, como era a terra, os recursos naturais e as máquinas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças. O poder transformou-se numa rede de poderes, deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter e passou a ser uma relação, uma rede de muitos micropoderes, onde os novos mestres predadores e conquistadores já não são os detentores dos factores de produção nem os organizadores da era dos managers, mas sim os efectivos manipuladores da rede que conseguem por todos os meios a necessária inside information. Todos este novos grupos escapam a anteriores formas de representação e de legitimação política e social e desprezam o bem mais precioso de qualquer democracia, aquela informação que permite a consolidação de uma opinião crítica. Os novos poderes têm com eles legiões de aliados e colaboracionistas os quadros da tecnociência (como intelectuais, engenheiros, investigadores científicos, etc.) que trabalham para incorporar o avanço da técnica nos novos produtos e serviços, os quais estão a tornar caduco o tradicional conceito de universidade, um grupo cada vez mais cosmopolita que tende a depender mais das multinacionais do que dos subsídios estaduais; as tecnoburocracias dos Estados e das organizações internacionais, até porque os gestores de alto nível tendem a ser educados nas mesmas escolas e nas mesmas universidades; que mantêm a educação permanente; os criadores de símbolos, nesse conúbio entre os universitários e os opinion makers; paralelo à própria entrada dos grandes media no sistema dominante. Já não temos as sete irmãs das multinacionais petrolíferas, das grandes famílias que dominavam o tempo das trocas de mercadorias do auge da revolução industrial. Transitámos para a sociedade da informação, uma informação que não se consome, como acontecia com o petróleo ou a alimentação, mas que se cria pelo uso. Assim, o poder passou do produtor para o consumidor, do mais pequeno para o maior número; de cima para baixo.
Sobre a revolução da informação, importa assinalar que assistimos à uniformização e à ubiquidade da informação, todo o mundo se transformou na aldeia global da informação simultânea, com o consequente aparecimento de uma engenharia social que vai moldando uma opinião pública mundializada e o problema do controlo dos mecanismos da mesma. Conforme salienta o Professor Adriano Moreira, o homem massa transformou-se em audiência, em consumidor em vítima potencial das novas armas do terror massificado. Com efeito, grupos mais poderosos que os Estados tocam no bem mais precioso das democracias que é a informação, numa época em que a transmissão de dados se faz à velocidade da luz, se deu a banalização dos satélites de telecomunicações e até se institui essa formidável rede da democracia virtual chamada Internet. Contudo, temos apenas duas cadeias planetárias de televisão, a Cable News Network de Ted Turner e a Music Television que alteram os costumes e as culturas, as ideias e os debates, ao mesmo tempo que emergem tão só duas agências de informação audiovisual, a Worldwide Television News (WTN) e a Visnews, que todos os telejornais do mundo vão diariamente reproduzindo.
A terceira é a revolução dos teatros estratégicos, a mundialização dos fenómenos da segurança e da defesa, provocada tanto pela corrida armamentistas, como por novas formas de guerra potencial, como a guerra atómica, a guerra química, a guerra bacteriológica e a guerra meteorológica.
A quinta e última das revoluções globais tem a ver com a revolução demográfica, com o aumento da população do mundo e com alteração quantitativa na relação entre grupos étnicos, falando-se a propósito, nas bombas demográficas do sul relativamente ao decréscimo da população branca. A este respeito, importa salientar quer população mundial - que se manteve estável dos tempos de Cristo ao ano mil - multiplicou-se por vinte neste último milénio. Mas nestes últimos cinquenta anos o multiplicador entrou em ritmo quase febril: se em 1939 havia 2 195 milhões de homens, esse número passou para 4 453 milhões em 1980 e para 4 842 em 1985, prevendo-se que atinge os 6 127 milhões no ano 2 000 e que atinja os 8 177 milhões em 2 025. Actualmente em cada cem homens, há 22 chineses, 20 membros do subcontinente indiano, 10,2 europeus, 5,7 da antiga URSS, 5,5 da América do Norte, 11,4 africanos, 8,4 da América Latina, com uma distribuição de riqueza inversamente proporcional, dado que quatro quintos da riqueza mundial cabe a uma sétima parte da população do mundo.
Estas cinco revoluções, que na sua interacção constituem o núcleo da tal revolução global da história da humanidade, fizeram com que ruísse a velha ordem mundial, estabelecida em Yalta, em 1945, e que, até 1989, se desenrolou segundo ritmo da chamada guerra fria. Porque se as revoluções políticas se fazem no curto prazo, já as revoluções culturais e morais exigem sempre um tempo demorado, um médio e um longo prazo. E esta circunstância sentida no plano da organização política, dado que continuamos a utilizar conceitos como os de Estado e de soberania, inventados na Renascença e que talvez hoje se não coadunem com as realidades da nação e daquela independência que o continua a ser quando se gerem interdependências e dependências e se espiritualizaram as fronteiras, mas sem atingirmos a exigência de uma República Universal, onde todos seríamos cidadãos do mundo.
113. O fim do fim da história
As teorias dominantes da aldeia global da comunicação balbuciavam até há pouco, muito mimeticamente, duas teses surgidas entre intelectuais norte-americanos que falavam tanto no fim do comunismo como no próprio fim da história. E não houve bem-pensante que se prezasse que não alinhavasse alguma prosa circunstancialmente profunda sobre o tema de tais modernidades. Sobre o fim do comunismo, mais do que referirmos as sucessivas vitórias de ex-comunistas em vários países de Leste, importa dizer que o sistema concentracionário, burocratista, bandocrático, gerontocrático e nomenclaturista que dominava a Rússia, através da URSS, pouco correspondia aos sonhos doutrinários dos crentes na religião secular marxista-leninista. Como assinalava Emmanuel Todd, a URSS, principalmente durante a gestão de Brejnev, não era uma união; as repúblicas já não eram socialistas e, muito menos, havia sovietes. Nem sequer se enquadrava dentro dos moldes totalitários, já que dominava o cinzentismo pós-terrorista e pós-totalitário. Comunistas de sonho, marxistas-leninista de intelectualismo, existiam apenas nos países ocidentais, onde, apesar de tudo, ainda havia líderes que repetiam o credo da URSS como o sol da terra. Marxistas-leninistas havia, e continua a haver, nas universidades ocidentais. Esses que, apesar de já terem repudiado o estalinismo, continuavam à procura da realização da Revolução de Outubro em qualquer frustração do processo revolucionário russo, desde o leninismo não poluído por Estaline ao próprio trotskismo, para não falrmos na procura de revoluções exóticas, fosse a do maoísmo ao mais tropical castrismo, para não falarmos em coisas mais europeias, como o Maio 68, depressa traduzido em português na Coimbra 69.
114. O fim do fim do comunismo
O fim do comunismo foi mero slogan. A realidade parece ser outra. Com efeito, as três Revoluções que marcam o Idade Contemporânea, a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa, transformaram-se, a longo prazo, numa pós-revolução demoliberal que foi deglutindo sucessivamente os respectivos adversários do século XIX, desde os conservadores à maneira anglo-saxónica, aos defensores da doutrina social da Igreja Católica, sem esquecermos os próprios socialistas, utópicos ou marxistas. E de tal maneira sucedeu a conciliação com os antigos adversários que, vimos as democracias, depois da Segunda Guerra Mundial, serem quase todas geridas, defendidas e representadas pelos antigos adversários do século XIX: os conservadores à maneira britânica (não foi o sangue, suor e lágrimas do conservador Churchill que serviu como bandeira da resistência ao nazi-fascismo e ao estalinismo?); os democratas-cristãos (pelo menos desde Leão XIII e do afluxo dos partidos do centro e populares nos anos vinte); e os sociais-democratas ou socialistas-democráticos (desde o revisionismo marxista de Bernstein). Talvez depois do fim da guerra fria se esteja a estar a dar nova reconciliação com um antigo adversário, o marxismo-leninismo, pós-revolucionário, que aceita os princípios do pluralismo, da sociedade aberta e da legitimidade electiva e democrática. Como se vislumbra nos antigos comunistas do Leste, dentro e fora da Rússia, ou nos herdeiros do eurocomunismo de Berlinguer, com o PDS, sem falarmos nalgumas novas linguagens dos comunistas portugueses.
Sobre o fim da história, importa assinalar que certa faceta demoliberal de Francis Fukuyama é apenas um irmão-inimigo do marxismo. Ambos aceitam as teses desenvolvimentistas de uma concepção ferroviária da história, segundo a qual todos os países têm de seguir a mesma via a caminho do mesmo fim, embora com várias velocidades, pelo que alguns estariam já em estações mais adiantadas, enquanto outros ainda seguiriam atrasados. E isto, porque Fukuyama considera que o fim da história é um certo desenvolvimento político - o demoliberalismo tal como é praticado nos Estados Unidos da América - e um certo desenvolvimento económico - a economia de mercado tal como é exportada para todo o mundo pela mesma superpotência. Deste modo se aceita aquele conceito hegeliano de progresso que também impregnou Karl Marx. A ideia de que a história é que faz o homem e não de que o homem é que faz a história. A ideia de que a história é um processo histórico que já está previamente escrito e de que a realidade é alguma coisa que tem de se encaixar à força num prévio caixilho teórico. Não admite que a história seja uma cocriação de homens livres e que, portanto, exista uma dialéctica entre a necessidade e o acaso. Não admite, como salienta Alain Peyrefitte, que quem está cem anos atrasado possa, nalguns, aspectos estar cem anos adiantado. Não admite que o universal possa ser atingido através da diferença. Que cada homem seja um ser que nunca se repete. Que a história seja também uma sucessão de acontecimentos que também nunca se repetem. Que os homenes são diferentes; que os povos são insubstituíveis; que as experiências de cada povo são instransponíveis e intransportáveis, como salienta o mesmo Peyrefitte.
Vivemos um dos primeiros momentos da história do homem em que a terra toda e os homens concretos todos se transformaram em homens iguais que habitam num planeta unidimensional. Numa só terra que pela primeira vez fotografámos fora da própria atmosfera. Numa só terra vista como esfera, rodando sobre si mesma, à volta do sol, onde não cabem os mapas de Ptolomeu, ou as concepções quadriláteras do Império Celeste. Numa só terra, onde não pode haver divisão entre o Norte e o Sul ou o Leste e o Oeste. Numa terra toda que vive os primeiros momentos de uma revolução global que foi semeada pela revolução científica e técnica, pela revolução dos mercados, pela revolução dos teatros estratégicos, pela revolução da informação, pela revolução demográfica e pela crise do Estado Soberano.Vivemos a primeira revolução global da história do homem. Onde a primeira das ameaças já não vem de outro um grupo de homens, mas sim dos riscos maiores que afectam toda a humanidade. A primeira revolução global da história do homem, onde a consciência do património comum da humanidade nos faz sentir, existencialmente falando, como cidadãos do género humano. A primeira revolução global da história do homem que só será verdadeiramente reformadora quando se assumir como pós-revolução, quando deixar as ilusões do construtivismo. No entanto, desperdiçamo-nos. Fazemos com que uns sejam cada vez mais ricos e que a maioria continue cada vez mais pobre e enganamos os pobres com a ilusão do casino e dos toto-sorteios dizendo que todos podem enriquecer. Enganamo-nos. Quando não temos o bom senso de voltar à justiça e à verdade. Quando não temos a humildade de reconhecer que o homem novo não passa do o homem de sempre.
Por mim, acredito mais no humanismo libertacionista do que no formalismo liberalóide, nesse misto da vulgata neoliberal com o formato tabolóide, que defende para uma minoria de privilegiados direitos humanos de luxo, enquanto permite a manutenção de escravos, teoriza sobre a existência de etnias de segunda e mantém regimes de apartheid em nome de pautas aduaneiras. Aqueles formalismos que choraram Tian an Men em artigos de fundo, mas não repararam noutras bem mais graves ofensas à dignidade do homem que resultam das políticas construtivistas da natalidade que vigoram em mais de metade da população do mundo, nomeadamente na Índia e na China, levando, por exemplo, a que nesta última grande potência, se continue a praticar o infanticídio de crianças do sexo feminino de tal maneira que nascem hoje apenas 30% de mulheres, contra 70% de homens... Na verdade, tanto os bem pensantes liberalóides como os seus antecessores marxianos não têm teoria capaz de compreender todos aqueles que sentem o longo prazo e pensam no futuro.
As recentes paixões identitárias que levaram as instituições europeias a reclamarem uma Europa dos princípios, mobilizada pelas ideias de Estado de Direito, de democracia e de direitos do homem, impõem um regresso para seguir em frente, um regresso aos grandes combates de ideias sem as quais a Europa se diluirá nas teias de uma globalização de merceeiro.
Em primeiro lugar, o Estado de Direito, essa ideia kantiana de organização do político em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direito, não do seu próprio poder ou do seu próprio juízo jurídico, mas apenas dessa grande sociedade das nações (foedus amphictyonum), duma força unida e da decisão da vontade comum fundamentada em leis. Esse princípio regulativo, esse imperativo categórico que impõe um Estado-razão, enquanto exigência para se superar o estado de natureza, visando estabelecer o reinado do direito na sociedade das nações. E isto porque a paz pelo direito não é uma quimera, mas um problema a resolver, consequência do reinado do direito, que o progresso um dia estabelecerá. Daí que Kant considere que o maior problema da espécie humana, a cuja solução a natureza força o homem, é o estabelecimento de uma sociedade civil, que administre universalmente o direito, isto é, a criação de uma sociedade, em que a liberdade, submetida a leis externas, se encontre ligada, o mais estreitamente possível, a um poder irresistível, isto é, à criação duma constituição civil e perfeitamente justa. Ora este problema é simultaneamente o mais difícil e o que mais tardiamente é resolvido pela espécie humana, porque o problema do estabelecimento de uma constituição civil perfeita depende do problema das relações legais entre os Estados, e não pode ser resolvido sem se encontrar a solução deste segundo. Logo acrescenta que por mais visionária que esta ideia possa parecer ... ela é todavia a inevitável saída do estado de miséria em que os homens se põem uns aos outros, miséria essa que há-de forçar os estados (por muito que lhes custe) exactamente à resolução a que foi forçado, embora contra a sua vontade, o homem selvagem: a de renunciar à sua brutal liberdade e procurar tranquilidade e segurança numa constituição legalmente estabelecida. - Assim, todas as guerras são apenas outras tantas tentativas (não na intenção dos homens, mas na da natureza) para suscitar novas relações entre os estados, e, através da destruição, ou pelo menos do desmembramento dos antigos, formar novos corpos, que por sua vez não são capazes de se manter em mesmos ou em relação aos outros, pelo que terão de passar por novas e semelhantes revoluções; até que, finalmente, em parte devido à melhor ordenação possível da constituição civil, internamente, em parte devido a acordos comuns e à legislação, externamente, se conseguirá um estado de coisas que, à semelhança de uma comunidade civil, será capaz de se manter por si mesmo como um autómato.
Uma ideia de Estado de Direito que implica, aliás, a moralização da política. Essa luta contra as máximas sofisticas do fac et excusa, do si fecisti, nega, do divide et impera que constituiriam as astúcias utilizadas pela sabedoria imoral. Assim, o acordo da política com a moral só é possível numa união federativa – Genossenschaft – (que é portanto dada à priori, e necessária segundo os princípios de direito); e toda a prudência política tem por base jurídica a instituição desta união, dando-lhe o maior desenvolvimento possível.
Contudo, é o mesmo Kant da paz perpétua e da república universal que critica a ideia de Estado Mundial, considerando-a como um despotismo sem alma, depois de ter aniquilado os germes do bem, acaba sempre por conduzir à anarquia, defendendo as leis públicas de uma liga de povos que crescerá sempre e abraçará finalmente todos os povos da terra. Como espaço intermédio, acredita numa simples aliança confederativa entre Estados soberanos: pode chamar-se a esta espécie de aliança (Verein) de alguns Estados, fundada na manutenção da paz, um Congresso permanente dos Estados, à qual é permitido a cada um dos Estados vizinhos associar-se.
É nesta base que Montesquieu (1689-1755), em De l'Esprit des Lois, de 1748, considera que as coisas são tais na Europa que todos os Estados dependem uns dos outros. A França tem necessidade da opulência da Polónia e da Moscóvia., como a Guiana tem necessidade da Bretanha e a Bretanha de Anjou, falando na Europa como um Estado composto de várias províncias e utilizando também os qualificativos de Grand République, république fédérative mixte, état plus grand e societé de societés.
123.A emergência do federalismo
Estas sementes são, depois, retomadas pelos grandes pensadores do federalismo, desde os adeptos do humanismo cristão, aos defensores do modelo socialista, herdeiros de Saint-Simon e de Fourier que, lutando contra o Estado centralizado, defendem o direito das nacionalidades. Uma perspectiva reassumida por Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) que, misturando o comunalismo, o mutualismo e o federalismo, retoma um socialismo anti-estatista, compensado pela solidarismo. Neste sentido combate a ideia de Estado unitário, entendido como simples máquina política, defendendo que a mesma deveria ser superada pela eliminação do centralismo, do unitarismo e do soberanismo, em que se teriam enredado tanto os modelos do rei absoluto como do povo absoluto, que não admitiriam a existência, no espaço político, dos poderes periféricos, territoriais ou grupais. Socialismo, defesa dos corpos políticos de base e federalismo inseriam-se assim na mesma perspectiva do político, propondo uma reorganização simultânea tanto no plano internacional como no plano interno, isto é, de baixo para cima, pelo renascimento da vida local e pela solidariedade dos grupos não públicos ou não governamentais, como hoje se diz. A partir de então, o comunalismo e o mutualismo, integram-se naquilo que poderá ser considerado como federalismo integral ou de associação, movimento que foi, aliás, acompanhado pela emergência de movimentos culturais regionalistas.
Essa memória política da Europa, contrária ao centralismo no plano interno e defensora de uma nova concepção de relações internacionais, teve, entre nós, alguns distintos cultores. Muito justamente, costuma invocar-se como marco do nosso europeísmo, a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da esperança, se procurava pensar enraizadamente do que tem sido Portugal e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado, desejando-se: Oxalá as honradas cãs do antigo Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado de estranhos, desamparado de todos! Praza a Deus que todos, de um impulso, de um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e desconjuntada pátria, - de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa!.
Mas outros portugueses da época foram também pensando a Europa., Solano Constâncio, em 1815, fala-nos do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código comum, o qual, apesar de muitas infracções parciais, formava o direito das gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os princípios salutíferos e protectores da felicidade e da independência das outra nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões.
Um tal José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que, entre Maio de 1823 e Junho de 1824, foi Ministro da Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias, onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso, celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força militar permanente.
E, duas décadas depois de Garrett, Vicente Ferrer de Neto Paiva (1798-1886), na sua Philosophia do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta germânica, proclamando que seria para desejar, que se organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. - a 'paz perpetua': o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos, com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta instituição, e que sentem a sua conveniência política.
Continuando esse belo sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa. Década e meia volvida, chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia, de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa. Mas, como dizia Manuel Laranjeira, em carta a Miguel de Unamuno: A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha e, sobretudo ... sem dinheiro. Apesar disso ainda há em Portugal muita nobreza moral. Os reflexos de Proudhon também aqui emergem, destacando-se tanto as teses de Antero Quental (1842-1891) que, em 1872, chega a propor para a península ibérica uma federação republicano-democrática, como as ideias sobre a reconstrução federativa, de Oliveira Martins (1845-1894).
129.Algumas propostas de reforma
Seguindo o conselho de Jean Monnet, julgo que entre o pessimismo e o optimismo, há que ser determinado. Por outras palavras, há que apostar na democracia e que assumir um ideal histórico concreto. Que sonhar com os pés bem assentes na realidade.
Com efeito, sobre a relação Estado/Sociedade, eis que a palavra crise se tem tornado obsidiante. E com justeza. Vivemos, na verdade, no centro da vagalhota de uma daquelas crises estruturais que, se não conduzem à ruptura do finis patriae ou de um mais apocalíptico fim da história, pode contribuir para a chamada decadência e pôr em causa os factores democráticos da formação de Portugal, isto é, da mais antiga comunidade política autodeterminada da Europa. Daquele Portugal que já era independente quatro séculos antes de se terem inventado o nome de Estado e o conceito de soberania. Que teve a primeira mudança política pós feudal em 1385. E que aplicou as teorias da autodeterminação popular em 1640, quando quase todos se diluíam em absolutismos de potências sem pátria e de monarquias sem povo. Uma crise que não se debela com panaceias programáticas ou ideológicas de curto prazo, nem com as utopias da revolução, mas antes através de um trabalho de militância cívica, de médio e longo prazos, onde os objectivos têm de ser marcados por um ideal histórico concreto, as metodologias que assumir-se como reformistas, e os valores, como permanecentes.
Julgo, aliás, que o debate dos anos setenta e oitenta em torno da dialéctica colectivismo/liberalismo, que muitos subliminarmente confundem com o dualismo Estado/Sociedade, perdeu o sentido nesta fase pós-socialista e de desconstrução daquele Estado Providência que foi um Estado de Bem Estar e que agora é um Estado de Mal Estar. De um Welfare State muito à portuguesa, aliás, que, tendo sido fundado pelo salazarismo como Estado Novo, com algum atraso comparativamente a Napoleão III e a Bismarck, diga-se de passagem, nem por isso deixou de ser o respectivo herdeiro, quando gerido pelo marcelismo, pelo gonçalvismo e pela pós-revolução, donde, em muitos subsistemas, ainda não saimos. As linhas de força que apontavam para o mais sociedade, menos Estado e para a libertação da sociedade civil, mesmo quando remodeladas pelo agiornamento do menos Estado, melhor Estado, ou de menos Estado, mais sociedade, têm um sabor algo retroactivo depois da experiência governativa do Professor Cavaco Silva e, muito principalmente, face ao actual processo de revolução globalista a que, entre nós, acresce a aventura de participação no projecto europeu.
Porque, perante um Estado que é, ao mesmo tempo, grande demais (no centralismo, na burocratite, no gestionarismo e no regulamentarismo), e pequeno demais (face aos desafios da internacionalização da segurança, da economia e das ameaças globais do risco maior, seja armamentismo, ambiente, doença ou fome), isto é, um Estado com muita adiposidade, pouco músculo e terrível défice de nervos, persistirmos em serôdios soberanismos de pacotilha acaciana é minguarmos, senão suicidarmos, o essencial daquela realizável vontade de sermos independentes que nos fundou, manteve e restaurou em anteriores crises de viabilidade.
O Estado e a Sociedade apenas são dois dos rostos da comunidade politicamente organizada, de uma comunidade política que tem de se manter viável face ao exterior e fiável face ao interior. O Estado e a Sociedade correm o risco de se perderem nas teias dissolventes de uma mundialização que tanto tem novas formas de público, os grandes espaços, como novas formas de privado, a internacional das sociedades civis. O Estado e a Sociedade não são coisas, são processos, exigem-se mutuamente, não podem entrar num duelo revolucionário ou contra-revolucionário, que, enfraquecendo-os, acaba por inviabilizar a comunidade política que devem servir.
A questão fundamental não está na visualização da sociedade como um contrapoder mas no assumir da plenitude da democracia. É que, em democracia, o Estado não é um c'est moi do soberano exterior à sociedade. Em democracia, o Estado é um c'est nous, um c'est tout le monde. Em democracia, o Estado somos nós, os cidadãos, os que têm o dever e o direito de participar na decisão e de escolher os representantes. Nós, cada um de nós, os homens comuns, somos as únicas realidades substanciais da política. Os grupos, as instituições e a própria instituição das instituições que abstractizámos como Estado, não passam de meras realidades relacionais, de formas que devem servir o conteúdo: os homens que as vivificam.
O fundamental está no refazer da aliança, ou da comunhão, entre o Estado a que chegámos e a Sociedade que temos. Está menos na contratualização de duas fraquezas e mais no estabelecimento de uma institucionalização, onde 1+1 seja mais do que o resultado aritmético. Onde a união comunitária da política faça a força do pluribus unum, gerando uma mais valia de sonho, de imaginação, de energia.
136.Por uma política-antipolítica
Em suma, precisamos de política-Política, pela reinvenção dos laços comunitários de uma pilotagem do futuro, capaz de refazer o software das pilotagens automáticas que os tecnocratas e pequenos e médios intelectuais costumam importar através da tradução em calão de muitas fotocópias pirateadas a partir de manuais de programação estranhos à nossa índole, à nossa maneira de estar no mundo, à nossa realidade. Para tanto, importa distinguir o Estado-Aparelho-de-Poder, o principado, do Estado-Comunidade, a res publica, a fim de se declarar que não pode haver democracia se aquele não resultar deste. O Estado-Aparelho em democracia tem de ser o representante do Estado-Comunidade, o soberano não poder ser algo que paire sobre uma unidimensionalidade de súbditos. Em democracia, a soberania resulta da cidadania, o Estado-Aparelho tem de potenciar-se no Estado-Comunidade. Logo, tanto tem de haver integração da sociedade no Estado como uma resposta (output) do Estado às exigências e aos apoios (input) da sociedade. Porque se o principado não for mero instrumento da res publica, a comunidade tem de revoltar-se contra o poder estabelecido e expulsar o usurpador, se possível, através dos meios legais disponíveis.
Acontece que a democracia constitui apenas um ideal, um sentido regulativo, da mesma natureza que a exigência do Estado de Direito Democrático, aquele que proclama que o fundamento e os limites do poder passam pelo direito e por aquela forma que é irmã gémea da liberdade e inimiga do arbítrio. Já não é lei aquilo que o príncipe diz e o príncipe está submetido à própria lei que edita. Na prática, porém, a teoria é outra, porque qualquer democracia, marcada que está pela plenitude da procura da perfeição, tem que ser instrumento dos homens imperfeitos que somos, e das inevitáveis instituições imperfeitas que constituímos.
Qualquer democracia, no plano das realidades, assume-se como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos superhomens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nos vamos fazendo.
Tentando, agora, pensar em português, para o Portugal de hoje, diremos que pode estar em causa a viabilidade do modelo português de Estado. Sofre, com efeito, o Estado que os portugueses têm vindo a instituir e a refundar, de alguns desafios existenciais que constituem o cerne da presente crise.
Começa por estar em crise o primórdio de qualquer comunidade política: o Estado Segurança, dado que volta a pôr-se em causa o monopólio da força física legítima tanto no plano da segurança interna, como no plano da própria segurança externa. A força legítima ameaça deintegrar-se pelos sintomas de regresso à vingança privada, nomeadamente através do apelo que muitos fazem a agências privadas de segurança que, assim, negam a essência do aqui d'el rei, como aparecia na célebre lei de D. Duarte que acabou com o feudalismo em Portugal e lançou as bases da predominância do direito sobre o arbítrio do Machtstaat, mesmo que vestido das peles de cordeiro de uma higiénica companhia de seguros funcionando a cunhas.
Segue-se a crise do Estado- Administração da Justiça ou do Estado Justiceiro, da confiança dos povos nos seus juízes e nos seus procuradores, com a ameaça de esporádicas emanações da lei de Lynch quando não pelo desespero de certos mini-pogroms contra os pigmentarmente diferentes, com que se deleita o falso nacionalismo zoológico. O que tem levado alguns, marcados pelo sombrio de tal horizonte de medo, a propor que eliminemos a plurissecularidade consequente do nosso humanitarismo penal, quando o caminho é apenas darmos meios fácticos ao humanitarismo e não invertermos os valores de que nos orgulhamos. Mas o que também não nos deve fazer esquecer que muitos erros temos cometido, com o legalismo, a chicana processual e a falta de sentido de missão de alguns servidores da Justiça, tentados pelo sentido de casta dos corpos especiais e pelo vedetismo de certa espectacularidade. Ai de nós, se enveredarmos pelo mediático de uma qualquer telejustiça! Aí de nós, se o terceiro poder entrar em conúbio com o chamado quarto poder! Porque então, só daí sairemos com juízes eleitos ou com juízes sorteados...
Vem, depois, a crise do Estado Imposto. Parece que nos esquecemos que a história da democracia é a história do imposto, dessa longa resistência dos povos no sentido da necessidade do consentimento para a tributação, coisa que constituiu sempre o cerne das Magna Charta e que praticamos desde que instituimos os parlamento em 1253. O que está em causa é simplesmente a evasão fiscal, um problema mais moral do que fiscalista, dado que, neste momento, continua a pagar o justo pelo pecador, o que menos tem em benefício da petulância do prevaricador, porque, não havendo moralidade, deixa de haver consciência comunitária de punição e sentido contratual de contribuinte. Quando é impossível o aumento da nossa carga fiscal e não parece curial deixarmos de honrar os compromissos para com os milhões de pensionistas.
Finalmente, é a crise do Estado Burocracia, esse instrumento vital do Estado Racional Normativo, dado que de tanta reforma administrativa e de tanta modernização administrativa se perdeu o próprio sentido dos gestos e se desprestigiou o funcionário, aquele que é um servus ministerialis, o escravo de uma função, marcada pelo direito à carreira e paga pelo vencimento, contra o clientelismo e o emolumento. Uma crise que determinados erros de falta de pensamento têm agravado, dado que continua a faltar uma escola de quadros e uma coordenação de policies que nos liberte de certo orçamentalismo casuístico, para não falarmos de alguma tentação dos anos oitenta que fala em privatizar os métodos de gestão pública, na mesma altura em que os grandes holdings privados tratam de copiar modelos da estratégia dos governments.
Todas estas crises sitiam a democracia e o Estado de Direito, onde o poder político, tanto o do poder governante como o do poder representativo, deve preponderar sobre os grupos e sobre as facções. O poder político não é uma coisa, é uma relação, um processo de condução da network structure, de comando da rede de micropoderes, um sistema de sistemas e subsistemas, onde até aquilo que habitualmente se designa como classe política não passa hoje de um mero subsistema de um processo global. É evidente que a governação, isto é, a pilotagem do futuro, numa sociedade aberta e pluralista, não passa de um modo dinâmico de gestão de crises, dado que o governo pelo consentimento impõe a emergência de forças vivas, onde a a articulação de interesses e a emergência de pressões constitui o normal anormal da competição.
Mas reconhecer o pluralismo não pode significar cedência ao neocorporatism. Do mesmo modo, como aceitar as facções, os partidos e a competição para a conquista eleitoral do poder não implica necessariamente a partidocracia. As democracias e as sociedades abertas estão cercadas pela corrupção em sentido amplo, isto é, pelos inúmeros processos de compra do poder. Tal como as burocracias estão minadas pelo clientelismo, pelo nepotismo, pela pantouflage e pelo negocismo.
Por isso é que as democracias têm de defender-se, em primeiro lugar, contra as degenerescências típicas dos próprios fenómenos democráticos, garantindo-se a democracia com ainda mais democracia, isto é, sem cedências ao despotismo dos césares, das multidões e dos próprios césares de multidões, onde a demagogia, aliada a poderes pessoais tende inevitavelmente para a usurpação e a tirania doces, isto é, para a negação do governo pelo consentimento.
Do mesmo modo, não há forma de superar-se a crise da sociedade aberta, senão com mais sociedade aberta, incluindo a via do mercado, da internacionalização da economia e do reconhecimento da actual internacionalização da própria sociedade civil. Qualquer regresso ao Estado Gestor, ao Estado Confiscador ou ao Estado Planeador seria desgastarmos o político em funções para as quais não está vocacionado, quando não persistirmos no latrocínio. O que não deve significar cedência à teologia do mercado de certos missionários ultraliberais, mas antes o humilde reconhecimento de que os problemas económicos só se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque o mercado não é o Estado, porque a oikos não é a polis. O nível da política é o que está acima do doméstico, o decisor acima das partes, onde não há um dono mas um todo de cidadãos que não são os escravos, os dependentes, os clientes ou os súbditos, mas aqueles que dão o consentimento na decisão, participando na mesma, mesmo que federativamente, ou escolhendo os representantes que, em nosso nome e para os nossos interesses, a proferem.
Mais política é mais Estado no plano qualitativo, para que também possa haver mais Sociedade. Precisamos de mais estratégia de Estado, de mais pensamento de Estado, de mais política internacional, de mais segurança, de mais justiça, de que todos paguem o imposto, de mais imparcialidade da administração, para que haja mais mercado, mais produção, mais solidariedade, mais bem-estar, mais espaço para a intimidade da família e da pessoa, em suma, para a realização do direito dos direitos, que é o direito à felicidade. Só que mais Estado nunca poderá ser o menos-que-Estado de um Estado-Empresário, de um Estado interventor nos preços e na gestão, de um Estado quase merceeiro, policiesco, vigilante ou caceteiro.
Apesar de tudo, a democracia e o Estado de Direito, com partidos e poliarquia, são péssimos regimes políticos mas os menos péssimos de todos. Bem menos péssimos que qualquer tentação de vanguardismo, elitista ou autoritarista, onde acabam sempre por preponderar os sargentos e os censores, mesmo que com brandura de costumes. Bem menos péssimos do que aqueles regimes que, em nome da ideologia, decretam a verdade, esquecendo que o bem tem sempre um bocado de mal e o mal, um pedaço de bem. Sempre é melhor dialogar com o adversário, pôr o poder a travar o poder, e evitar que ele se torne ab-solto, absoluto, porque se o poder enlouquece ou corrompe, o poder em soltura, corrompe absolutamente ou enlouquece absolutamente, mesmo que apenas se manifeste apenas pela arrogância.
Acontece apenas que a principal das forças vivas da actualidade é o povo português, isto é, a mistura de povo com uma certa ideia de Portugal, onde o valor Portugal, a primeira palavra da nossa Constituição, é que dá sentido ao povo, mas onde o adjectivo português só existe em função do substantivo homem concreto. Onde a essência só se realiza através da existência que, afinal, constitui a única realidade substancial. É em nome da fidelidade a Portugal e à solidariedade entre todos os portugueses que devemos assumir a resistência do nosso libertacionismo, compatibilizando-o com o grande jogo do europeísmo e do globalismo.
152. Um novo modelo de Justiça
É um novo modelo de Estado e de Sociedade que temos de reinventar, restabelecendo a Segurança do direito contra a força, impulsionando a Justiça contra o arbítrio, dando força à Justiça e impondo justiça à Força. Um novo modelo que restaure a legitimidade do Imposto, para que a justiça distributiva e a justiça social não percam o sentido unitário e compensem as falhas da justiça comutativa. Onde seja possível realizar o de cada um segundo as suas possibilidades, para que possa praticar-se o a cada um segundo as suas necessidades, através do alterum non laedere, do suum cuique tribuere e do honeste vivere, os fundamentos perenes da nossa civilização que permitiram a separação de poderes, a instituição da representação e a universalização dos direitos do homem. Um novo modelo que faça renascer a confiança do cidadão na sua Administração, que deve voltar a ser posta ao serviço do todo, sem fenómenos de compra do poder, e onde o mais competente da legitimidade racional, vença os atavismos do fidelismo patrimonialista ou do lealismo carismático. Onde o saber possa, pela igualdade de oportunidades, constituir a principal forma de acesso ao poder, contornando-se os desvios do mandarinato.
153. Um Estado de Liberdades
Um Estado de liberdades, de grupos e de partidos, onde se vença a demagogia do star system, o neopatrimonialismo corporativo e os tentáculos da partidocracia. Só uma grande estratégia pode garantir a continuidade de um Estado feito à imagem e semelhança dos portugueses que somos. Um Estado sem vãs glórias de mandar que assuma o realismo de apenas ter o tamanho da Sociedade que somos, daquilo que economicamente produzimos ou da ciência que intelectualmente geramos ou aplicamos. Um Estado que retome as boas máximas do viver com aquilo que temos, para não passarmos pela vergonha do pedinchão, nós que talvez devêssemos continuar a ter a fibra do antes quebrar que torcer. Um Estado situado na classe média baixa da sociedade das nações, quando os novos predadores da geofinança ameaçam tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, proletarizando as classes médias dos Estados e das Sociedades, em nome de uma globalista sociedade de casino que denega a solidariedade e a justiça. Um Estado que não transforme as potencialidades em vulnerabilidades, mas, antes pelo contrário, que assuma o respectivo poder funcional e volva a vulnerabilidades em potencialidades, principalmente no ritmo da balança da Europa. É sobretudo no palco da política internacional que se jogará a viabilidade portuguesa. Do Estado e da Sociedade dos portugueses.
154. A Sociedade no Estado e o Estado com a Sociedade
Só com a Sociedade no Estado e o Estado com a Sociedade poderemos enfrentar o desafio da Europa e da globalização. Só uma estratégia que estabeleça a network da grande política conseguirá levar-nos a submeter-nos para sobreviver, mas sempre com o norte de lutarmos para continuar a viver. Por outras palavras, só gerindo dependências, potenciando inderdependências e assumindo o patriotismo de queremos continuar independentes é que valerão a pena os vínculos libertadores de cumprir Portugal. Esperanças de Portugal, futuro do mundo. Que faltas ou fracas ideias não tornem fraca a forte gente...
155. Democracia
Primeiro, a democracia. Porque democracia quer dizer polis e polis quer dizer cidadania. O mais importante das sendas abertas por Maastricht está no voluntarista da criação de uma cidadania europeia, naquilo que a letra do tratado qualifica como a instituição de uma cidadania da União. A Europa tem de ser uma democracia de muitas democracias, directamente responsável perante todos e cada um dos povos europeus. A Europa não pode ser um qualquer sacro-império burocrático, em regime de despotismo iluminado, mesmo que com boas intenções construtivistas, como aquele que perpassa por certo elitismo voluntarista de alguns eurocratas que se julgam iluminados pela pretensa razão de Estado de uma Europa confidencial, misturando assim os contrários de certo hegelianismo de de certo maquiavelismo. Do mesmo modo, a Europa não pode tornar-se numa espécie de super-congresso multitudinário sem respeito pelas democracias vivas e directas das repúblicas que a integram.
156. Repúdio do imperialismo
Segundo, o repúdio de qualquer neo-imperialismo de fachada europeísta. Com efeito, qualquer ideia de construção política europeia, seja federalista ou confederalista, invoque o princípio da integração política ou o da cooperação política, que assuma a existência de núcleos duros ou Estados locomotivas tende para um neo-imperialismo de fachada europeísta, onde serão fatalmente satelitizadas as comunidades políticas que não podem assumir o estatuto de potências.
157. Europa dos povos e Europa dos cidadãos
A única ideia de construção política da Europa que convém à República Portuguesa é a ideia que convém à Europa dos povos e à Europa dos cidadãos. A ideia da Europa que permita destruir a degenerescência de um núcleo duro de soberanismos absolutistas. A Europa só pode unir-se e integrar-se, federando-se ou confederando-se, desde que pratique o dividir para unificar, desde que a semente da unidade passe além e aquém dos modelos de estadualismo existentes, desde que possa ser praticada a unidade na diversidade. Só pode haver transferência de lealdades, expectativas e interesses para um novo centro político, desde que não se eliminem centros políticos de ordem inferior, a nível local, regional ou nacional. Por outras palavras, desde que se abandone aquele conceito absolutista de construção do político que concebe os Estados a que chegámos como o fim da história nesse tipo de construção. Como se não houvesse político antes do Estado, isto é, nas autarquias ou nas regiões, e como se não pudesse haver político além dos Estados. Os Estados a que chegámos são apenas repúblicas maiores, feitas de outras repúblicas particulares e caminhando necessariamente para outras ainda maiores e ainda mais universais, como diria o jurista da Restauração João Pinto Ribeiro. O princípio da subsidiaridade consagrado pelo Tratado de Maastricht constitui, neste contexto, o topoi mais fecundante do actual processo de construção europeia, permitindo superar a tradicional disputa entre federalistas e unionistas, gradualistas e maximalistas, funcionalistas e fundamentalistas. O princípio pode transformar-se no denominador comum que propicia o diálogo, constituindo a ponte necessária para a vivificação da ideia de Europa.
158. Reinterpretar o princípio da subsidiariedade
Dos fundamentalistas federalistas, na linha de Altiero Spinelli, aos adeptos europeístas da linha unionista da cooperação política, todos transformaram o tópico tomista da subsidariedade num ponto de encontro, num lugar-comum, num tópico, a partir do qual se vai fazendo Europa. Pode ser até o inspirador do federalismo sem lágrimas e do unionismo gradualista e funcionalista. Sobretudo, o seguro contra a tentação soberanista do novo centro político comunitário. O princípio da subsidariedade tem a vantagem de poder ser invocado por variadas ideologias. Neoclássicos fazem nele residir o conceito aristotélico de cidadania ou a ideia republicana romana de povo, entendido à maneira de Cícero. Católicos neotomistas fazem nele cruzar as teses de São Tomás, Francisco Suarez, Leão XIII, Pio XI ou João Paulo II. Protestantes poderão invocar o modelo de Johannes Altusius, que esteve na base de federalismos como o holandês ou o alemão. Agnósticos podem nele encontrar semelhanças com a teologia laica da ideia de pacto de Bento Espinosa, a que outros chamam Baruch Spinoza. O movimento socialista pode nele fazer residir as teses do socialismo utópico, à maneira do federalismo de Proudhon e Pi y Margal, do republicanismo federalista, ao estilo de Antero de Quental, ou do revisionismo social-democrata ou socialista democrático.
159. Um humanismo activista
A grande herança político-cultural europeia, a do humanismo laico e a do humanismo cristão, podem, deste modo, dar as mãos em torno do mesmo tópico, para repudiarem a degenerescência estatolátrica e soberanista que destruiu a grande unidade das res publica europeia. Seria suicidário que agora tentássemos um novo salto em frente normativista ou uma revolução vinda de cima. Seria utópico exigirmos aquilo que apenas fingimos ser: a igualdade dos Estados Soberanos a que chegámos, como se os Estados algumas vezes tivessem sido iguais e como os menos iguais alguma tivessem tido qualquer plenitude soberana... A Europa pode e deve ser o continente aberto e a plataforma giratória de todo o mundo, conciliando a ambiguidade euroasiática da Rússia, como a ambiguidade euroafricana ou euroamericana das antigas potências coloniais da Europa ocidental. A vulnerabilidade desta contradição ontológica constitui, sem dúvida, a principal potencialidade da Europa. Isto é, a unidade da Europa será tanto mais universal quanto mais enraizada autonomia tiverem as suas diferenças. Só há, aliás, unidade se houver harmonia na diversidade. Cada Estado membro criou a sua própria expectativa quanto à construção europeia e a Europa passou a ser, sem dúvida, o resultado desse paralelograma de forças, projectos, esperanças e desconfianças.
160. Um grande espaço de liberdade
A Europa, grande espaço do free trade, grande espaço de livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços, capitais e ideias, a Europa do animal de trocas, dos contratos e da justiça comutativa, aberta ao desafio do comércio mundial, sempre foi a grande expectativa dos britânicos, em mais profunda coincidência com os objectivos permanentes dos Estados Unidos da América. A Europa superpotência, proteccionista e resistente aos desafios externos, ao desafio americano, ao desafio soviético, ao desafio japonês, ao desafio dos dragões do Pacífico ou ao desafio fundamentalista, tem sido, por outro lado, o desafio francês. A Europa dos cidadãos, entendida como uma comunidade pacífica, marcada pela ética da convicção sempre foi o perfil desejado pelos pequenos e médios Estados fundadores da Comunidade. Mas neste desejo da Europa aberta ao mundo podem também comungar não só as ideias protestantes do Norte, como as perspectivas católicas do Sul, cuja aliança a pode tornar numa campeã da democracia e dos direitos do homem. O segredo da resistência da construção europeia está precisamente nesta conciliação entre o interesse de cada comunidade política parcelar e o interesse global da entidade europeia. Os alemães precisaram da Europa para conseguirem a reunificação; os italianos, marcados pelo vazio de Estado, precisam da Europa como vértice que dê horizonte à sua pujante sociedade civil; belgas e holandeses exigem que o eixo franco-alemã seja compensado pelos britânicos e pelo atlantismo; a Grécia, Portugal e Espanha precisaram da Europa como seguro democrático e continuam a precisar dela para o salto desenvolvimentista da coesão económica e social. Se a França será essencial para evitar o perigo do regresso da Alemanha imperial, eis que o Reino Unido, como já reconhecia Monnet em 1963, se torna necessária para evitar as tendências republicanas e revolucionárias dos franceses (desejo veementemente a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum ... por causa das tradições parlamentares e democráticas dos ingleses. Ao lado deles, nós não somos democratas. Somos republicanos, por vezes revolucionários, mas nunca tão essencial e profundamente como eles... São eles que seguem os métodos de controlo parlamentar e educação popular que trouxeram a todo o mundo). Se a Espanha, que já governou meia Europa, tem direito ao seu lugar histórico no Continente, Portugal torna-se fundamental tanto como símbolo da resistência plurissecular de um pequeno reino medieval face ao centripetismo continentalista, como pelo facto de pela sua alma atlântica estar intimamente ligado ao Atlântico Sul, onde até já teve a sua capital. Aquilo que dissemos para o Estado Soberano pode também dizer-se para a entidade europeia que se vai projectando e construindo. Ela também é pequena demais e grande demais, em simultâneo. Clamamos pela Europa das regiões ao mesmo tempo que estamos enredados no desafio da mundialização e da globalização. Basta recordar que em 15 de Dezembro de 1993 se conclui o Uruguay Round, lançando-se subsequentemente a Organização Mundial do Comércio. Que o mundo do free trade se estendeu agora para os domínios da agricultura, dos serviços e da propriedade intelectual, obrigando a inevitáveis alterações do percurso da construção europeia, nomeadamente quanto à política agrícola comum e a própria tecnologia. Neste sentido, importa superar a ideia da mera Europa dos mercados. Há que exigir uma Europa mais Europa, uma Europa que, retomando os desejos da geração dos pais-fundadores, trate de recomeçar pela cultura e de apostar na educação. Há que exigir uma Europa dos cidadãos, uma Europa que comece pelo fundamento de qualquer polis, a cidadania pela paideia. A Europa política não pode ser um super-Estado, um grande leviatã. A Europa da vontade geral tem de ser uma Europa dos povos, chamem-lhe nações, cantões, pátrias ou regiões. A Europa política não pode copiar o modelo dos anteriores projectos de Império ou de Monarquia Universal, com pretensões a Estado Mundial, como prepassa em certos conceitos de Europa Fortaleza. A Europa política é a anti-utopia do grande espaço viável, que caminha da urbe para a orbe. Parafraseando o teórico político português do século XVII, Carvalho Parada, poderemos dizer que divide-se esta Europa em vários reinos, estados e províncias, cada um dos quais se governa pelos meios que entre si julgam por mais convenientes, e conformes às várias qualidades, com que a natureza os criou, ou a arte os formou, porque uns são grandes e outros pequenos, uns ricos e outros pobres, uns marítimos, outros pela terra dentro, uns pacíficos, outros inclinados a guerras, e com muitas outras qualidades, segundo os sítios em que estão, de que dependem. Há diversas maneiras de tender-se para o mesmo fim. E o fim nada tem a ver com a exiguidade da massa que o serve, porque como dizia Bodin, un éléphant ne peut être dit plus animal qu'une fourmi, alors qu'ils ont également la force de sentir et de se mouvoir. A táctica negocial portuguesa tem, pois, de conciliar permanentemente o patriotismo com o europeísmo, porque os dois movimentos, não são incompatíveis, antes se exigindo reciprocamente. Desde que não se entenda o europeísmo como uma espécie de prisão das nações. Desde que não se reduza o patriotismo à reinvenção de um soberanismo ultrapassado. A República Portuguesa é hoje um mediano Estado que exige o small is beautiful na construção do político. Que exige do político não ser grande demais, levando à exclusão da participação na decisão, como é exigência de qualquer cidadania. Não pode confundir-se com os modelos de manutenção do Estado que necessitam de esmagar ou comprimir aquilo a que eufemisticamente chamam nacionalidades ou regiões. O nosso modelo de nação, anterior a Maquiavel e a Bodin, bem mais antigos que o conceito absolutista, territorialista e concentracionário de Estado Moderno, pode servir de inspiração para a conciliação do grande espaço europeu com o princípio da liberdade dos povos. O nosso modelo de patriotismo nada tem a ver com pan-nacionalismo de alguns projectos imperiais europeus que ainda persistem. Nem sequer pode confundir-se com modelos de irredentismo sem conteúdo histórico, como de muitos nacionalismos sem nação.
O espaço supra-estadual e plurinacional da União Europeia tem de dar uma pátria a cada povo e que admitir que várias nações possam conviver no mesmo espaço, através do respeito por aquele fundamentalismo europeu que é a consideração do respeito pela autonomia ética da pessoa humana.
O princípio da subsidiariedade implica distinguir para unir e não o seu inverso o dividir para reinar. A Europa que sonho vir a ter poderá ser uma res publica dotada de um novo centro político para onde se transferirão lealdades, expectativas e interesses dos cidadãos europeus, mantendo-se, embora os anteriores centros políticos do modelo do Ocidente dos Estados.
163. Misturar a hegemonia dos mais fortes com o consentimento real dos menos fortes
O tempo de interregno que durante muitos anos vamos continuar a viver, implica, inevitavelmente aquilo que Raymond Aron qualificava como uma nova ordem marcada pela mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. Logo, nesta Europa dos Estados, onde se misturam os mais diversos modelos de organização do político, desde seculares Nações-Estados a Estados plurinacionais, desde pequenos grão-ducados a potências herdeiras de modelos de Império, desde os que conservam fronteiras medievais aos que ainda sonham com unificações, separatismos ou rescriturações territoriais, onde abundam minorias nacionais e alguns povos sem pátria, não podemos deixar de ter um mitigado neofeudalismo de Estados desiguais, onde alguns deles terão de ser mais iguais do que outros, com voto de qualidade proporcional ao número de eleitores ou de regiões que cada um possui.
A única forma de compensarmos esta Europa da cooperação política, assente nas soberanias dos Estados a que chegámos, com a Europa dos povos e a Europa dos cidadãos, será exigirmos a plenitude de uma sobsidariedade entendida aquela regra das orgaanizações onde há poderes superiores e inferiores, mas onde o poder superior é apenas superior na sua ordem de competências, conservando os poderes inferiores uma plenitude de autonomia na sua própria ordem.
Admitir a subsidiariedade, corresponde assim a introduzir divisibilidade na própria soberania, permitindo transferir parcelas destas, tanto para cima, para um centro supra-estadual, como para baixo, para novos centros infra-estaduais.
Só depois desta distinção pode unificar-se. Só então pode haver federação ou confederação, federando ou confederando, não as quinze divisões estaduais existentes, todas elas concentracionárias, mas as pluralidades geo-humanas, locais ou regionais, e as pluralidades interpessoais, dos vários grupos.
A República Portuguesa nada deve temer desse modelo, porque nem é pequena demais, nem grande demais. Aliás, a única forma de poder resistir na sua dimensão, passa por ter um espaço onde possa fugir aos diálogos bilaterais das suas alianças e confrontos ancestrais. Só a multilateralidade de uma grande Europa, como a da actual União Europeia lhe permite potenciar a autonomia. Como diz um autor europeu citado por Élisabeth Guigou, l'universel c'est le local moins les murs. Resta acrescentar que o autor, natural de São Martinho da Anta, escolheu o nome de Miguel Torga. A Europa somos nós, derrubando muros, derrubando muros…
A Europa que interessa a Portugal é a Europa que tenha uma alma, como dizia Robert Schuman; a Europa que possa recomeçar pela cultura, como acrescentava Monnet; não haverá Europa se esta não for entendida como uma polis, como um conjunto de cidadãos, onde só é cidadão aquele que participa nas decisões; Mas a polis Europa só o poderá ser se se assumir como o resultado da complexidade das poleis que a história gerou, como ânimo comum assente nas comunidades efectivas que a formam e conformam.
Qualquer europeísmo que caia na tentação de criar um super-Estado, uniformizado, centralizado e concentracionário, em nome de um despotismo esclarecido e utilizando a metodologia da Europa confidencial, através da elefantíase legiferante e do regulamentarismo, nada mais faz do que elevar o soberanismo absolutista à escala europeia; destruir o soberanismos dos Estados, mantendo-o num centro político supra-estatal é deixar entrar pelo sótão aquilo que pretendeu, em boa hora, defenestrar-se;
Só uma Europa consciente de que os problemas económicos só podem ser resolvidos por medidas económicas, mas não apenas por medidas económicas, pode ser viável e fiel ao ideal europeu; o que crescer a partir de um mercado único e de uma união económica e monetária, mas ser diferente dos modelos de free trade, implicando mais alma, mais cultura, mais cidadania e mais política, mas através de uma perspectiva pluralista e poliárquica;
A autonomia política dos portugueses que, desde a sua conformação medieval, esteve na vanguarda de uma construção racional do político através do consentimento comunitário, considerando que só a partir do particularismo, da diversidade e da diferença pode atingir-se o universal, não pode deixar de continuar a ser vanguarda na construção de uma Europa que queira ser unidade na diversidade. Quem me dera poder dizer ser a vez duma Europa mais livre que, abandonando a tentação dos Estados Directores, proclame que a unidade não exclui a diversidade e, muito menos, o orgulho das seculares franquias nacionais. Uma nova espécie de organização política de um grande espaço inter-estadual e inter-nacional. Uma realidade nova que trate de quebrar as estafadas classificações das federações e das confederações; que ultrapasse e surpreenda o ius intercivitates procedente do modelo da Paz de Vestefália, do cuius regio eius religio destruidor da unidade da respublica christiana, e do regime da hierarquia das potências consagrado pelo sistema Metternich após a Conferência de Viena.
A Europa que pode ser constitui uma forma institucional a haver, capaz de fazer o estabelecimento de um universalismo, através de um mitigado neofeudalismo, onde as nações-Estados se conciliem com os Estados-impérios e os Estados-nações, sem o irredentismo dos primeiros e sem a arrogância dos segundos. Uma nova fórmula capaz de fazer conservar a cada Estado, de forma simbólica, a soberania e a independência, mesmo que a soberania seja limitada e mesmo que a independência seja interdependência. Onde cada Estado possa actuar como uma espécie de pessoa/máscara no teatro das grandes representações internacionais. Onde esses diversos e diversificados Estados, do pequeno ducado ao grandioso herdeiro do Reich, do médio Portugal ao conglomerado espanhol, todos possam unir-se através de uma espécie de encomendação a um nível superior, sem necessidade de um papa temporal, de um imperador, mesmo que ideológico, ou de um qualquer pai dos povos. Onde não seja preciso Napoleão, Hitler ou Estaline, mas onde estes últimos também não tenham como sucedâneos coisas como a comissão ou um banco central. Onde, em vez da hipócrita igualdade de cabeça, como acontece na Assembleia Geral da ONU, haja alguns Estados que sejam mais iguais do que outros, com direito a voto de qualidade, proporcional ao respectivo poder, sem a brutalidade institucional de um direito de veto, como acontece no Conselho de Segurança da mesma ONU ou com o G7-G8.