QUANTO MAIS ALÉM, MAIS ALÉM AINDA
Nestes últimos anos do século XX, Portugal e a Espanha decidiram encetar um processo comemorativo relativamente a um período áureo das respectivas histórias, quando os povos da mais ocidental Península da Europa se lançaram, através do Oceano Atlântico, dando novos mundos ao mundo. Primeiro, foram as descobertas de novas terras e de novas gentes, depois, a expansão cultural e religiosa, bem como o aproveitamento económico; finalmente, a criação política de espaços pluriculturais e plurirraciais, com a existência de metrópoles e de províncias ou colónias que, algumas vezes, se designaram como impérios.
Durantes os séculos XIX e XX, as antigas províncias ou colónias foram, sucessivamente, declarando, ou recebendo, a independência, primeiro, no continente americano e, no decorrer deste século, no continente africano.
Comemorar os Descobrimentos passa assim por repensarmos estes cinco séculos de história europeia e peninsular que transformaram a antiga concepção ptolomaica do universo, ainda mediteranicicêntrica, numa concepção global, numa Terra entendida como planeta verdadeiramente unidimensional.
Acontece apenas que se esta unidimensionalização, em termos geográficos, remonta a Fernão de Magalhãees, o facto é que, em termos políticos, ela tem pouco mais de um quarto de século.
No caso português, as profundas alterações ocorridas neste último período, desde as campanhas de África à chamada descolonização, assumem uma dimensão especialmente apaixonada, dado estarem relacionadas com o debate sobre a própria essência da nação portuguesa. Desde o não há Portugal sem África, de António Enes, à integração na CEE como a prioridade das prioridades; desde o mais exacerbado integracionismo luso-africano, à defesa de um pan-europeísmo federalista, eis que os objectivos nacionais portugueses passaram a constituir pomos de discórdia entre os próprios portugueses.
Nõs que fomos o primeiro e o último dos impérios coloniais, até tivemos a ilusão de ser o primeiro império de uma nova era, fazendo uma espécie de ponte entre o Primeiro e o Terceiro Mundos. E durante mais de uma década, sustentámos esse sonho de armas na mão, sem vislumbrarmos que as guerras que vivíamos faziam parte de um complexo mais vasto que ultrapassava tanto os portugueses da Europa como os povos africanos sujeitos à nossa soberania e administração.
Hoje, ultrapassada a fase portuguesa dessas guerras, apesar de em Angola e em Moçambique a guerra continuar, e com a República Portuguesa transformada num dos doze Estados da Comunidade Europeia, lado a lado com o Estado espanhol, comemorar o quinto centenário do início do processo que levou à expansão portuguesa pode, de certa maneira, parecer contraditório.
Quando, pela primeira vez na nossa história aparecemos misturados nos negócios continentais da Europa, vamos precisamente comemorar aqueles factos que nos permitiram atlantizar e globalizar a nossa dimensão. De certa maneira, vamos comemorar o momento de saída da Europa, quando ainda estamos nas verduras de uma integração que, para muitos, até serve de compensação para o regresso.
Julgo que estas comemorações, porque não podem reduzir-se à simples sequência de congressos científicos de história, constituem um óptimo pretexto para pensarmos sobre o que foi e pode ser Portugal e, consequentemente, sobre o que deve ser a Europa.
Porque uma Europa que considere não terem valido a pena estes cinco séculos de europeização do mundo não é uma Europa em corpo inteiro. Porque um Portugal que se envergonhe da respectiva alma atlântica, vale mais que tire a esfera armilar do respectivo escudo nacional e que deixe de se identificar pelos heróis do mar.
Comemorarmos os Descobrimentos tem de ser uma excelente ocasião para redescobrirmos Portugal em Portugal e vislumbrarmos uma dimensão europeia que ultrapasse as questiúnculas continentalistas dos pós-guerras e dos tratados de paz que se lhes sucederam.
Descobrir Portugal talvez seja entendermos que continuamos a ser o mais velho Estado nação do continente e não é pelo facto de ter havido descolonização e de existir uma espécie de governo supra-estadual em Bruxelas que os nossos sonhos de Quinto Império deixaram de poder exprimir-se. Não temos, pois, que partir numa jangada de pedra à procura do tempo perdido, nem que fugir à realidade da sujeição quotidiana aos jornais oficiosos das Comunidades Europeias.
Como diz o Professor Adriano Moreira, temos de saber distinguir a diferença que vai de uma Europa dos Urais ao Atlântico, de uma outra Europa que se diz, sem ser por acaso, do Atlântico para os Urais. Temos que dar mais Atlântico à Europa, temos que ser mais Portugal em Portugal.
A viagem que durante cinco séculos encetámos pelos mares, além do mar, e, depois, como bandeirantes, através das selvas e sertões, tornou-nos cidadãos do mundo, vagabundos de um sonho universal. Descobrimos que em todo o mundo podemos semear terra portuguesa e que em todos os tempos podemos sonhar o Quinto Império.
Basta tão só que não percamos o pragmatismo da Aventura e o realismo do Sonho. O que levou e continua a levar os Homens aos Descobrimentos é essa ideia eterna de que é o Homem que faz a História e não a História que faz o Homem. E o Homem, dizia Pascal, supera infinitamente o Homem. Como Paul Claudel pôs na boca de Cristóvão Colombo: quanto mais além, mais além ainda.