Sexta-feira, Maio 30, 2003
Contra o culturalmente correcto
Algumas higiénicas almas da nossa praça ficam muito agastadas quando alguém,
que tem as mãos livres, decide enfrentar o culturalmente correcto da direita
que convém à esquerda, bem como da esquerda que convém à direita, tratando
de gozar com os ditos. Muito provocatoriamente, quando algumas figuras da
velha direita tratam pedir certificados de bom comportamento democrático a
exógenos e duvidam da palavra tradicionalista, costumo dizer que gosto de
ser um "miguelista liberal". Já o expliquei num texto juvenil emitido em
1983 e que aqui reproduzo:
A figura de D. Miguel
A figura de D. Miguel (1802-1866) continua a ser objecto de perspectivas
contraditórias. Coelho da Rocha diz dele que “todos os seus actos trazem o
cunho da imprevidência e da ferocidade”. Almeida Garrett qualifica-o como
“um abjecto tirano”, um “rebelde traidor manifesto”. Era a análise daquele
D. Miguel que, na frustrada revolta da abrilada de 30 de Abril de 1824,
proclamara pretender esmagar “duma vez a pestilenta cáfila de pedreiros
livres... ou acabar na gloriosa luta em que estamos empenhados, ou cortar
pela raiz o mal que nos afronta, acabando de uma vez com a infernal raça
maçónica, antes que ela acabe connosco”.
Mas Oliveira Martins, já com uma certa distância de historiador, e que lhe
valeu uma violenta diatribe de António Sérgio, diz que ele foi “o último rei
que o povo amou e compreendeu, que saiu pobríssimo do seu país e pelos seus
oficiais carecidos distribuiu o dinheiro que possuía em Évora Monte”,
enquanto Carlos Passos considera que “mais valia a figura do príncipe que o
sistema absolutista”.
Por seu lado, Cabral de Moncada considera que “se por legitimidade
entendermos a questão dos direitos de D. Miguel ao trono português em face
das leis de sucessão do reino (leis ditas de Lamego e as Cortes de 1641),
num ponto de vista estritamente legal, é indiscutível que uma tal
legitimidade só pertencia ao filho mais novo de D. João VI”.
Mas, a isto, responde Garrett, dizendo que “a legitimidade fez-se para os
povos e não para os reis”, considerando, por seu lado, Coelho da Rocha, e
que D. Miguel procedeu a uma “escandalosa transgressão do juramento, dos
esponsais e dos votos feitos ... em Viena à face de Deus e de toda a
Europa”.
Contra a guerra civil
Talvez mais esclarecedoras sejam as próprias palavras de D. Miguel no
exílio: “fomos ambos infelizes, eu e meu irmão. Por ele esteve a
inteligência sem honra, por mim, a honra sem inteligência”. Porque, como
dizia Garrett, na maturidade das inolvidáveis das Viagens na Minha Terra,
“toda a guerra civil é triste. E é difícil dizer para quem é mais triste, se
para o vencedor, se para o vencido”.
Continuando a gozar, permito-me sugerir ao universo dos situacionistas,
herdeiros do devorismo e do cabralismo, que meditem nas sensatas palavras do
grande educador das respectivas classes.
Martelada contra a conspiração
das foices
Com efeito, em 20 de Abril de 1846, na Câmara dos Deputados, António
Bernardo da Costa Cabral, depois de reconhecer que “há uma conspiração
permanente contra as instituições actuais, contra a ordem estabelecida, e
mãos ocultas que manejam estas conspirações”, reconhece que a revolução do
Minho “é uma revolução diferente de todas as outras, que até hoje têm
aparecido, porque todas as outras revoluções têm tido por bandeira um
princípio político, mais ou menos, mas esta revolução é feita por homens de
saco ao ombro, e de foice roçadora na mão, para destruir fazendas,
assassinar, incendiar a propriedade, roubar os habitantes das terras que
percorrem, e lançar fogo aos cartórios, reduzindo a cinzas os arquivos!”.
Que espada da lei caia sobre as
suas cabeças
Que é levada a cabo sem chefe pela “mais ínfima classe da sociedade”,
havendo “um bando de duas mil e quatrocentas, a três mil pessoas armadas,
com foices roçadoras, alavancas, chuços, espingardas, com tudo quanto eles
podem apanhar”, impondo-se tomar “medidas enérgicas e fortes”, a fim da
“espada da lei cair sobre as suas cabeças”.
Devoristas de todo o mundo,
uni-vos!
De forma bem mais moderada, Saldanha logo pediu a invasão de Portugal por
tropas dos aliados, a fim de impedir a subversão dos povos. Quanto à
subversão das ideias, julgo que basta a tesoura, o lápis e o tradicional
saneamento. Devoristas de todo o mundo, uni-vos!
Contra os cabrais, resistir e
resistir....
Confesso que nunca pensei que esta brincadeira da "patuleia" incomodasse
tanta gente. Por isso, lanço daqui uma petição: que o hino da "Maria da
Fonte" deixe de ser a música com que se saúdam os nossos ministros. O que só
é possível numa terra onde a avenida da Liberdade, começando, justamente,
nos Restauradores, é subitamente interrompida pelo bronze de um déspota. Uma
estátua já inaugurada durante o regime do 28 de Maio, com os ministros da
dita de braço dado com os filhos de certa carbonária. Viva o Camilo Castelo
Branco e o quase proibido "Perfil do Marquês". Mas, cuidado, que o dito
Camilo também era miguelista!
29 de Maio posted by J. A. | 7:15 PM