Bafiento, petulante, caprichoso,
desbragado e loquaz
Sei que os radicais me condenam como herético, que os conservadores me
repelem como inoportuno, que os ultramontanos me fulminam como preverso.
Acoimado de miguelismo, condenado como espírito azedo e pessimista, tive a
sorte que esperava, e os motivos desta minha expectativa provaram fundados.
Levou-se a mal, como era de supor, que eu procurassse deslindar da teia de
lendas absurdas ou risíveis o carácter pessoal de D. Miguel: chamou-se a
isso uma apologia. Nem um facto, nem uma indignação legítima, foram,
todavia, contestados, o que não me leva a alterar o retrato desse príncipe,
simpático para mim na sua infelicidade. Recorrendo a papéis velhos, ousei
interrogar-me sobre se há recursos bastantes, intelectuais, morais,
sobretudo económicos, para subsistirmos como povo autónomo. Fiquei a saber
que os tempos dão razão aos sebastianistas. Porque, entre nós, surgiu um
novo sistema de governo, não previsto por Aristóteles. Transaccionou-se com
todos os vícios históricos da sociedade, dando ao comunismo burocrático uma
expansão tal que, satisfazendo a todos, atrofiasse as sementes das futuras
revoluções. Às engrenagens administrativas de que o Estado já dispunha,
juntou-se a legião nova dos beneficiados de obras públicas; muitos milhares
de funcionários, mais ou menos opiparamente prebendados; muitas centenas de
concessionários enriquecidos. Mas há quem continue a escrever com a pena
molhada no fel amargo do ódio. Há uma decadência no caracter e uma
desnacionalização na cultura. E se hoje se levanta esporadicamente alguma
excepção, o facto é que se cindiu a tradição intelectual, que se perdeu o
hábito de pensar, que apenas se escreve, por arte ou por indústria, numa
linguagem mascavada, o que vem cozinhado e requentado de uma qualquer
capital dos grandes deste mundo. Mas, ai dos que não tiverem olhos para ver!
Porque a marcha dos tempos, o andar das coisas não param; e se em vez de
educar, seguirem destruindo; se em vez de proteger explorarem o povo as
classes que agora o dirigem, a democracia nem por isso deixará de vir. Mas
virá com um balão incendiário, um grito de guerra, uma foice, um chuço, um
machado, vingar-se de quem não soube cumprir o seu dever.
posted by J. A. | 12:12 PM