Há uma estátua quioca?


Há uma estátua quioca nas paredes do meu quarto, cujos olhos são dois sulcos que nos levam à raiz da lágrima. Lembrei-me agora desse artefacto, que efectivamente existe, mas que podia não existir, só porque me apeteceu pensar em qualquer coisa absurda. É que são três horas da manhã e já devia estar a dormir. O pior é que não tenho sono nenhum e se não me liberto destas imagens que me atormentam, não conseguirei adormecer.
 
Há muito tempo que não faço daqueles poemas que eu próprio não entendo, quando, por dentro, sinto a tendência para me lançar nos braços de não sei que noctívaga imagem, enchendo folhas de papel com palavras que me saem à toa. Mesmo agora, estou descontente comigo mesmo, porque estou a escrever coisas sem nexo nenhum e tinha a obrigação de cumprir o plano que previamente tracei. Mas apetece-me imaginar com liberdade activa, escrever frases sem pontuação ou preocupações de gramática, não pensando que outros me virão a ler. Aliás, o que estou a escrever talvez seja para queimar. É uma libertação semelhante àquela que temos em miúdos, quando nos apetece rabiscar palavras obscenas num caderno escolar. E preciso, aqui e agora, de largar todas estas imagens que o quotidiano subtilmente vai proibindo. Também não quero embrenhar-me na leitura de livros que já tragam, em estilo elegante, todas as respostas. Vou apenas tratar de problemas que ainda não têm solução.
 
Quando as ideias correm mais velozes do que as palavras e, no écran da memória, deslizam imagens vividas ou desejadas; quando uma qualquer força nos pega na caneta e nos obriga a escrever palavras negras sobre folhas brancas, sem sabermos o que vai acontecer na linha que começamos a escrever; quando tudo isto acontece sem o desejarmos, logo sentimos que estamos presos a uma força interior que nos é superior e que não podemos controlar conscientemente. É assim que arrecado palavras no baú do subconsciente, as quais, de um momento para o outro, podem brotar como vulcão imprevisto, abalando a pacatez do quotidiano. Por isso digo que vale a pena viver, que vale a pena tentar cumprir o doloroso caminho do direito à felicidade.
 
Estava a pensar na estátua quioca, que existe efectivamente, mas que podia não existir, quando verifiquei que tinha carne, sangue e sonhos, que era homem e que podia comunicar com os outros. Isto é uma coisa que toda a gente sabe... Acontece apenas não o ter escrito à toa, porque, ao pensar na estátua quioca que talvez não exista, cheguei realmente a tal conclusão, sem pensar nas lágrimas que chorou o respectivo escultor, ao ser chicoteado pela modernidade de um chamado progresso que o obriga a fazer artesanato.
 
Deixa-te de fingimentos intimistas, porque, quando começas a escrever, logo começas a mentir. Não procures viver como ousas sonhar. Apenas te admitem um pequeno espaço de íntimo intervalo para a clandestinidade dos sonhos proibidos, para essas platónicas aventuras que te continuam a atormentar. Trata de sublimar a frustração em finas ironias de literato, tentando a própria ficção, onde, gerando heterónimos, podes ser tudo aquilo que te apetece.

E lá continuo em plena madrugada, a bater teclas, noite dentro, sem ter qualquer ideia que me absorva e mobilize. Isto é terrível: termos necessidade de escrever e não termos mote. Apenas apetece dizer que há uma estátua quioca nas paredes do meu quarto, cujos olhos são dois sulcos...


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Posted by J. A. to
Pela Santa Liberdade! at 6/3/2003 02:00:24 AM