Domingo, Junho 15, 2003
Compadrismo
Portugal continua a ser marcado pelo
conjunto d’os compadres e as comadres que constituem o país legal,
como dizia Alexandre Herculano. Com efeito, do
país da realidade, vem a
constante da indiferença que, vez em quando, explode em revolta populista ou
em apoio a césares de multidões,
isto é, a experiências de poder pessoal, onde o carismático e o messiânico
se aliam.
A herança do capitalismo de
Estado
Já no século XVI, por exemplo, quando nos podíamos ter transformado na
primeira potência capitalista da Europa, preferimos ceder à mentalidade
castelhana, expulsámos os judeus e, ao
cheiro da canela, acirrámos
um capitalismo de Estado que beneficiou fundamentalmente o negocismo de
certos cortesão. Entretanto perdeu-se o sentido do anterior comunitarismo e
a própria lógica de Estado que comandou o processo da expansão.
O barão revolucionariamente
usurário
Mais tarde, a revolução liberal, vitoriosa em 1834, preferiu substituir o
frade do antigo regime pelo barão devorista. É a época da venda em hasta
pública dos bens nacionais e da energência de uma nova classe política que
gera uma nova aristocracia social, marcada pelo barão
usurariamente revolucionário e
revolucionariamente usurário, segundo as palavras do desiludido
Garrett.
O comunismo burocrático
Depois do interregno setembrista, o cabralismo fez acrescentar a este
baronato financeiro e fundiário, a nova classe dos burocratas, todo um
clientelismo estatizante que vai degenerar naquilo que Oliveira Martins
qualificou como o comunismo burocrático:
burocracia, riqueza, exército: eis os
três pontos de apoio da doutrina; centralização, oligarquia; eis o seu
processo.
O proteccionismo e a privilégio
A Regeneração também não passou de mais um capitalismo de Estado que, em vez
de instaurar a liberdade económica, cedeu ao proteccionismo e a privilégio.
Com efeito, o nosso liberalismo regenerador veio apenas agravar o peso morto
da estatização, proibindo a livre associação da sociedade civil, muito
especialmente das estruturas sócio-profissionais.
O neofeudalismo
O mal baronal é típico de todas as oligarquias patidárias geradas à boleia
do poder, mantendo zonas de encomendação ou grupos de amigos, relativamente
aos grupos dominantes do situacionismo anterior. Em todas estas situações
sempre a mesma tendência neofeudal de alguém económica, social ou
politicamente enfraquecido se colocar sob a protecção de uma certa
personalidade ou de um determinado grupo, bem colocados que, a troco de
fidelidade, lhe vão dar emprego estável, a avença compensatória, a
facilidade burocrática ou o acesso a círculos íntimos do poder económico,
social ou político.
A sublimação da cunha
É toda uma teia de aristocracias semiclandestinas em que os nossos regimes
se têm enredado que, sem atingir as dimensões dos mafiosos padrinhos ou dos
mafiomaçónicos polvos, eleva a tradicional cunha aos requintes da
tecno-estrutura. Enquanto isto, a maioria do
país da realidade tanto
adopta a esperança do sapateiro de Braga (ou há moralidade, ou comem todos)
como se torna indiferente, caindo, o primeiro, no engodo sensacionalista e
distanciando-se, o segundo, dos reais problemas da coisa pública, dado que
apenas é chamado a participar nos banhos de multidão do folclore eleitoral.
Não há estados de graça que sempre durem nem pecados que nunca acabem...
Portugal político continua a ser
Lisboa
Apesar das muitas revoluções que nos aconteceram, Portugal político continua
a ser Lisboa, onde o resto é paisagem, onde se fazem campanhas eleitorais e
para onde se emitem telejornais, apenas com uma pequena cedência à
tradicional autonomia do burgo portuense, quando este tenta imitar Lisboa e
se assume como a capital do Norte, como se expressa na caricatura da
futebolítica, onde algumas lideranças dos
dragões, como se chama ao
Futebol Clube do Porto, chamam mouros
aos da capital e cantam o
querer ver Lisboa a arder,
num frenesim bairrista que, muitos, confundem com regionalização, quando
invocam os paralelismos vocabulares de alguns líderes históricos das ilhas
atânticas que, aos continentais, chamam cubanos.
Aliás, o bairrismo vem do árabe barri, o mesmo que terra, e, depois, passou
a qualificar uma das partes em que se divide uma cidade. Significa
parcialidade, tendência para se sobrevalorizarem as características de uma
das divisões de um todo político ou administrativo.
A oligarquia partidocrática
A política portuguesa persiste em viver no círculo vicioso de um pequeno
grupo populacional. Mesmo nestes primeiros anos do milénio, se poderá haver
cerca de cem mil formais filiados em partidos políticos, eis que este
universo gera apenas pouco mais de cinco mil militantes activos que costumam
participar em congressos partidários. Contudo, mesmo estes são devidamente
enquadrados por um escasso milhar de dirigentes ou potenciais dirigentes
políticos, os quais constituem o núcleo duro da chamada classe política.
A soberania já não reside no povo
A política portuguesa persiste assim em ser marcada por este desvio
oligárquico da partidocracia, onde predomina a lei do baronato, zona onde se
recrutam os deputados, os ministros e todos os que, graças à vitória
eleitoral do respectivo partido, podem invocar o esforço militante para
passarem a viver à mesa do orçamento,
sem necessidade de mais curriculum.
Citando Lorenzo Caboara, em
Partitocracia Cancrena dello Stato, Roma, Volpe, 1975, podemos
dizer que, neste modelo, a soberania já não reside no povo, dado ter passado
para as mãos dos partidos políticos que a exercem através dos seus órgãos e
das suas administrações próprias.
Se o mal não é tipicamente português nem exclusivo do nosso tempo, o facto
de alguns nos terem continuado a qualificar como uma jovem democracia, onde
existiu, durante cerca de uma década, a maioria absoluta de um só partido, e
ainda por cima do partido que há mais tempo estava no governo, tudo isso
contribui para agravar o distanciamento do país político face ao país real.
O Portugal político, traumatizado pelas memórias contraditórias do
autoritarismo e do revolucionarismo, constitui, na verdade, um terreno
fértil para o dessangramento da democracia pluralista.
posted by J. A. | 12:40 AM