Realista e republicano
Muito ortodoxamente fui interpelado por alguns monárquicos que estranharam a
circunstância de, muito heterodoxamente, me dizer "realista republicano".
Com todo o pragmatismo de quem não perdeu o sentido da aventura, posso
observar que, no actual quadro político, não existe um problema de vértice
do regime, existe um problema quantos às fundações morais de qualquer
possível regime. Porque, se, formalmente, não vivemos em monarquia também
substancialmente não temos um regime republicano, segundo os ideais dos
revolucionários da Rotunda.
Viva
a forma republicana de governo
Julgo pertencer ao grupo dos portugueses que, apesar de nunca se ter
desligado da tradição monárquica, subscreve a exigência constitucional da
"forma republicana de governo". Com efeito, talvez seja capaz de dizer, com
todo o cuidado literal e doutrinário, que foi alguém de formação monárquica
que inspirou esse agregado de palavras. Com efeito, julgo não poder haver
nenhum doutrinador monárquico, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo
os próprios integralistas, que não defenda a monarquia como forma
republicana de governo.
O
pacto de associação é superior ao pacto de governo
Em abono desta afirmação, poderia, aliás, começar por invocar Francisco
Suarez e depois passar aos clássicos do tradicionalismo
contra-revolucionário e anti-absolutista, dado que todos eles assentaram as
suas crenças consensualistas no pacto de associação e na consequente origem
popular do poder.
Diria até que, para poder ser profundamente constitucionalista, teria que
começar por reverenciar a matriz de todos os constitucionalismos modernos,
que é o muito "res publicano" constitucionalismo da monarquia britânica, um
constitucionalismo que nunca precisou do conceito de Estado nem do conceito
de Constituição para ser a matriz de todos os Estados de Direito
Democráticos dos nossos tempos contemporâneos.
Em
louvor da constituição histórica
E mesmo na nossa história portuguesa, talvez convenha dizer que, antes das
constituições monárquico-liberais escritas, nós já tínhamos sido, até à
recepção do iluminismo absolutista, com o seu despotismo ministerial, um
Estado Constitucional e, desse modelo de Constituição Histórica, ainda hoje
poderíamos extrair muitas lições de consensualismo para alguns desvios
absolutizantes do nosso tempo.
Até tivemos uma monarquia e uma constituição, as nossas tão esquecidas leis
fundamentais, antes de se terem elaborado os conceitos de Estado Moderno e
de soberania, nos séculos XV e XVI. Isto é, a organização política dos
portugueses tinha não só uma espécie de Estado pré-estadualista como também
um género de constituição pré-constitucionalista.
Do
Princeps ao General
O facto de a Primeira República ter sido caricaturalmente parlamentarista e
partidocrática, transformando o Presidente da República num simples
instrumento do partido dominante , eleito pela "classe política" num colégio
eleitoral, apenas provocou um vazio na simbologia máxima do Estado.
A partir do 28 de Maio e, muito principalmente, com a institucionalização do
Estado Novo, através da Constituição de 1933, gerou-se um formal
presidencialismo bicéfalo, onde efectivamente imperava o Presidente do
Conselho de Ministros que, mesmo depois de abandonar a titularidade da
"ditadura das Finanças", continuou a ser o efectivo "Princeps".
O salazarismo, com efeito, liquidou em Portugal o dilema
Monarquia/República, gerando um hibridismo que a dita III República,
posterior ao 25 de Abril ainda não conseguiu superar.
Com efeito, o estilo salazarista de chefia do Estado foi particularmente
acirrado com o General Ramalho Eanes que, apesar de legitimado pelo voto
popular, nunca se libertou de uma outra superior legitimidade: a de ser
militar, a de pertencer a uma entidade que a si mesma se considera diversa
da "sociedade civil".
Soares e a restauração da república
Só com a eleição de Mário Soares se deu uma efectiva restauração da
República a nível da chefia do Estado, uma restauração que, contudo, não foi
feita contra os monárquicos nem marcada por sucedâneos cesaristas e que
levou o próprio Duque de Bragança a qualificar a actuação de Soares como a
de um verdadeiro monarca.
Quem
derrubou a monarquia em Portugal
A monarquia em Portugal não foi derrubada pelo 5 de Outubro. A monarquia já
tinha sido derrubada muito antes, tanto com o absolutismo como com o
revolucionarismo de inspiração jacobina, e continuou a ser derrubada depois
dessa data, com as subserviências face ao cesarismo e às ditaduras. Porque a
monarquia, como instituição de direito natural, apenas existe quando a
instituição tem efectiva legitimidade, isto é, quando ninguém a discute e
todas a praticam como instituição viva, tão natural como o ar que se respira
ou a nação que todos os dias se plebiscita.
Com efeito, não haveria monarquia em Portugal, nos termos da legitimidade
das velhas leis fundamentais, se, por exemplo, através de um referendo, a
maioria absoluta ou a maioria qualificada da população optasse pela
monarquia. Enquanto a ideia monárquica continuar factor de divisão entre os
portugueses, enquanto continuar vivo, mesmo que minoritário, um partido
republicano, a monarquia nunca poderá conquistar a legitimidade.
A monarquia não existe se depender da obediência e não do respeito. Só
existe monarquia se o rei for tão natural como a família, sem estar
dependente dos factores da conjuntura. Por isso é que a existência de
partidos que se qualificam como monárquicos continua a ser um dos principais
atentados contra a própria ideia monárquica em Portugal.
Monárquicos e aristocretinos
Do mesmo modo, será impossível qualquer instauracionismo monárquico se
persistir na opinião pública a confusão entre a ideia monárquica e o
aristocratismo, muito principalmente daquele que continua a ser ostentado
por certos aristocretinos da nossa praça, maioritariamente descendendentes
da falsa fidalguia do baronato liberal, que usurparam os títulos através da
especulação financeira e dos golpes partidocráticos.
Muito republicanamente monárquico
Na verdade, qualquer instauracionismo monárquico só seria viável se a
política portuguesa voltasse de novo a ter aquela necessária temperatura
espiritual geradora de efectiva legitimidade e de democráticos consensos
populares. Enquanto a política que temos continuar a traduzir em calão os
discípulos de Maquiavel o monarquismo não passará de emblema para certas
castas falsamente monárquicas e que são as verdadeiras responsáveis pela
efectiva não popularidade da ideia monárquica em Portugal.
Diria, pois, à maneira de Fernando Pessoa que, apesar de sempre ter sido
monárquico, se houvesse, agora, um referendo sobre a questão, teria que
optar pela República para defender os verdadeiros princípios monárquicos.
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Posted by J. A. to
Pela Santa Liberdade!
at 6/7/2003 11:16:11 AM